Intervenção de Alma Rivera na Assembleia de República

É com o 25 de Abril de 1974 que se dá algo de absolutamente inovador no nosso constitucionalismo

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Sr Presidente da República

Sr Presidente da Assembleia da República

Sr Primeiro-ministro e demais membros do Governo

Ilustres Convidados

Sras e Srs Deputados.

Comemoramos nesta sessão duzentos anos da primeira constituição portuguesa, do constitucionalismo, uma história de avanços e recuos, de anseios do povo português, da sua participação e dos seus direitos conquistados a pulso.

Mas um olhar atento confirma ainda que não é possível fazer andar para trás a roda da história e que o que é inovador passa a caduco, o que é revolucionário passa a conservador, o que é elemento de progresso passa a ser agente de retrocesso. E sempre, sempre as classes depostas na sua dominação procuraram acertar contas e recuperar poder.

Nascida da Revolução Liberal de 1820, influenciada pela Revolução Francesa, transportando o ideal inovador e revolucionário de confronto com as caducas estruturas políticas, económicas e sociais do Absolutismo monárquico, a Constituição de 1822, elaborada por umas Cortes Constituintes predominantemente representativas da burguesia, enquanto classe social ascendente, inscreveu no seu texto os princípios liberais de então:

- o princípio da soberania nacional (assente na nação e não no rei, por graça divina);

- o princípio da representação política, com um poder legislativo exercido por uma câmara única, eleita por sufrágio direto e secreto, ainda que fortemente censitário, sem participação das mulheres, dos menores de 25 anos, dos filhos-família a cargo dos pais, dos criados de servir, dos vadios e dos membros das ordens monásticas;

- o princípio da separação e independência de poderes segundo a separação clássica entre o poder legislativo, o poder executivo e o poder judicial, vincando a supremacia do legislativo;

 - e a consagração de direitos fundamentais ancorados na ideia de liberdade “de não fazer o que a lei não manda, nem deixar de fazer o que ela não proíbe”.

Esta nova organização do poder e os direitos individuais consagrados, de liberdade de expressão; de propriedade; a igualdade perante a lei; a abolição das penas cruéis; a igualdade na admissão a cargos públicos; a ideia de uma instrução mínima para jovens de ambos os sexos, todos estes direitos contaram com forte oposição da reação absolutista que não tardou com o golpe da Vilafrancada, visando a restauração do absolutismo monárquico.

 A outorga da Carta Constitucional por Dom Pedro IV, pondo fim a um período de indefinição constitucional, não podendo apagar a ideia de Constituição e de representação, restaurava a legitimidade constituinte monárquica, conferindo-lhe um poder moderador que anulava os restantes. Este novo texto restringiu em muito o direito de voto para a Câmara dos Deputados, limitando-o aos mais abastados, as eleições passaram a indiretas e foi criada uma Câmara dos Pares de base aristocrática.

A Constituição seguinte, de 1838, apesar de resultar da «Revolução de Setembro», em que a ação das massas populares foi decisiva, acabou por ser redigida pelas forças triunfantes oriundas da pequena e média burguesia ascendente, acabando por conciliar aspectos da Constituição de 1822 e da Carta Constitucional.

Novos direitos fundamentais surgiram: a liberdade de associação, a liberdade de reunião, o direito de resistência. Mas o voto, esse, apesar de agora directo continuava limitado a quem tinha posses.

Foi também sol de pouca dura.

Quanto ao povo, permaneceu arredado do poder político, mas não calou a revolta. Da «Patuleia» à “Janeirinha” até ao estertor final da monarquia, com a ascensão do movimento operário e do republicanismo, a monarquia soçobrou com a Revolução de 1910.

Com a República, nova Constituição. Mas a base social que a determinou não participou da Assembleia Constituinte e foi assim traída pelo poder republicano, exercido por uma elite de notáveis, liberais e hostis ao movimento operário.

A Constituição de 1911, trazendo importantes progressos, desde logo a abolição da monarquia e dos títulos de nobreza, a separação entre as Igrejas e o Estado e a liberdade religiosa, entre outros, não deixou de refletir a sua natureza de classe recusando, nomeadamente, o direito à greve.

Com a ascensão do fascismo, nova Constituição foi redigida sob a orientação de Salazar.

Encenou-se o plebiscito, sem liberdades públicas nem debate de alternativas, de voto obrigatório para os chefes de família que soubessem ler e escrever, que nem sequer era secreto e em que as abstenções foram contadas como votos a favor.

Foram 48 anos de ditadura fascista, de liquidação das mais básicas liberdades, de feroz repressão sobre quem aspirava uma vida melhor.

Mas 48 anos em que o povo lutou e acumulou forças, que desaguaram na Revolução de Abril de 1974.

E é com esse processo revolucionário que se dá algo de absolutamente inovador no nosso constitucionalismo:

Da Revolução nasce uma Assembleia Constituinte em que este povo teve voz.

Uma constituinte em que todos os cidadãos maiores de 18 anos puderam votar, em eleições livres e democráticas, com conversão proporcional de votos em mandatos.

Ao contrário das outras revoluções, a seu tempo inovadoras, Abril foi ao fundo da estrutura económica da sociedade e alterou-a, refletindo na Constituição as conquistas que nas ruas, nas empresas, nos campos se alcançavam sempre a pulso, sempre com oposição reacionária.

O que está na Constituição de 76, veio da força do povo que quis na sua Lei Fundamental um projecto de futuro, uma sociedade sem exploração, alicerçada na justiça e na igualdade.

Apesar das várias revisões que a mutilaram, a nossa Constituição é uma referência comum para todos quanto defendem a liberdade e a democracia, os direitos económicos, sociais, políticos e culturais, o direito ao trabalho, à saúde, à educação, à segurança social e à proteção na doença ou na velhice.

Sem paralelo em anteriores constituições, estes são direitos de grande atualidade e sentido de futuro, que importa cumprir e não deixar sucumbir como pretendem aqueles que tudo tem feito contra a sua aplicação e que agora os querem riscar, rasgando a própria Constituição.

Num tempo em que se procura repristinar o liberalismo, revesti-lo de modernidade, é bom lembrar que o que antes era novo, é hoje caduco. O que há 200 anos era progresso hoje é um ideal de retrocesso, de aprofundamento de desigualdades e corresponde aos desejos dos que nunca se conformaram com as transformações de Abril e da sua Constituição.

Escreveu o poeta que só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, a habitação, a saúde e a educação.

O resto é história, porque o futuro será sempre construído com a força e vontade de mudança dos trabalhadores e do povo.

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