Intervenção

Debate da moção de censura ao Governo - Intervenção de Jerónimo de Sousa na AR

Debate da moção de censura n.º 1/X , ao XVII Governo Constitucional

 

Sr. Presidente,
Sr. Primeiro-Ministro,
Srs. Membros do Governo,
Srs. Deputados:

Convocados que fomos para discutir e votar uma moção de censura ao Governo, centrada no facto da fuga e do rasgar de um compromisso do PS e do Governo assumido perante o povo português, importa sublinhar que esse enfoque não esbate uma consideração crítica e de censura a outras promessas não cumpridas que, em tempos de campanha eleitoral e em declarações programáticas, tanto jeito deram para conseguir votos!

Promessas e compromissos que agora o Governo afirma terem sido só objectivos não concretizados pela força das circunstâncias.

Não! Não foram as circunstâncias! Foram as opções políticas conscientemente assumidas.

Nos impostos, na repartição da riqueza, em relação ao desemprego, às injustiças e às desigualdades sociais e no Código do Trabalho e dos direitos dos trabalhadores, o Governo não se limita a baixar as bandeiras eleitorais; age e governa, optando por se colocar do lado dos poderosos e dos privilegiados, em desfavor da maioria dos portugueses e, arrisco em dizer, da maioria dos que lhe deram o voto!

Mas do que estamos hoje a tratar é da negação da realização do referendo sobre o Tratado baptizado de Lisboa, clonado do derrotado Tratado Constitucional.

Com uma argumentação insustentável, afirmou o Sr. Primeiro-Ministro que a recusa ao referendo se deve ao facto de que antes seria o Tratado Constitucional e agora é o Tratado de Lisboa, fugindo à comparação da matriz e dos conteúdos das duas criaturas.

Mas, se tinha tal entendimento, por que manteve o tabu até à última?

Num rasgo de sinceridade, lá deixou escapar que não quis comprometer o acordo assumido entre os dirigentes da União Europeia, à revelia dos povos dos países europeus, que era mais seguro despachar a coisa pela via da ratificação parlamentar!

Mas, então, tantas loas e benzeduras ao Tratado e porquê tanto receio da consulta aos povos de cada país? O que faz correr os dirigentes da União Europeia? O que fez mudar o Primeiro-Ministro, José Sócrates?

O receio está no conhecimento dos seus conteúdos! No conhecimento de que União Europeia está a ser construída e a quem serve.

Mas, em relação ao método, com aquela crispação que lhe é típica e querendo fugir às suas responsabilidades, critica, designadamente o PCP, porque é a favor do referendo sobre o Tratado e foi contra o referendo sobre a IVG.

Não se limpa, Sr. Primeiro-Ministro!

Primeiro, não temos a concepção de que quem é a favor de um referendo tem de ser a favor de todos os referendos!

 Segundo, no nosso compromisso eleitoral, defendemos o referendo sobre o Tratado e considerámos que a Assembleia da República tinha condições para aprovar uma lei sobre a IVG sem referendo. Nós não enganámos ninguém, os senhores é que enganaram!

Terceiro, o Tratado implica questões de soberania nacional, soberania que a Constituição consagra como una e indivisível residente no povo português. A despenalização da IVG era uma grande causa social.

Quarto, foi o PS que, no seu programa eleitoral e no Programa do Governo, garantiu o referendo sobre a IVG e sobre o Tratado.

Avançou com um, renegou o outro. Isto, apesar de ter promovido uma revisão constitucional para permitir o referendo sobre qualquer tratado europeu.

Com a arrogância de quem não tem razão lá remata que é um europeísta e nós somos contra a Europa.

Um dia, Sr. Primeiro-Ministro, haveremos de discutir a diferença entre ser-se europeu e português e ser-se português e europeu, particularmente um Primeiro-Ministro que foi eleito pelos portugueses e não pelos europeus.

Mas a frase lapidar e propagandística impõe ir ao conteúdo do Tratado entendido como peça e não como fim de um processo de construção de uma União Europeia onde quem decide são os mais poderosos, como uma matriz e orientações neoliberais, federalistas e militaristas.

E, antes disso, sobre a Europa nós defendemos os princípios da independência nacional, do respeito dos direitos do homem, dos direitos dos povos, da igualdade entre Estados, da solução pacífica de conflitos internacionais de não ingerência nos assuntos interno de outros Estados, da cooperação com todos os povos para a emancipação e o progresso da humanidade. Somos contra esta construção desta União Europeia, da flexissegurança, do mercado transformado em «bezerro de ouro». Somos por outra, da que fala a Constituição da República.

Salvo uma intervenção anterior, a questão do método não é, de facto, uma questão pequena, mas quem nos estiver a ouvir conclui que uns querem o referendo, outros não querem, sem saber do que estamos a tratar. De repente, o Tratado é transformado «na coisa»! Com este Tratado, perdemos soberania. Desde logo porque a nova arquitectura do poder na União, a nova distribuição do poder no processo de decisão é realizado em detrimento dos países como Portugal.

É uma evidência que Portugal perde força e capacidade de defender os seus interesses, enquanto outros reforçam as suas posições e poder de decisão nas instituições supranacionais da União Europeia. Aliás, podemos verificar que quase todos - excepto Portugal, obviamente! - «puxaram a brasa à sua sardinha».

Portugal perde em todos os níveis nas instituições: perde Deputados no Parlamento, perde influência no Conselho e na Comissão, perde um comissário permanente, perde peso no sistema de votação.

Os Estados-membros, como Portugal, ficarão numa posição mais frágil, enquanto os seis «grandes», designadamente a Alemanha, a França e o Reino Unido à cabeça, reforçam o seu poder. Reforço que se traduzirá na concretização de um directório que, em grande medida, determinará a condução das políticas europeias.

Há quem queira convencer os portugueses que nem a mais pequena parcela de soberania é posta em causa com o novo Tratado. Mas não há nenhum habilidoso encartado nem rebuscados argumentos que possam iludir a simples evidência de que, mesmo que não houvesse no novo Tratado, como há, novas perdas de soberania, nomeadamente com o alargamento substancial das matérias a decidir por maioria qualificada ou com as novas transferências para a esfera da competência exclusiva ou partilhada da União Europeia, países como Portugal decidem menos e pesam menos na definição de matérias que são nucleares no exercício do direito de soberania e que foram alienadas em momentos anteriores.

Querem passar por cima do facto de os Estados-membros terem perdido soberania em áreas que são hoje competência exclusiva da União Europeia, como é o caso da política monetária; da política comercial comum, na definição das regras de concorrência, da união aduaneira e de inúmeras competências agora chamadas «partilhadas», que condicionam fortemente a soberania nacional; da política económica e da definição da política para diversos sectores como a agricultura e pescas e os transportes; da política social e da justiça, entre outras, no exercício das quais os Estados-membros como o nosso país estão ainda mais secundarizados com o Tratado de Lisboa.

Mas, com o novo Tratado, os países como Portugal não perdem apenas capacidade de decisão e peso nas áreas nucleares de soberania anteriormente transferidas. Perdem novas. Não se trata apenas de matérias institucionais de relevo, como a eleição do Presidente do Conselho Europeu, que estão sob o voto da maioria qualificada no Conselho, são novas cedências de soberania nos mais diversos domínios e em relação aos quais se perde o direito de veto. Domínios como os do controlo das fronteiras, da política de asilo, de imigração, da cooperação judicial, na regulação da EUROJUST e da EUROPOL, no estabelecimento de novos poderes de regulação nos transportes, na área dos direitos de propriedade intelectual, na energia e entre muitos outros como os da negociação e conclusão de acordos com países terceiros ou organizações internacionais no campo da política comercial.

Competências que se transferem também para o domínio exclusivo da União, como é o caso da conservação dos recursos biológicos do mar, com o impacto que inevitavelmente tem num país como Portugal, que possui a maior zona económica exclusiva da União.

Era tempo de o povo português ter a palavra perante a vastidão de competências alienadas da sua soberania, passadas e presentes, no novo Tratado.

Não pense, Sr. Primeiro-Ministro, que, sobre esta matéria, vai passar «como cão por vinha vindimada».

Nós vamos agendar, gastando os poucos agendamentos potestativos de que dispomos, a discussão do referendo nesta Assembleia da República para confrontar os Deputados com as suas promessas anteriores e com a sua negação nos tempos que correm. Em nome da soberania nacional, em nome de Portugal.

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