Intervenção de João Almeida, Membro do GTAL do PCP, Seminário "A crise na União Europeia e a ofensiva contra os direitos, a liberdade e a democracia"

O ataque ao poder local democrático

Entre nós, o ataque ao Poder Local Democrático concretiza-se nos domínios económico, social e político, desenvolve-se por diversas vertentes e recorre a uma considerável panóplia de meios – de forma sintética pode dizer-se que visa a sua desconstrução, constituindo-se este objetivo em meio para:
Privatizar funções e serviços de impacto económico suficiente para atrair a cobiça do capital;
Reduzir ou eliminar a redistribuição do rendimento feita através de serviços de fruição pública sem custos ou a custos reduzidos e, portanto, acessíveis aos trabalhadores e demais camadas desfavorecidas da população;
Restringir a participação popular na gestão da coisa pública e anular a sua capacidade de decidir e agir em autonomia face ao poder político central.
A autonomia das nossas autarquias assenta na legitimidade democrática dos seus órgãos e consiste na vinculação exclusiva destes à lei (com limitação da tutela à verificação da legalidade), na detenção de poderes (incluindo o regulamentar), de finanças, património e recursos humanos próprios.
Os 308 municípios portugueses (em média com c. 300 km2 e 33 mil habitantes cada) sofrem um cerco sistemático que pretende forçá-los a abdicar da natureza pública dos serviços com valor económico que prestam:
Grande parte do país encontra-se coberta por sistemas de saneamento de parceria público-privada ou pública-pública, sendo que, neste último caso, o estado expropriou as autarquias dos seus poderes e do domínio público correspondente, a empresa estatal detém o controlo e a sua privatização arrastará o predomínio do capital privado;
O abastecimento de água para consumo público é outra área em que as pressões no sentido da privatização direta ou da sua transferência para empresas do tipo das já referidas têm alcançado níveis insustentáveis;
Outros domínios têm sido compulsivamente abertos ao capital privado, como o da reconstrução e reconversão urbanas, e os negócios são acompanhados da transferência dos poderes reservados à administração pública.
Já as freguesias (c. 4 200) são, essencialmente, espaços de proximidade, sem recursos próprios que lhes confiram capacidade de investimento (0,1% do orçamento do estado transferidos diretamente) e com um imenso historial de abnegação e trabalho voluntário dos eleitos nos seus órgãos para a resolução de problemas concretos: o vidro da escola que se partiu, o buraco no caminho ou no passeio, a sarjeta entupida, por vezes mesmo o telhado da casa pobre em que um pobre idoso habita, sozinho, são “pequenas coisas” de que milhares de eleitos locais cuidam nas suas horas de lazer sem, por isso, serem remunerados.
O esbulho sistemático das finanças dos municípios ainda parece fazer sentido na lógica própria do capital e dos seus agentes lançados na senda da privatização do património e funções municipais e da asfixia da sua autonomia (muito à semelhança do que, pela asfixia financeira, se alcança de supressão da soberania dos estados).
A senha destruidora que se fixou nas freguesias, porém, não tem conteúdo económico, é socialmente perigosa por reduzir a já fraca capacidade de resposta a situações de emergência social e só ganha sentido no quadro de uma maquinação mais vasta que se proponha desenraizar coercivamente as pessoas (pela eliminação de referências culturais e de pertença) e, sobretudo, limitar severamente a participação política, destruindo potenciais focos de resistência à agudização da injustiça social e à retração das condições gerais de vida das populações.
Com a supressão de c. 1/3 das freguesias, a eliminação dos órgãos deliberativos municipais e a redução do número de eleitos nos executivos, mais de 1 500 órgãos e c. 20 mil lugares eletivos na administração seriam destruídos, a maioria dos quais sem custo digno de registo para o erário público.
Tais medidas ganham maior eficácia quando conjugadas, como hoje o estão sendo, com a multiplicação de mecanismos de controlo e ações de ingerência na gestão autárquica, ao arrepio da Constituição da República Portuguesa, com a criação de entidades administrativas sem legitimidade democrática e com poderes de tutela tão efetiva quanto inconstitucional sobre os municípios, ou ainda com o constante acréscimo de responsabilidades sem meios para lhes fazer face e a progressiva redução da participação das autarquias, por direito próprio, nos recursos do Estado.

Eis os contornos simplificados da maior das ofensivas contra o Poder Local Democrático desde a Revolução de Abril que entre nós o instituiu, ofensiva que tem merecido resposta dos eleitos locais, dos trabalhadores e da população num grau que nos permite esperar força suficiente, se não para a derrotar totalmente, pelo menos para impedir a concretização dos seus aspetos mais visíveis e sentidos pelas comunidades locais.