Intervenção de Manuel Gusmão, 2.º Encontro Nacional do PCP sobre Cultura

A autonomia relativa das artes

As esferas da cultura ( a educação e o ensino,a ciência e a tecnologia, a informação e a comunicação, as artes) e as políticas sobre elas conduzidas constituem grandes questões sociais e nacionais.

Por um lado, porque são áreas onde ao longo do séc XX, se geraram direitos individuais, mas também colectivos e sociais; áreas onde os interesses dos grupos profissionais que nelas directamente trabalham se encontram com os interesses do povo e do país.

        Por outro lado, porque a intervenção do estado e as suas omissões, os seus objectivos reais, as prioridades e a afectação de recursos têm um impacto múltiplo e longo na vida das populações, no desenvolvimento económico e social, e na qualidade e efectividade da democracia política.

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Este simples enunciado das esferas da cultura põe-nos já perante a importância do universo cultural, que só uma visão estreita do capitalismo pode reduzir a uma área da economia, submetida às regras de um mercado capitalista.

Contra esta concepção  se opôs o marxismo e o movimento operário. Nós, comunistas, ao longo da nossa história fomos uma avançada componente da cultura operária em Portugal, os mais intransigentes defensores da cultura e dos artistas. Para nós, a cultura sempre nos apareceu como uma afirmação da própria ideia de liberdade e como um campo de luta e jogo de forças, num terreno de combate por uma terra sem amos.

É o caso de Bento De Jesus Caraça que entendia a cultura como não se esgotando nas fronteiras da «cultura artística», e que a considerava como factor de emancipação humana e de conquista da liberdade. 

          Ou então Álvaro Cunhal, quando, entre outras intervenções sobre estas questões, disse, no encerramento da primeira assembleia de Artes e Letras da ORL do Partido Comunista Português, em 1978:          

          “ O Partido não pretende hoje, nem pretenderia se dirigisse a política cultural do país, impor aos seus militantes e aos artistas em geral modelos estéticos ou escolas estéticas.

          Nada mais prejudicial à criação artística que a submissão a ordens burocráticas ou patronais impondo à iniciativa do criador parâmetros estreitos que cortem a imaginação e o sonho.

          Um partido como o nosso, capaz de todos os sacrifícios para libertar o homem, luta necessariamente também para libertar o artista. Quando a própria revolução é a realização de sonhos milenários, como poderia o nosso Partido, força revolucionária que é cortar as asas ao sonho?»

Houve na altura quem argumentasse que esta posição era uma simples declaração táctica e  não um princípio de natureza estratégica. Mas por muito que custe a quem não quer compreender, trata-se efectivamente de uma orientação estratégica e de uma evidência partilhável.

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Karl Marx escreveu nos manuscritos económico-filosóficos de 1844:

Tal como só a música desperta o sentido musical do homem, tal como para o ouvido não musical a mais bela música não tem nenhum sentido, não é nenhum objecto, porque o meu objecto só pode ser a confirmação de uma das minhas forças essenciais, portanto só pode ser para mim assim como a minha força essencial é para si como capacidade subjectiva, porque o sentido de um objecto para mim (só tem sentido para um sentido correspondente a ele) vai precisamente tão longe quanto vai o meu sentido, pelo que os sentidos do homem social são outros sentidos que não os do não-social; somente pela riqueza objectivamente desdobrada da essência humana é, em parte produzida, em parte desenvolvida a riqueza da sensibilidade humana subjectiva—um ouvido musical, um olho para a beleza da forma, somente em suma sentidos capazes de fruição humana, sentidos que se confirmam como forças essenciais humanas. Pois não só os 5 sentidos, mas também os chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor, etc), numa palavra o sentido humano, a humanidade dos sentidos, apenas advêm pela existência do seu objecto, pela Natureza humanizada.

        A formcação dos 5 sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até hoje.

        As artes e cada obra de arte, embora a outro nível, são produtos complexos da interacção humana  – por um lado, um conjunto aberto de textos, de formas, imagens e artefactos, de acontecimentos e acções que modelam tendencialmente as nossas percepções e as nossas representações, as nossas faculdades; por outro lado, são parte do processo de produção e reprodução da vida social, e constituem um terreno de luta  pela hegemonia cultural, ideológica e política; um terreno em que se exprimem as ideias e os valores socialmente dominantes, mas onde surgem também as expressões e as formas do longo desejo de emancipação social, individual e colectiva. Com a arte e através dela, a produção social dos indivíduos humanos pode não ser reduzida à formatação e à  aculturação, antes pode participar na sua singularização. 

A obra de arte e a relação artística produzem-se na história e são história. Concentram e condensam história, transportam tempo e atravessam os tempos. Num dos sentidos em que a tradição marxista usa a palavra “ideologia”, as artes são ideologia; mas a mesma tradição, pode mostrar como elas podem não se limitar à reprodução das ideias e das formas de vida de onde nascem. A imaginação criadora que nelas podemos encontrar pode tendencialmente des-ocultar, crítica e ironicamente e, ao mesmo, transformar as formas ideológicas de onde parte e dar corpo a outras formas, valores e sentidos alternativos.

As artes são formas de um fazer humano que une trabalho e não-trabalho. Nesse sentido são, ao mesmo tempo, fruto da capacidade transformadora que reside no cerne do trabalho humano, e como que antecipações daquilo a que Marx chamará “o fim do trabalho” [enquanto necessidade de sobrevivência, exploração e alienação] o que implicaria “a supressão da propriedade privada”, e “a emancipação de todos os sentidos e  qualidades humanos”, em suma o comunismo

Na tradição marxista, para que possam ser projecto em acto e antecipação da emancipação, para que possam contribuir para multiplicar e transformar as formas do mundo e da vida, as artes têm de ser entendidas como dotadas de uma autonomia relativa. Essa autonomia, em relação às determinações económicas e sociais, que se exercem sempre, mesmo que de forma mais ou menos indirecta e mediata, não pode contudo pensar-se como absoluta – seria o abandono ou a perda de caminhos possíveis para relacionar a esfera da arte com as da vida vivida ou a viver.

  A ideia de uma autonomia relativa das artes pode ser articulada também com a especificidade das outras grandes áreas da cultura, nomeadamente a do conhecimento e da ética. Ao longo do séc. XX, encontramos com frequência a rigidificação ou a transformação em separação daquilo que em Kant era sobretudo uma distinção entre a “Razão pura”, a “Razão prática” e a estética ou “a faculdade de julgar”. Mas também encontramos a esperança de que ela participe da transformação do mundo e da vida.

A autonomia relativa da arte diz-nos então que a arte não é vida e não deve ser julgada por nenhum tribunal, seja ele o da razão ou da ética, o do Estado ou o do mercado, mas diz-nos também que as artes produzem efeitos cognitivos e éticos.

De forma mais evidente em períodos de grande tensão histórica torna-se claro que é o artista quem tem de decidir o que fazer com a sua obra, a que procedimentos recorrer e qual o horizonte que visa. Ninguém pode decidir por ele, nem há catecismos ou códigos morais que lhe ditem a decisão. A opção por uma forma, um modo ou maneira de fazer, não é uma opção meramente “técnica”. A questão é ética e pode formular-se de muitas maneiras. Aqui ficam algumas: Como responder à prosa do mundo, com a minha arte? Como dar testemunho da expropriação do direito de milhões à palavra? Como ser fiel ao dom e de que forma proceder à doação de sentido?

Viva o Partido Comunista Português

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