Intervenção de Maria João Brilhante, Professora Universitária - Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da UL, Conferência «Uma visão universal e progressista da História - A actualidade da Obra de José Saramago»

Escrever para teatro: a contribuição de Saramago para a dramaturgia portuguesa no pós-25 de Abril

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Julgo necessário declarar que sou sobretudo uma leitora da obra de Saramago e dos seus textos escritos para teatro; não os estudei em detalhe e não os vi em cena pelo que não irei falar dos espectáculos que deles partiram e que colocariam questões de ordem estética e artística que ultrapassam o tema desta conferência. No entanto, veremos que espectáculos e textos coexistem num mesmo momento histórico e encontram-se em sintonia na visão que têm acerca do lugar do teatro na sociedade.

Avanço também uma primeira constatação: a relação entre Saramago e os palcos é muito mais relevante do que pode parecer e deve ser considerada para melhor entendimento do seu contributo para o teatro português. E começarei por aí, tentando nestes breves minutos apontar alguns vectores nem sempre evidentes quando olhamos sobretudo para a faceta de dramaturgo e para as características da sua escrita.

Falarei de 3 textos de teatro A noite, Que farei com este livro? e a A segunda vida de Francisco de Assis, procurando abordá-los a partir do tema desta Jornada: visão da história e actualidade das peças em questão.

Dizia eu que a relação de José Saramago com os palcos e com a criação teatral surge ainda hoje secundarizada perante o lugar central da sua obra romanesca na literatura universal. O próprio José Saramago entendia a sua escrita dramática como marginal e pontual, talvez mais ao serviço dos artistas e da emergência de uma nova dramaturgia portuguesa do que como prática assumida de dramaturgo.

Uma dedicatória na 1ª edição1 de A Noite diz o seguinte: “À Luzia Maria Martins que me achou capaz de escrever uma peça.” E no debate promovido pelo Teatro de Campolide e Joaquim Benite, intitulado “O papel do dramaturgo na actual sociedade portuguesa”2, em que participaram, além de Saramago, Bernardo Santareno, Hélder Costa, Luís Francisco Rebello e Romeu Correia, afirmou o seguinte: “Estou aqui numa posição um bocado cómoda porque com rigor talvez não me possa intitular dramaturgo. Em todo o caso, talvez eu possa entrar nesta fase do colóquio como representante do público que entrará na segunda fase, em vez de dramaturgo que não sou nem sei se serei.”3

Um breve parêntesis é aqui necessário para referir que foram grandes as transformações no teatro que se fez em Portugal entre 1974 e o final da década de 80. Elas ocorreram ao nível dos modos de produção (estabelecimento das companhias de teatro independente, financiamento do estado ao teatro), da organização social e política deste campo (multiplicidade de formas legais das estruturas de criação, criação de organismos representativos do sector teatral), das formas artísticas (centralidade do encenador, irrupção de novas ideias de teatro com o fim da censura e a abertura ideológica, produção de uma nova dramaturgia portuguesa e diferente lugar do escritor no processo criativo), da reforma do ensino do teatro, do lançamento da descentralização cultural…

É neste contexto que devemos colocar os textos escritos para serem encenados pela Grupo de Campolide já em Almada (A Noite, 1979 e Que farei com este livro?, 1980) e pelo Novo Grupo- Teatro Aberto (A segunda vida de Francisco de Assis,1987). Fazem parte desse primeiro momento de “formalização” das experiências que emergiram da explosão de possibilidades que se ofereciam a quem vinha tentando desde o final dos anos 60 mudar o teatro em Portugal. Para muitos pouco restou do experimentalismo, da criatividade e da missão que a liberdade e a abertura ideológica trouxeram em tão curto espaço de tempo. Em 1979 era já evidente que, perdido o controlo dos meios e modos de produção para o Estado, alguns artistas e grupos teriam de continuar a lutar para proteger o teatro em que acreditavam - o teatro com uma missão transformadora da sociedade, feito para e com o povo - de um progressivo isolamento e até do seu desaparecimento (e foram muitos os grupos extintos…) provocados pela pressão para uma adequação às regras da nova ordem política e do mercantilismo em troca de financiamento.

Note-se que a propósito da estreia nesse ano de A noite pelo Grupo de Campolide no Teatro da Incrível Almadense, os títulos de algumas críticas ao espectáculo foram: “Continuar a fazer teatro…apesar de tudo. 1. Em Almada” (Maria Helena Serôdio, O Diário); “A noite…para que não esqueçamos” (Fernando Midões, Diário Popular); “A noite e a madrugada” (Carlos Porto, Diário de Lisboa). Sinais explícitos de que fazer teatro era um acto de resistência e que a Revolução de Abril era já um momento da nossa história a precisar de ser registado.

O que talvez mereça agora destaque – interrompendo este excurso que pode, todavia, iluminar a conexão histórico-teatral dos textos de teatro de Saramago e não só– é que quase toda a sua obra passou pelos palcos, nacionais e internacionais. Na CETbase, uma base de dados sobre espectáculos alimentada pelo Centro de Estudos de Teatro, é possível encontrar toda a informação sobre esses espectáculos e descobrir a diversidade de grupos profissionais, de grupos de amadores, de âmbito escolar que não só produziram encenações dos seus três textos de teatro, mas de adaptações dos romances (O ensaio sobre a cegueira produzido pelo TNSJ anda neste momento em digressão) o que se explica por pelo menos duas razões: a primeira reside no reconhecimento da importância da sua obra e na sua presença nos programas escolares, a partir, sobretudo, de O Memorial do Convento; a segunda prende-se com as mudanças na relação entre texto e encenação que introduziram também diferenças na prática de escrita, na interrogação do modelo tradicional do texto dramático (aristotélico) e da sua centralidade no espectáculo. Os anos 80 vão ser de experimentação: ao encenador cabe a “leitura” e a transposição semiótica do texto para a cena, a invenção de signos, de dispositivos e de acções que aprofundem a visão autoral inscrita no texto e, no caso de textos clássicos, que desmontem a ideologia e a tornem visível no tempo presente da representação.

Acerca da sua encenação de A noite, Joaquim Benite explica opções tomadas e impasses entre texto e encenação:

“9. Uma leitura que procurasse violentar por completo o sistema cénico proposto pela peça teria, claramente, o inconveniente de secundarizar um dos seus temas mais importantes: a própria realidade física do jornal, a sua desmistificação como estrutura específica. Uma leitura tão só naturalista tornaria impossível a abertura do texto às pontes que podem esclarecer a sua significação histórica.

10. A solução seria encontrar a “cena” e, por conseguinte, o cenário que preenchesse, com a necessária clareza, as duas funções. Um cenário cujos objectos permitam, ao mesmo tempo, uma sinalização referente à entidade jornal (e cumpram, neste plano, até certo ponto, uma função imitativa) e uma sinalização que referencie as significações mais amplas a extrair da peça.”4

Mas noutras experiências teatrais desse período, formas herdeiras do teatro épico brechtiano ou do teatro do absurdo beckettiano são aproveitadas para deslocar o texto do lugar central que ocupava na cena portuguesa até aí, levando ao seu quase desaparecimento em espectáculos gerados pela improvisação ou fruto da criação colectiva, onde a palavra é considerada apenas um dos materiais da criação, dissociada de um género literário específico.

Será esta expansão da ideia de texto que irá promover e tornar legítimas operações de adaptação e transposição cénica, nomeadamente dos romances de Saramago, fazendo deles, antes de mais, catalisadores da criação teatral. Podemos discutir até que ponto alguns desses romances (Levantado do chão, Jangada de pedra, Ensaio sobre a cegueira, Memorial do Convento, História do Cerco de Lisboa5) são atraídos para o palco pela poderosa criação imagética das palavras, pela interrogação filosófica que habita a voz do seu autor-narrador e pelas personagens inconfundíveis onde o ser português e o ser universal se encontram. Mas em qualquer caso, a sua singularidade literária e os universos ficcionais que oferecem não são incompatíveis com a liberdade de criação cénica, antes a desafiam e estimulam. O palco deixa de estar preso ao drama e passa a ser habitado (sob todas as formas de escrita) por questões, pelas contradições que o pensamento faz surgir em busca de possíveis respostas para problemas da humanidade.

Deixando de fora duas das suas cinco peças de teatro – In Nomine Dei de 1993 e D. Giovanni ou o dissoluto absolvido de 2005 – falarei das três já referidas, que primeiro escreveu e foram representadas, respondendo a esse desejo de uma dramaturgia portuguesa que servisse a narrativa histórica interpelando-a ou contribuindo para a sua inscrição na sociedade.

Mantêm-se muito próximas do modelo dramático tradicional, definindo um espaço e um tempo referenciáveis, construindo uma narrativa e personagens que tecem relações de poder e de saber com vista a um desfecho previsível, ainda que por vezes surpreendente. São textos realistas-naturalistas que não se propõem experimentar fórmulas novas de escrita, mas sim encontrar no modelo do drama a base que permita comunicar com o espectador comum e até com não-espectadores, os que pouco ou nenhum acesso tiveram ao teatro antes do 25 de Abril. No caso de A Noite, 133 espectadores em média diária, 5000 trabalhadores segundo a estatística apresentada no Boletim do Grupo de Campolide, assistiram às 78 representações. Número impensável actualmente.

Mas comunicar o quê? Que o teatro é um lugar onde, através de objectos artísticos, é possível discutir todas as questões que interessam ao povo, onde momentos da história de Portugal podem ter interpretações diferentes da história oficial, como acontece em A Noite e Que farei com este livro? ou ainda onde através de uma parábola se pretende mostrar que é preciso vencer o capitalismo para mudar o mundo, como nos revela o debate em A segunda vida de Francisco de Assis.

Vejamos A Noite. Com a Revolução de Abril ainda na memória viva de todos, Saramago escolhe regressar à noite de 24 para 25 a partir da redacção de um jornal de âmbito nacional, próximo do Governo e, por isso, microcosmos da sociedade portuguesa de então, atravessada pela ausência de liberdade, pela repressão, pelo obscurantismo e pela tensão entre classes dominantes e classes subjugadas. A escolha é simbólica e permite significar o poder da imprensa, que Saramago conhecia bem, em qualquer sociedade.

O leitor segue o processo de edição do jornal, com a inevitável passagem das notícias pelo Exame prévio, a vacuidade e o comprometimento do discurso “oficial” ou ainda os gestos de afirmação do poder na hierarquia da redação. Ao mesmo tempo vê desenharem-se grupos afectos ao poder vigente (com todas as gradações de envolvimento e responsabilidade) ou de seus opositores (com as consequências pessoais e sociais que daí advinham).

O mundo invade este espaço quando chegam rumores de um golpe. Esta redacção vai entrar na história de Portugal pela escrita ficcional de Saramago. Não podemos falar de uma peça de teatro documental, porque os factos que a constituem são elaborados artística e simbolicamente. Seguimos a estrutura do teatro realista-naturalista, como vimos Benite explicar, assente no drama, na tensão e conflito entre personagens representativas de posições ideológicas e discursos com elas condicentes (veja-se a conversa ameaçadora entre Torres e Valadares), diálogo que se desenvolve num tempo delimitado e sequencial (a noite e a madrugada). Saramago está, talvez, mais próximo do teatro épico na sua dimensão polifónica e feita de fragmentos (cenas) exemplares onde vozes falam a partir de pontos de vista diferentes, por vezes recorrendo expressivamente ao jogo físico dos actores. Mas não adivinhava ainda, em 1979, a escrita a que se chamou pós-dramática, na qual desaparece o espartilho da replicação do mundo em cena, e em que as palavras readquirem o seu poder evocatório a partir das vozes que as pronunciam.

Dito isto, a peça é ela própria um documento que permite transpor para o palco de hoje palavras e situações vividas num jornal em 1974 onde existiam linotipistas e a composição tipográfica era manual, onde não havia computadores e o mundo chegava por telex. Estes aparentes arcaísmos estão ao serviço de uma visão das circunstâncias do momento histórico em que o regime fascista foi derrubado, nela estando prefigurado o próprio devir da sociedade portuguesa com as suas conquistas (daí a força da presença dos tipógrafos) e as suas concessões, tergiversações e logros (os arranjos que logo asseguram a impunidade dos apeados do poder).

A sua actualidade mede-se pela capacidade, experimentada já6, de libertar o texto do seu formalismo literário e de iluminar a “lição” que propõe confrontando este passado próximo do momento de escrita e o presente da encenação no qual se evidencia a relação entre política e comunicação social.

Que farei com este livro? mostra os esforços de Luiz Vaz de Camões para publicar os papéis que escreveu sobre a pátria nos 17 anos que viveu na Índia e em Moçambique. Os meandros da política interferem neste projecto e na vida do poeta e revelam o desinteresse dos poderosos pelos Lusíadas, refazendo, deste modo, Saramago a história da grande obra canonizada pelo Estado Novo. Longe de aparecer como o herói injustiçado (está fora de cena nos 3 primeiros quadros e na corte ninguém sabe quem ele é), Camões confronta-se com a necessidade de encontrar os meios e contornar os obstáculos para realizar o seu sonho. Entre um rei D. Sebastião desinteressado da própria história do seu povo e a violência censória do Santo Ofício, vamos vendo surgir vontades propícias à impressão do livro; contudo o que resulta dessa luta é mais do que um livro, é uma pergunta – a que dá título à peça: que pode um poeta fazer com o seu livro que não seja possibilitar que ele seja lido por outros ao longo dos tempos?

A peça foi escrita aquando da celebração do 4º centenário de Camões, mas como se diz no nº 1 do Boletim do Grupo de Campolide trata-se de uma “visão viva e não comemorativa do papel do grande poeta na história do nosso povo.”7 Essa visão viva corresponde a uma ideia de história que não cristaliza narrativas, mas as revisita para as abrir à leitura do presente. A luta de Camões não existe sem o contraponto de outras lutas que com a sua se cruzam: a de Damião de Góis com o obscurantismo do Reino, a dos interesses da coroa contra os interesses do povo, a de Diogo do Couto que vive como eterno exilado, o de Francisca de Aragão que pretende regressar a um passado sentimental idealizado. Luís Francisco Rebello no prefácio à 1ª edição8 compara a peça a outras suas contemporâneas sobre Bocage, O Judeu, António Vieira, mas também à tradição oitocentista do drama histórico, para mostrar que esta não procura reconstituir ficcionalmente situações e personagens do passado, numa espécie de Museu de Figuras de Cera, mas sim criar uma articulação dialéctica do homem com o seu tempo, enraizar as acções e situações ficcionais num processo que compreende a realidade através das suas contradições.

A actualidade da peça reside mesmo aí, na interrogação sobre a possibilidade de des-heroicizar o poeta Camões e de o vermos como um sujeito que participa das contradições da sociedade em que vive miseravelmente e à qual terá de ceder os direitos da sua obra para que ela pudesse chegar até nós. Aliás, em 2007, a Companhia de Teatro de Almada, herdeira do referido Grupo de Teatro de Campolide, voltará a encenar a peça, homenageando Saramago e discutindo a sua visão da história.

Em A segunda vida de Francisco de Assis, estreada em 1987 pelo Novo Grupo com encenação de Norberto Barroca, reconhecemos um texto formalmente organizado em dois actos, o primeiro consistindo no regresso de Francisco, personagem que em tempos fundara uma ordem mendicante (como o santo seu homónimo para o qual o título remete), e no seu confronto com os membros de uma companhia de venda de produtos e geradora de lucros que surgiu após o seu desaparecimento. O segundo acto, depois da morte do pai de Francisco, assenta na disputa pelo poder entre Francisco e Elias, o administrador da companhia, até à aparente vitória deste com a partida de Francisco.

Construído sobre uma referência reconhecível da cultura católica e prolongando-a até ao presente, o texto é uma parábola que permite a Saramago um exercício de dialéctica através do qual se desenvolve o debate de ideias, diferenças e contradições entre as personagens, especialmente as duas personagens que ocupam campos ideológicos opostos. São sobretudo as ideias de Francisco e as acções que planeia para destruir a companhia que se destacam ao longo da peça. Embora seja reconhecível um enredo muito simples e espaço, tempo e personagens se aproximem da realidade de um escritório, a acção progride através do confronto verbal de ideias e poderíamos dizer que essa é toda a acção da peça. Por outro lado, o recurso a alguns elementos fantásticos tais como a morte do pai por desejo formulado pelo filho ou o seu reaparecimento na figura de um pobre por chamamento de Francisco ameaça a matriz realista, permitindo a irrupção do inexplicável, do insólito. Este efeito não quebra a credulidade do leitor nas ideias de mundo antagónicas que vão sendo debatidas e não põe em causa a possibilidade de mudança que é a proposta central da peça.

O desfecho permite imaginar o que poderá ser a segunda vida de Francisco, agora como João, uma vez decidido que irá combater a pobreza. O pensamento dialéctico praticado na peça irá conduzir a uma síntese que resolve o impasse: defender a pobreza não anula a riqueza.

Cabe então passar à acção, lutar contra pobreza, ser um outro homem, como escreve Saramago no final da peça.

“É a pobreza que deve ser eliminada do mundo. A pobreza não é santa. Tantos séculos para compreender isto. Pobre Francisco. (Para os outros). Algum de vós quer vir comigo? Tomarei o nome de João, que é o meu nome verdadeiro. Se vou para outra vida, outro homem serei”.9


1 José Saramago, A Noite, Lisboa: Editorial Caminho, 1979

2 Revista de Teatro do Grupo de Campolide, Programa, nº3 Novembro/Dezembro de 1979

3 Idem, p.8

4 Revista de Teatro do Grupo de Campolide, Programa nº 2, Maio, 1979, p. 24

5 Por exemplo: Memorial do Convento, 1999, pela Companhia de Teatro de Almada, A História do Cerco de Lisboa, 2017, também pela CTA, Ensaio sobre a Cegueira, 2004, pelo Bando, Jangada de pedra, 2013, também pelo Bando, Jangada de pedra, 2007, pelas Lêndias D’Encantar, Viagem do Elefante, 2013, pelo Trigo Limpo, As intermitências da morte, 2012, pela Quinta(5ª) parede-Associação de Artes cénicas na Escola.

6 Em A noite, espectáculo de 2013 no Teatro da Trindade, produção da Yellow Star Company.

7 Boletim do Grupo de Teatro de Campolide nº1, Novembro de 1979, s.p. [p.2]

8 José Saramago, Que farei com este livro?, Editorial Caminho, Lisboa, 1988, p.13

9 José Saramago, A Segunda Vida de Francisco de Assis, Editorial Caminho, Lisboa, 1987, p.131

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