Artigo do jornal «Avante!»

«Uma monstruosa mentira a esconder a incúria»

A utilização de armas radioactivas no Iraque, Bósnia e Jugoslávia é um crime contra a humanidade, mas os países da NATO não assumem a responsabilidade.

A sucessão de casos mortais de cancro e de leucemia, para além de outras doenças mais ou menos graves, registada em militares ao serviço da NATO, está a provocar uma verdadeira tempestade política no seio dos países da Aliança. Timidamente, primeiro, em catadupa, depois, as informações começaram a chegar de todos os lados, obrigando os responsáveis militares e políticos a sair a público com explicações esfarrapadas que não convencem ninguém. Aos desmentidos iniciais sobre qualquer relação entre a estranha doença - síndrome dos Balcâs ou síndrome do Golfo, como lhe chamam - e a utilização de armamento com urânio empobrecido, seguiram-se os anúncios de investigações científicas. Para o Kosovo seguiram equipas de especialistas de vários países, cujos relatórios "independentes" se anunciam para breve, no pressuposto de que até lá as populações aguardem calmamente o veredicto. Tudo isto poderia ser normal, mas não é, e não apenas por as "investigações" agora em curso pecarem por tardias. Na verdade, a investigação existe, e de longa data, foi divulgada por diversas fontes de que o "Avante!" se fez eco ao longo dos últimos anos - em contracorrente à generalidade da imprensa portuguesa -, e sistematicamente ignorada pelas entidades responsáveis. Dizer, como faz o Governo português e os restantes governos dos países da NATO, que não existe nenhuma prova científica que permita estabelecer uma ligação directa entre os dois síndromes e o contacto com urânio reciclado é uma monstruosa mentira. Um artigo do norte-americano Dan Fahely, divulgado em Maio de 1999 pela Laka Foudation, revela que em já 1974, ou seja 17 anos antes da utilização de armas com urânio empobrecido na Guerra do Golfo, um grupo de estudos do Ministério da Defesa dos EUA avisava que "Em situações de combate implicando a utilização corrente de munições com urânio empobrecido, as possibilidades de inalação, de ingestão ou de implantação de compostos de urânio empobrecido podem ser localmente importantes". Em Julho de 1990, também um fornecedor do exército americano advertia: "As exposições dos soldados ao urânio empobrecido sob a forma de aerosol num campo de batalha poderão ser importantes e ter efeitos radiológicos e toxicológicos... Nas condições de combate, os indivíduos mais expostos são provavelmente as tropas terrestres que penetrem no campo de batalha após uma tropa de tiros de munições anti-tanques, estejam a pé ou motorizadas".

Crime contra a humanidade

O silenciamento deliberado dos riscos da exposição ao urânio empobrecido, cuja responsabilidade cabe em primeiro lugar aos EUA, não pode servir de pretexto aos restantes países Aliados. Antes do mais porque negligenciaram informação, disponível, sem cuidar das consequências para as populações alvo das chamadas "intervenções humanitárias", e porque não acautelaram a segurança dos militares e pessoal de apoio dos respectivos países. É significativo, por exemplo, que na Alemanha a presidente da comissão de ética do Bundestag, Margot von Renesse (SPD), exija agora a criação de uma comissão de inquérito do Parlamento para esclarecer quem no governo sabia do emprego de munições de urânio, cuja utilização classifica de "crime contra a humanidade". De acordo com informações vinda a público, o almirante Schähling afirma ter escrito em Julho de 1999 uma carta ao ministro da Defesa, Scharping, alertando para o perigo e informando sobre o síndrome do Golfo. Não foram tomadas medidas. Uma situação idêntica à que se regista em Portugal, em que o Governo sabia dos riscos de continuação mas optou por acreditar na tese de que eram "virtualmente nulos". Os políticos que hoje invocam "desconhecimento" ou falta de "provas científicas" passam em claro testemunhos como os dos professores Monak e Akran, de Bagdad, cujas estatísticas revelam os inexplicáveis aumentos do cancro do pulmão e do peito, leucemia e síndromas do sistema linfático nas regiões mais bombardeadas pelos pilotos americanos (no Iraque o número de vítimas eleva-se a centenas de milhar, e ainda hoje morrem seis mil crianças por mês devido aos efeitos das radiações). Ou ainda os resultados idênticos obtidos na Jugoslávia pelo oncologista de renome internacional, professor Dejan Dimov, segundo o qual o número de doentes cancerosos aumentou em cerca de 30 por cento depois dos bombardeamentos de 1999 (as munições radioactivas não foram lançadas apenas no Kosovo, mas também no centro de Belgrado e noutras cidades sérvias). Que estamos perante um crime contra a humanidade não restam dúvidas. Mas será que algum destes criminosos se irá sentar no banco dos réus do Tribunal Internacional?

  • Soberania, Política Externa e Defesa
  • Central
  • Artigos e Entrevistas