Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-geral do PCP

Centenário do nascimento de Alves Redol

Ver vídeo

''

Assinalamos hoje aqui, uma vez mais, o centenário do nascimento de António Alves Redol.

Como sabemos, este centenário tem vindo a ser comemorado em diversas iniciativas promovidas por organizações do nosso Partido em vários pontos do País, a começar pela Festa do «Avante!» – e será ainda motivo de um suplemento do Avante! na próxima edição do nosso jornal.

É natural que assim seja, já que Alves Redol foi, é, uma figura maior da Literatura Portuguesa, um escritor de dimensão internacional, e complementou essa sua actividade literária com uma intensa e constante intervenção política, enquanto resistente antifascista e militante comunista.

Redol nasceu em Vila Franca de Xira e ainda muito jovem iniciou essas duas actividades, assumindo com coragem as consequências da sua postura, num tempo em que o fascismo se instalava e mergulhava o País numa negra noite que se prolongaria por várias décadas – num tempo em que as perseguições e a repressão caíam sobre todos os que, de uma forma ou de outra, ousassem contestar e combater o regime fascista.

Basta ter em conta a situação em Portugal e no mundo quando, num verdadeiro acto de coragem, Alves Redol publicou Gaibéus, em 1939.

No nosso País, o processo de fascização do Estado, concebido por Salazar, inspirado na fascismo italiano e no nazismo alemão, tinha acabado de ser concretizado, com a censura férrea; a proibição dos partidos políticos; a promulgação do famigerado Estatuto Nacional do Trabalho; a imposição da Constituição fascista; a criação do Tribunal Militar Especial, da polícia política (então chamada PVDE), do campo de concentração do Tarrafal, da Legião Portuguesa, e de todo um vastíssimo conjunto de instrumentos repressivos. Isto enquanto, lá fora, terminava a guerra de Espanha com a vitória dos fascistas e Hitler dava início à II Guerra Mundial e ao seu sonho de domínio do mundo.

O próprio Redol relembra esse tempo num prefácio que escreveu, em Maio de 1965, para mais uma edição de Gaibéus. Diz ele:
«Gaibéus tem a sua história. Banal talvez, às vezes ingénua, noutras sábia ou astuta, mais do que tudo dramática. Gaibéus nasceu quando muitos morriam por nós. Não o esqueçamos. Seria absurdo, mesmo num mundo paradoxal, olvidar o que a esses devemos. Impõe-se recordar certas datas: em Março de 1938 as tropas hitlerianas entravam na Áustria; em Setembro ocupavam o território dos Sudetas e conseguiam a paralisia estratégica da Checoeslováquia; em Março de 1939, ainda sem combate, o nazismo ocupava o resto daquele país; em 1 de Setembro de 1939 penetrava na Polónia. Seguiu-se a segunda grande guerra, que deixou o rasto do seu apocalipse 55 milhões de mortos e 5 milhões de desaparecidos. Pressentiram-na desde 1936 muitos homens desse tempo. Eu estava com eles. Gaibéus germinou nessa época e foi consciência alertada antes de ser romance. Quem o ler, portanto, deve ligá-lo às coordenadas da histórias de então. Só dessa forma saberá lê-lo na íntegra».

Como escritor, Alves Redol ficará na história, em primeiro lugar, como o autor do primeiro romance do neo-realismo português – Gaibéus – e, depois, por uma vasta e diversificada obra literária: romances, contos, teatro, histórias infantis, ensaios, que marcaram impressivamente a nossa literatura e fazem dele um nome maior da história da cultura portuguesa.

Com Gaibéus, Fanga, Avieiros, Vindimas de Sangue, Uma Fenda na Muralha, A Barca dos Sete Lemes, Barranco de Cegos, entre outras obras, Redol trouxe para a literatura os problemas dos trabalhadores, os seus anseios, as suas aspirações, as suas lutas. Nos seus romances, nos seus contos, nas suas peças de teatro, ele toma partido: com o seu talento, com a sua inteligência, com a sua sensibilidade, toma inequivocamente o partido dos explorados, dos oprimidos, dos humilhados e ofendidos, contra os exploradores e os opressores. E sabemos as implicações decorrentes de tal opção naquele tempo de ausência total de liberdade.

Não foi por acaso que Alves Redol conheceu por duas vezes a brutalidade da PIDE – como não foi obra do acaso o facto de ele ter sido o único escritor português obrigado a submeter os seus romances à censura prévia dos esbirros fascistas.

Para nós, comunistas, Alves Redol é, não apenas o grande escritor que todos conhecemos, mas também o companheiro de luta, o camarada que recordamos com saudade e admiração, o amigo de sempre e para sempre.

Redol entrou para o Partido no início dos anos quarenta, num tempo que foi decisivo para a construção do PCP com as características que hoje tem. Estava então em curso a Reorganização de 40/41, primeiro e decisivo passo para a construção dos III e IV congressos do Partido, realizados, um em 1943, quando o nazi-fascismo parecia prestes a concretizar a sua ambição de domínio do mundo, o outro em 1946, já depois da derrota dessa ambição, conseguida essencialmente graças à acção do povo da União Soviética e do seu glorioso Exército Vermelho.

Esses primeiros anos da década de quarenta e o exaltante trabalho partidário levado a cabo, revelaram-se decisivos para a transformação do PCP num grande partido nacional, marxista-leninista, vanguarda de facto da classe operária e vanguarda da resistência e da unidade antifascistas.

Tudo isso imprimiu à luta antifascista uma nova dimensão, um novo conteúdo e conduziu a um fulgurante ascenso da luta da classe operária, que adquiriu expressão significativa, primeiro, logo em 1941, com a greve dos operários têxteis da Covilhã e no ano a seguir com as grandes greves em Almada, Barreiro, Setúbal e no centro e norte do País. Em 1943, o movimento grevista, sempre sob a direcção do Partido, alastra e atinge proporções consideráveis. Em Julho-Agosto desse ano, na região de Lisboa e da Margem Sul do Tejo, participam em greves 50 000 trabalhadores – número que correspondia praticamente à totalidade dos operários industriais dessa região. E em 8 e 9 de Maio de 1944, ocorrem as históricas jornadas de luta na região de Lisboa e Baixo Ribatejo.

A intervenção decisiva do PCP na organização e na luta dos trabalhadores e na intensificação das acções antifascistas, granjeou-lhe grande e justo prestígio, traduzido na adesão ao Partido de milhares de novos militantes, entre eles muito e muitos intelectuais, incluindo parte significativa dos maiores escritores, artistas plásticos, músicos, cientistas, da altura.
O ideal comunista de liberdade, justiça social, paz e solidariedade atraiu ao PCP amplos sectores da intelectualidade: homens e mulheres de todas as áreas da cultura viram no Partido a força decisiva na luta contra o fascismo, a sua política obscurantista e a repressão cultural.

A propósito da intervenção antifascista da intelectualidade portuguesa, vale a pena recordar as palavras do camarada Álvaro Cunhal, no seu extraordinário Rumo à Vitória: «ao lado do povo, os intelectuais estão contra o fascismo. Tudo quanto há de melhor na ciência, na literatura e na arte, nas profissões liberais, está pela democracia, a paz, o progresso social (…) Nem a censura, nem a apreensão de livros, nem a liquidação de jornais e revistas, nem a proibição do trabalho científico, nem a fiscalização e a supervisão fascistas das associações culturais, nem o encerramento de revistas, puderam impedir a formação e o desenvolvimento do poderoso movimento democrático da nossa “intelligentsia” (…) A atitude geral dos intelectuais portugueses contra a ditadura fascista é, por um lado, a manifestação do isolamento desta, da falta de uma base de massas, da sua política obscurantista; é, por outro lado, a manifestação da amplitude do movimento democrático, do facto de que este ganhou todas as classes e camadas da população não-monopolista».

É neste contexto de luta intensa e de intensa intervenção do Partido que Alves Redol se torna militante comunista e, enquanto tal, desenvolve grande e empenhada actividade, quer participando na organização local do Partido, quer dando o seu contributo para a construção das greves de 1943/44 – na sequência das quais Soeiro Pereira Gomes é forçado a mergulhar na clandestinidade – quer, ainda, na organização dos intelectuais comunistas.

Nunca é demais recordar os célebres passeios de barco no Tejo, essa forma engenhosa de os intelectuais comunistas se encontrarem e reunirem iludindo a vigilância da polícia fascista – passeios de que Redol é um dos principais organizadores, com Soeiro Pereira Gomes e António Dias Lourenço.

Sempre vigiado pela PIDE – que, justamente, via nele um perigoso opositor do regime – Alves Redol prosseguirá até ao fim dos seus dias essas duas actividades iniciadas na sua juventude. Com uma coerência notável ele será sempre o grande escritor porta-voz dos explorados, o antifascista consequente, o militante comunista abnegado.

Morreu em Novembro de 1969, a menos de um mês de completar os 57 anos de idade. Morreu comunista e o seu funeral constituiu uma impressionante manifestação do apreço, da admiração, da gratidão que lhe votavam os trabalhadores e o povo. Pelo velório do grande escritor e cidadão exemplar – realizado precisamente aqui, nesta sala da Casa da Imprensa onde o estamos hoje a homenagear – passaram centenas e centenas de pessoas, e foram milhares, muitos milhares os que acompanharam o seu corpo ao cemitério da sua Vila Franca de Xira – uma multidão brutalmente reprimida pelas forças policiais. A confirmar que, mesmo depois de morto, Alves Redol continuava a meter medo ao fascismo.

Para nós, comunistas, assinalar o centésimo aniversário do nascimento de Alves Redol significa relembrar o grande escritor, autor de uma obra que, pela sua qualidade literária e pelos temas que aborda, constituiu, ela própria, um precioso instrumento da luta antifascista e que, por tudo isso, mantém incisiva actualidade e perdurará no tempo; significa, igualmente, relembrar o resistente antifascista e o camarada – guardando na nossa memória colectiva o seu exemplo de integridade, de inteireza de carácter, de coerência, de coragem.

  • PCP
  • Central
  • Álvaro Cunhal
  • Alves Redol
  • neo-realismo