Intervenção de Pedro Duarte, 2.º Encontro Nacional do PCP sobre Cultura

Cinema

Bom dia a todos camaradas, agradeço o privilégio de poder falar perante uma plateia tão especial. E agradeço ao Partido ter organizado um encontro tão importante.

O sector do cinema em Portugal continua a sofrer da ausência de qualquer política pública estratégica — que nenhum governo português, no período democrático, procurou implementar — que vá além da alocação de verba (que sabemos já de si ser insuficiente) a esta atividade, capaz de criar bases para, por um lado, garantir aos trabalhadores do sector a estabilidade e dignidade profissionais indispensáveis à realização plena do seu potencial, por outro, condições para fazer chegar aos portugueses as obras cinematográficas produzidas em Portugal.

O cinema português é dotado de uma especificidade ao nível da originalidade das formas e realidades representadas, reconhecido nos festivais de cinema de todo o mundo — que para o tamanho do nosso país, é neles representado de forma muito desproporcional, se compararmos com outros países do tamanho do nosso — Este reconhecimento internacional não resulta de política pública que tenha sido desenvolvida, mas do facto de o cinema português ser herdeiro direto do 25 de Abril e do PREC, na sua liberdade criativa, na sua vocação que não é para o lucro. E é este cinema não voltado para o lucro que os sucessivos governos em Portugal têm tentado desmantelar, ativamente, para o substituir por um cinema português que desse lucro. Esta tentativa de reconversão do nosso cinema está a ser feita num ponto cirúrgico, para o qual chamo a atenção de todos os que aqui estamos: tem-se procurado mudar o cinema produzido em Portugal através da escolha de quem são os júris que decidem que filmes são financiados. Fazendo uma alteração cirúrgica na forma como são escolhidos os júris dos concursos públicos do Instituto do Cinema e do Audiovisual, fez-se com que um pequeno grupo de pessoas sozinha escolha o cinema do país inteiro, alguns dos quais são jurados há mais de 15 anos todos os anos, consecutivamente, e em vários concursos. Com pouquíssima renovação, estamos a falar de um pequeno grupo de pessoas que decide a natureza de uma expressão artística de um país inteiro.

Sou produtor de cinema, e para o ser, sou, por lei, obrigado a ter uma empresa. A minha vocação nunca foi a de ser empresário, foi a de fazer filmes acontecer. Mas em todas as interações, com o estado e com outros privados, sou em permanência empurrado para o papel de empresário. Ora, os empresários têm um objetivo: o lucro. O Instituto do Cinema e do Audiovisual é hoje uma estrutura esvaziada de visão política. O ICA tornou-se uma instituição em piloto automático guiada por regulamentos que sustentam uma máquina burocrática de uma complexidade tal que a principal actividade de quem se dedica à produção cinematográfica se tornou hoje não a produção de filmes mas a resposta a essa máquina, o que dificulta, por um lado, o acesso ao financiamentos por parte de estruturas de produção que não sejam à priori detentoras de capital capaz de manter equipas de secretariado permanente, e por outro, acrescenta obstáculos à execução dos próprios projectos que o ICA pretende viabilizar financeiramente, com verba insuficiente, e com uma tesouraria cuja liquidez sempre intermitente e pensada ano a ano, o que é incompatível com a natureza plurianual da actividade cinematográfica.

O sub-financiamento do ICA não foi interrompido pela legislação para o Cinema aprovada com ampla contestação popular na Assembleia da República em Outubro de 2020. Esta legislação, decorrente de uma diretiva europeia que recomendava a taxação das empresas de streaming em cada país europeu, que neles atualmente não pagam impostos — por exemplo França aproveitou para taxar as operadoras de streaming em 25% dos seus lucros, que revertem para o financiamento da produção independente de cinema em França — foi usada pelo Governo do PS para propor inicialmente uma taxação das operadoras de streaming em 0%, tendo depois subido para 1%, aos quais se somaram 4% de investimento dos lucros destas multinacionais nas produções que eles quiserem em Portugal, de uma maneira que permite a estas empresas contornar completamente o investimento em cinema português. Além disso parece não estar a ser cumprido pelo Governo o artigo da lei que define que passa a ser pago pelo Orçamento de Estado do Governo o custo anual permanente da estrutura de funcionamento do Instituto do Cinema e do Audiovisual. Continuamos a ter um instituto público cujos gastos não são financiados pelo Orçamento do Estado mas por uma taxa.

A falta de verba faz com que no cinema português ocorra algo que nem sempre é compreendido por quem está fora do meio: chamam muitas vezes “subsidio-dependente" a quem faz cinema em Portugal não percebendo que — salvo raríssimas excepções — os apoios públicos atribuídos servem para pagar alugueres de equipamentos e salários, claro, mas em grande com os trabalhadores a receberem menos do que os valores tabelados para o seu trabalho, ou com trabalhadores a fazerem horas extra gratuitas, ou recebendo 4 semanas e trabalhando 6, o que faz com que, de facto, os filmes estejam a ser parcialmente financiados pelos próprios trabalhadores, que o aceitam pelo chamado "amor à camisola", para que os filmes possam existir. Ou seja, os filmes em Portugal são também financiados pelos trabalhadores que os fazem, não apenas pelos subsídios.

No que toca a realizadores esta realidade é ainda mais flagrante. Peças fundamentais à feitura de um filme, têm de o levar às costas por 2, 3, 4 , 6 anos, não havendo — nem que um filme conseguisse ganhar todos os concursos públicos disponíveis no sector e tivesse o máximo de orçamento a que poderia almejar — dinheiro para pagar ao realizador para trabalhar todo este tempo a tempo inteiro, o que leva a que só possa ser realizador em Portugal quem, salvo raríssimas excepções, tenha dinheiro de família, viva de rendas, ou tenha outras profissões para se sustentar economicamente.

Desde o início do século XX, o cinema - ou num sentido mais lato do termo, “a imagem em movimento”, foi o veículo cultural hegemónico de propaganda de todos os poderes e regimes. Hoje esse lugar de propaganda é assumido em grande parte pela televisão e pela internet. Nesse contexto, é essencial que o canal de televisão público, a RTP, sobre o qual vou falar apenas na perspetiva do financiamento ao cinema que a RTP, pelo seu contrato de concessão, é obrigada a fazer, assuma o seu papel no financiamento de cinema como serviço público: infelizmente temos hoje uma RTP que não publica os dados sobre que montantes atribui, a quem, com que prazos, para que filmes, sem concursos com regras claras ou qualquer escrutínio. Falamos de uma instituição que recebe metade do orçamento de estado para a cultura em Portugal. É fundamental que pensemos como transformar esta que é a mais poderosa instituição cultural em Portugal.