Intervenção de

Debate sobre Projecto de Lei nº 1/X (PCP) Interrupção Voluntária da Gravidez<br />Intervenção de Odete Santos

Senhor Presidente Senhores Deputados A caminhada das mulheres portuguesas rumo a uma nova lei sobre a IVG que respeite os seus direitos fundamentais, está semeada de hesitações, promessas goradas, perseguições penais.Desde que o não triunfou num referendo que surge como entropecedor da vontade maioritária dos legisladores, sucederam-se os processos judiciais. Mulheres foram sujeitas a escutas telefónicas, muitas delas ilegais. Foram levadas à Polícia e inquiridas sobre a sua vida mais íntima. Obrigaram-nas a sentar-se numa sala como se de criminosas se tratasse. O zelo na perseguição de mulheres post processo referendário, visou amedrontar, concretizando a violência do Estado sobre as mulheres.O Estado que não lhes garante o direito à maternidade consciente. O Estado que, nas mãos da direita, as considerou um grupo desfavorecido- vide Código do Trabalho. Um grupo débil e sem poder reivindicativo. Um grupo destinado a desempenhar um papel subalterno, sem espaço para o exercício da cidadania. Estes 6 anos desde o referendo foram dolorosos anos, em que, apesar de tudo, e contra o estigma da sala de audiências, e a devassa da sua vida sexual, as mulheres continuaram a arrostar com os riscos do aborto clandestino, como o indicam, nomeadamente os dados divulgados no ano passado, pela Direcção Geral de Saúde. “ O aborto clandestino levou em 2003 aos hospitais portugueses uma média de 3 jovens por dia. Nesse ano deram entrada nas unidades de saúde 1019, casos devido a complicações.O recurso ao aborto, que deve ser o último recurso, mas que não pode deixar de existir, é de todos os tempos.Num relatório apresentado em 2004,a Organização Mundial de Saúde afirma: As estimativas relativas ao ano 2000 indicam que todos os anos se fazem no mundo inteiro 19 milhões de abortos clandestinos, o que quer dizer que umas em cada dez gravidezes terminam em aborto clandestino, de que resulta a ratio de 1 aborto inseguro para cerca de 7 nascimentos com vida.E ainda segundo a OMS as mulheres que recorrem aos serviços de curiosas (e são estas as mulheres de poucos recursos) põem a sua saúde e vida em risco. Por todo o mundo calcula-se que morrem 68.000 mulheres como consequência do aborto clandestino.E a verdade é que também a Europa não leva em devida conta as conclusões do Cairo e de Beijing no que toca aos direitos humanos que na área da sexualidade se chamam direitos sexuais e reprodutivos.Na Europa a percentagem de mulheres que morrem em consequência do aborto clandestino é de 20%, relativamente ao total de mortes maternas. As Nações Unidas num documento divulgado já no corrente ano de 2005 afirmam criticamente:” E mesmo na União Europeia alguns países restringem ou proíbem mesmo o aborto, especialmente o aborto medicalizado, ou exigem complicados formalismos que desencorajam as mulheres de recorrer ao aborto legal forçando-as ao aborto ilegal e inseguro”.Ora isto passa-se exactamente em Portugal, no ano em que se assinalam os dez anos da conferência de Beijing.Em Portugal não se implementa a lei da educação sexual, faz-se o panegírico à la Bush da abstinência sexual, panegírico que falhando, provoca gravidezes adolescentes, e mesmo graves doenças sexualmente transmissíveis. O planeamento familiar, apesar dos progressos realizados, conhece dificuldades resultantes, nomeadamente, de deficiências de funcionamento, nomeadamente nos horários dos Centros de Saúde.Em Portugal julgam-se mulheres. Condenam-se algumas. Condenam-se mesmo quando não se fazem julgamentos e se força as mesmas a aceitarem o pagamento de indemnização para expiação da sua culpa, a instituições determinadas pelo Tribunal. É isto a solução da suspensão provisória do processo que rejeitamos.Outras são absolvidas. Mas passam pela traumática prova de exposição da sua intimidade em praça pública.O que temos de resolver é um problema de saúde pública criado pela lei penal. A questão no que toca às mulheres é esta:Deverá o direito penal considerar como crime a conduta da mulher que recorre ao aborto? Seja em que circunstâncias for?A resposta já foi dada na França há muito tempo. Em 1975 o Parlamento Francês aprovou a lei Veil (de Simone Veil) nos termos da qual, a mulher ainda que recorrendo ao aborto fora das condições legalmente permitidas nunca comete um crime. A lei só criminalizou as condutas dos que praticassem o aborto na mulher.Solução que temos no nosso projecto de lei. Porque a mulher que recorre ao aborto age em situação de angústia, e na comunidade não se encontra interiorizada a reprovação que merece que uma conduta seja considerada um crime.Situação idêntica se encontra na legislação dinamarquesa, holandesa, polaca, por exemplo. Uma solução muito próxima existe na lei espanhola.O que há que criminalizar é o comportamento daqueles que, ainda que a solicitação da mulher, fazem um aborto clandestino, pondo em risco a saúde e a vida das mulheres.Exceptuando da ilicitude a prática do aborto por profissionais e em estabelecimento legalmente autorizado, nas condições constantes do nosso projecto, que nos escusamos de repetir, por ser sobejamente conhecido.Em muitos países, legalizou-se o aborto quando requerido pela mulher nas primeiras doze semanas. Solução brilhantemente defendida na célebre decisão do caso Roe versus Wade do Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos da América.Mesmo a França, que tinha adoptado as dez semanas na lei Veil, alterou a lei em 2001, aumentando o período para 12 semanas. E revogou a disposição que considerava crime a propaganda de métodos abortivos, que aliás violava claramente o artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Como foi decidido pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que condenou a Irlanda no processo Open Door, por ter mandado encerrar duas clínicas que aconselhavam as mulheres que queriam abortar, encaminhando-as para clínicas Inglesas.A nova lei francesa explicita até que a mulher que compra um medicamento abortivo sem receita médica não pode ser considerada cúmplice na venda ilegal.E isto põe um outro problema, relacionado aliás, com a questão do direito das mulheres a todas as descobertas científicas atinentes aos direitos sexuais e reprodutivos, direito reafirmado, aliás, pelo Comité de Peritos do Conselho da Europa.Tendo começado a cair, numa luta prolongada e fértil em incidentes provocados pelos partidários do não, as barreiras que impediam o acesso das mulheres à pílula RU 486 que hoje se encontra acessível na maior parte dos países europeus, é tempo de Portugal dar um claro sinal, alterando a lei, que convide os Laboratórios Exelgyne a solicitar autorização para comercializar em Portugal a referida pílula.A medicalização da IVG, tornou possíveis avanços de que beneficiaram as mulheres, nomeadamente pela possibilidade de recorrer à interrupção muito mais cedo, sem a delonga exigida pelo aborto cirúrgico.Hoje mesmo foi apresentada na Assembleia por uma organização de mulheres, “Mulheres on line”, uma petição chamando a atenção para a importância da utilização daquela inovação científica. As tentativas de utilização de centros de aconselhamento para inutilizar a possibilidade de em tempo legal, recorrerem à IVG, saiem, assim, fortemente frustradas.Por último dois apontamentos ainda:1- A argumentação dos que se opõem à alteração da lei radica num preconceito anti-feminino. As mulheres fazem abortos por motivos fúteis, segundo eles. Desmentem essa afirmação quando, em desespero de causa e para fugir ao debate sobre a descriminalização da IVG, aprovam uma resolução em que claramente desculpabilizam as mulheres. Mas continuam a persistir diversos factores que impedem as mulheres de ter os filhos que desejam. Persiste a taxa de feminização da pobreza. O já minguado abono de família é retirado a muitas famílias. E os salários são baixos.E aumenta a taxa de desemprego. E a desregulamentação das relações de trabalho, nomeadamente a desorganização do tempo de trabalho, impede a maternidade e a paternidade felizes.2- O 2º apontamento é relativo às questões relacionadas com o direito à vida. O argumento que a direita brandiu para submeter as mulheres aos ditames de um Estado que se arroga prepotentemente o direito de impor a toda a comunidade as regras religiosas e morais de uma parte dos cidadãos.Afirmando, sem provas científicas, que o embrião mesmo nas suas fases mais incipientes, já é pessoa humana, a Direita mais retrógrada quer ter a verdade absoluta. E faz tábua rasa de todas as concepções contrárias. E há, na comunidade científica, sobretudo nesta comunidade, quem, com provas científicas conteste aquela afirmação. Foi constatando este facto que, num acórdão de 8 de Julho de 2004,em processo instaurado contra a França, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, com base • na Convenção Europeia, na Convenção de Oviedo, • no seu Protocolo adicional proibindo a clonagem humana • no Projecto de protocolo relativo à investigação bioética • no Direito comparado • no estado da Ciência • Concluiu que o artigo 2º da Convenção Europeia dos direitos do Homem (o que garante e obriga os Estados a garantir o Direito à vida) não se aplica ao embrião e ao feto.Que sendo vida de espécie humana, como o afirma o Tribunal, e devendo ser protegidos em nome da dignidade humana, isso não faz deles uma pessoa com direito à vida, nos termos do artigo 2º da Convenção. E assim é, de facto para a maior parte da população mundial (recordaria que 2/3 das mulheres vivem em países onde está legalizada a IVG). E assim sendo, não pode o Direito Penal tomar partido por esta ou por aquela concepção religiosa.A protecção da dignidade da vida de espécie humana, faz-se com medidas sociais e económicas, provada que está até à saciedade, a perversidade da utilização da lei penal que não a protege nem a dignifica e antes sanciona graves ofensas à integridade física e à vida das mulheres.Em 1984 dissemos:“Há sempre razões profundas para decidir um acto que ninguém deseja, nem considera um bem. E não falamos das situações extremas em que a vida da mulher corre perigo, do aborto terapêutico, eugénico ou resultante de crime sexual, mas sim da grande maioria dos casos em que a mulher decide interromper a gravidez porque não vê condições económicas, sociais, pessoais até para dar vida a um ser humano a quem sabe não pode assegurar um futuro e uma vida feliz”“Pela nossa parte lutaremos, como já aqui afirmámos, para que esta Assembleia venha a aprovar, sem mais delongas inúteis, um regime legal digno das mulheres portuguesas”Desde aí não desistimos de alterar a lei.E voltaremos. Porque há sempre a ameaça de retrocessos. Como a recente história a nível mundial, o comprova.O Direito das mulheres à dignidade. O Direito de optar. O direito à intimidade da vida privada. O Direito à saúde. O Direito à educação. O Direito à vida. O Direito à Liberdade. O Direito à segurança. O Direito à liberdade de consciência. O Direito à maternidade e à paternidade feliz e conscientes. Todos eles direitos humanos. É o seu reconhecimento que tem mobilizado e mobiliza mulheres e homens que constroem o progresso do mundo.Por isso, voltaremos. Voltaremos sempre.

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