Intervenção de Pedro Penilo, Encontro Nacional do PCP «Do papel e política do Estado aos meios necessários. Uma outra política de Protecção Civil»

Testemunho sobre ocorrências durante o incêndio de Odemira a 5 e 6 de Agosto de 2023

Testemunho sobre ocorrências durante o incêndio de Odemira a 5 e 6 de Agosto de 2023

De 1 a 6 de Agosto deste ano, encontrava-me a passar umas curtas férias com o meu filho de 9 anos, acampados no Parque de Campismo de S. Miguel, no concelho de Odemira, Freguesia de S. Teutónio, muito perto de Odeceixe, concelho de Aljezur.

O Parque de Campismo fica junto à Estrada Nacional 120, nos limites do Parque Natural do Sudoeste Alentejano, a 5 km da Praia de Odeceixe. Pela sua tranquilidade e preços acessíveis, é procurado por famílias com crianças. Durante o dia, uma parte dos campistas desloca-se às praias próximas, nomeadamente a sul. Outros preferem ficar no parque, usufruindo da piscina. Ocasionalmente, deslocam-se a S. Teutónio, 11 km a norte, para compras.

O Parque de Campismo fica então no extremo sul do concelho de Odemira, encostado ao concelho de Aljezur.

No dia em que deflagrou o incêndio, deslocámo-nos de carro à vila de S. Teutónio, à hora do almoço, para fazer algumas compras.

No dia seguinte, regressaríamos a Lisboa, pelo que estávamos a gozar o último dia no Parque, na companhia de uma família amiga.

Eis aqui as notas que tomei na minha agenda, assim que cheguei a Lisboa:

13:00 - Almoço e compras em S. Teutónio.

14:15 - Regressamos ao Parque.

14:30 - Passamos por focos de incêndio, à beira da N120, a 2 km do Parque. Parece apenas uma queimada, mas não se vê ninguém e as chamas estão junto à estrada, entre árvores. Fico alerta, mas tranquiliza-me a aparentemente pequena dimensão dos focos, a distância do parque e o facto de estar do outro lado da estrada.

14:45 - No parque, deixo o carro junto à tenda. Tomamos um duche. Depois, vamos acompanhando a coluna de fumo a crescer e o vaivém de helicópteros de combate ao incêndio.

15:30 - Alguma agitação dos campistas. Há chamas junto à vedação do Parque. Metemo-nos no carro, abandonamos o parque e deixamos tudo para trás. À saída do parque, já a N120 está cortada na direcção Norte. Rumamos para Odeceixe.

15:45 - Estacionamos numa rua da periferia de Odeceixe. Encontramos outros campistas, entre os quais os nossos amigos, que tem também um filho de 9 anos. Sentados no passeio, vamos seguindo à distância o avanço do incêndio. Estamos todos em calções e sandálias. Não há notícias. Corre o rumor de que o Parque está a arder.

17:00 - Cansados de esperar junto dos carros, as crianças saturadas e agitadas, procuramos uma esplanada para nos sentarmos a descansar. Odeceixe é uma vila turística, tudo é muito caro e em qualquer bar ou restaurante temos de esperar muito tempo para sermos servidos. Decido ligar ao 112, para pedir informações. Quero saber se existe uma plataforma que nos informe dos desenvolvimentos, do estado do parque, da possibilidade de regressar ou não, do momento de abertura da N120 e da eventual existência de um ponto de acolhimento e assistência. O 112 indica-me o número 1820. Ligo ao número 1820. O número 1820 dá-me o número da “autoridade local de protecção civil”. A cada chamada tenho de explicar tudo outra vez. Ligo à “autoridade local de protecção civil”. É um posto da GNR. Dizem-me não existe nenhuma “plataforma”, estão a trabalhar no combate ao incêndio e não podem prestar esse tipo de apoio.

Estamos cansados e saturados. Não sabemos o que se está a passar. Começa a ficar frio. Começamos a imaginar que vamos passar ali a noite e que é altura de começar a procurar jantar.

Odeceixe está cheio de campistas sem apoio nenhum. Procuram um lugar para jantar, esperam nas filas de restaurantes caríssimos e de serviço lento, procuram alojamento. Sabemos pelas notícias que a Câmara de Odemira tem um centro de acolhimento em S. Teutónio, inacessível para os campistas por causa do incêndio e do corte de estrada.

O meu telemóvel está a ficar sem bateria, o carregador ficou na tenda. Temos de vigiar as crianças, porque perdê-las de vista num lugar desconhecido pode ser um sarilho mais. Eu começo a pensar em regressar a Lisboa depois do jantar, à noite, por estradas desconhecidas, sem o GPS do telemóvel, imaginando que a N120 não abrirá tão cedo. Vou-me preparando para a ideia de ter perdido todos os meus pertences.

Os meus amigos do parque entraram de férias há pouco tempo. Não se conformam com a ideia de voltar para casa e perder as férias. Deixaram no parque equipamento de campismo e bens de valor considerável. Decidem procurar alojamento. Durante uma hora procuramos. Não há. Num caso, pedem 100€ por um quarto. Desistem, temos todos fome.

21:00 - Encontramos um restaurante do centro, onde ainda é possível jantar. Esperamos na fila. Daí a meia hora sentamo-nos para jantar.

22:00 - Jantamos. Está frio e as melgas atacam.

23:00 - No final do jantar, uma campista anuncia em voz alta que já se pode voltar ao parque. Palmas de alegria. À saída de Odeceixe, uma longa fila de carros prepara-se para regressar, uns a casa, outros ao parque. Na primeira barragem de controle, a polícia informa-nos que é possível ir ao parque “buscar as coisas”. À entrada do parque, a polícia informa-nos que “o parque está operacional, que podemos ficar.”

00:00 - Procuro no bar uma tomada para carregar o telemóvel e informar a família que estamos bem. O meu filho adormece sentado, à minha frente.

O ar no parque é irrespirável. Há cinzas no ar. Estou muito cansado, o meu filho dorme. Cruzo-me com o meu amigo campista. Confia que, se nos deixam ficar no parque, é porque é seguro. A sua família já dorme. Reticente, o cansaço vence-me. Deito o meu filho na tenda e carrego o carro, por precaução.

01:30 - Deito-me e adormeço.

03:00 - Acordo com um grito. As pessoas no parque assustam-se porque vêem focos de incêndio, não muito longe. A qualidade do ar piorou ainda mais. O meu carro está coberto de cinzas. Ouvem-se máquinas a trabalhar no rescaldo em redor do parque. Há gente a abandonar o parque a meio da noite. Não há descanso, não há tranquilidade, o parque não está em condições de salubridade e de segurança. Ponho o meu filho, a dormir, vestido e calçado, no carro. Tento desmontar a tenda, mas desisto. Abandono a tenda. Decido sair, rumar a Milfontes e aí, com o ar limpo, dormir no carro.

04:00 - Saímos do parque. A N120 está aberta para Norte. Logo ao primeiro quilómetro, quase me arrependo. O cenário é medonho. Ainda ardem tufos de mato e há árvores incandescentes ao longo da estrada. Lembro-me de Pedrógão. Conduzo uns quilómetros por entre o fumo. A passar em S. Teotónio, o ar limpa.

05:00 - Chegamos a Milfontes. Procuro um lugar de estacionamento e adormeço. O meu filho dorme reclinado, vestido e calçado.

07:30 - Acordamos, tomamos o pequeno almoço e rumamos a Lisboa. No caminho, começo a adormecer ao volante e tenho de parar o carro para dormitar um pouco. Chegamos a Lisboa às 13:00.

Por causa da exposição prolongada às picadas de insectos, das cinzas, da comichão e do longo tempo passado no carro, calçado, o meu filho desenvolve uma reacção alérgica nos pés, que o obriga a ficar três dias em tratamento, deitado e a gelo.

Os nossos amigos ficaram mais dois dias e depois desistiram. Foram para outro parque. Passados três dias, o parque é evacuado, por causa da inversão do vento. A acumulação de carros na estrada, faz os campistas e outros em fuga passarem momentos de susto, entre chamas.

Camaradas:

Algumas questões me ocorreram e ocorrem:

Porque razão não existe ou não funciona um serviço integrado e de dimensão nacional, de informações às vítimas, pessoas em perigo ou com necessidade de assistência na catástrofe, que preste todas as informações necessárias?

Porque não é articulada a assistência, o apoio, o alojamento e a alimentação necessária, particularmente a crianças, com concelhos limítrofes, prevendo dificuldades de acesso a respostas demasiado centralizadas?

Porque entidades como a Protecção Civil, as Câmaras de Odemira e Aljezur e o Parque de Campismo de S. Miguel não se sentiram obrigadas a enviar simples SMS a todos os campistas, que, por razões compreensíveis, estavam em situação particularmente vulnerável, sem apoio, entregues a notícias, facebooks, fogos.pt e rumores?

Como é possível que o parque não tenha sido em devido tempo evacuado, de tal modo que uma parte importante dos campistas saiu de iniciativa própria?

Como é possível que tenha sido permitido aos campistas pernoitar e ficar num parque com o ar empestado de cinzas, com máquinas a trabalhar em redor e perigo de reacendimento ou mudança de ventos? (Neste caso suspeito que o parque foi criminosamente aberto, para contornar a falta de resposta da Protecção Civil para os campistas.)

Estas perguntas decorrem de uma experiência que me parece inadmissível, tendo em conta a terrível história de catástrofes nestas últimas décadas e a previsível perigosidade de semanas de intenso calor e de muito baixa humidade.

Demonstram uma ausência de planeamento sério e preparado para todas as circunstâncias e da ausência de meios para lhe dar eficácia.

Como sempre, cumpriram os bombeiros, que salvaram o parque, lutaram contra o incêndio em condições extremas e o venceram, por fim.

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