Declaração de Bernardino Soares, Membro do Comité Central do PCP

«Um Estatuto contra o SNS»

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A publicação definitiva do novo Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (SNS), passados três anos da aprovação da nova Lei de Bases da Saúde, veio confirmar que o Governo do PS não quis aprofundar o caminho aberto pela nova Lei para afirmar e defender o SNS, optando por  retroceder em relação aos seus princípios e objectivos.

O Estatuto agora publicado visa favorecer os interesses dos grupos económicos da saúde e compromete o caminho indispensável para salvar o SNS enquanto garantia a todos os portugueses do direito constitucional de acesso aos cuidados de saúde.

De facto o conteúdo do novo Estatuto não responde às necessidades de recuperação do Serviço Nacional de Saúde - que atravessa relevantes dificuldades inseparáveis da ausência de resposta por parte do Governo do PS e está sujeito ao mais forte ataque de sempre por parte dos partidos da direita e dos grupos económicos privados. 

O novo Estatuto abre a porta a uma maior entrega da prestação de cuidados de saúde aos grupos económicos, em colisão com os princípios da supletividade e necessidade comprovada, previstos na Lei de Bases. Assim é quando  permite a integração no SNS de prestadores de serviços privados; a cedência externa da exploração de serviços hospitalares; e a possibilidade da gestão não pública de serviços do SNS, incluindo-se aqui claramente as Parcerias Público Privadas. 

O novo Estatuto não estabelece a valorização dos trabalhadores da saúde, problema fundamental do SNS e que exige resposta imediata, designadamente com a indispensável valorização das carreiras e das remunerações, para além de outras condições de trabalho. Confirma-se a opção  do Governo pela “dedicação plena” - em detrimento da “dedicação exclusiva” -, que implicará um alargamento do horário de trabalho e cujas condições continuam no fundamental por conhecer e regulamentar. Trata-se de uma solução que de “plena” tem apenas a designação, uma vez que permite a acumulação com o exercício no sector privado, sendo aliás de questionar em que condições vão trabalhar os médicos, com alargamento do horário no público e prática adicional nos privados. O documento aprovado pelo Governo mantém o contrato individual de trabalho como regime fundamental de contratação, com consequências graves nas carreiras profissionais.

O novo Estatuto amplia a desresponsabilização do Ministério da Saúde e a responsabilização das autarquias locais, para além do que está previsto na legislação de transferência de competências, com a consagração da sua responsabilidade na construção, equipamento e manutenção de novas unidades nos Cuidados de Saúde Primários, a possibilidade de virem a financiar directamente os Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES), a atribuição aos municípios da responsabilidade de criação e manutenção de Unidades de Cuidados na Comunidade (incluindo os trabalhadores) e na referência explícita à intervenção das autarquias na garantia de alojamento para a fixação de profissionais em zonas carenciadas.

Com a transferência de competências o princípio constitucional da universalidade e igualdade no direito à saúde que fica comprometido, com consequências na qualidade dos Cuidados Primários prestados às populações, em grande medida dependente dos meios financeiros muito diferenciados que cada uma das autarquias dispõe.

O novo Estatuto acentua a centralização e a governamentalização da gestão, a dependência do Ministério das Finanças e a ausência de participação dos profissionais de saúde. Nenhum responsável é escolhido por concurso público ou pelos restantes trabalhadores. Não há valorização dos Sistemas Locais de Saúde. Os planos de actividade, orçamentos e contratos-programa dos Hospitais continuam a depender de aprovação do Ministério das Finanças. Também o plano plurianual de recursos humanos do SNS está sujeito a um parecer vinculativo do Ministério das Finanças e do Ministério da Administração Pública. Na nova estrutura dos ACES há uma centralização de competências no director executivo, em detrimento de órgãos colegiais. O contrato-programa de cada ACES tem de ser celebrado conjuntamente pelo director executivo, pela futura Direcção Executiva do SNS e pela Administração Central do Sistema de Saúde. O novo diploma elimina os administradores não executivos nos hospitais, eleitos pelos trabalhadores, que estavam incluídos no projecto divulgado há uns meses atrás.

Trata-se de um diploma que acentua a descontinuidade do SNS e que mantém a indefinição em matérias fundamentais carenciadas de regulamentação, como a dedicação plena, a Direcção Executiva do SNS ou o enquadramento dos ACES como instituto público especial. Medidas que levantam muitas dúvidas, nomeadamente de articulação, sendo que no caso da nova Direcção Executiva tudo indica ser mais um órgão que servirá para distribuir lugares em função de conveniências políticas ou partidárias.

O diploma mantém e aumenta diferentes regimes laborais, múltiplos sistemas de incentivos, gestão e organização para a mesma realidade, acentuando sentimentos de injustiça entre os trabalhadores e a descoordenação entre unidades de saúde. Para além disso, um dos principais Capítulos – o referente aos ACES e cuidados primários de saúde – só entrará em vigor com o próximo Orçamento do Estado, enquanto o resto do diploma já está em aplicação. Um diploma que está repleto de incongruências jurídicas (que terão de ser corrigidas), certamente fruto de pressões para alterações de última hora e da tentativa de conciliar o inconciliável, por falta de uma opção clara que se impõe: a da defesa intransigente do Serviço Nacional de Saúde.

Tal como o Governo não quer tomar as medidas indispensáveis para a recuperação do SNS, também não quis fazer do novo Estatuto um instrumento de defesa dos serviços públicos e de melhoria do direito à saúde. Preso no seu próprio labirinto de quem apresenta um discurso político de valorização do SNS mas tem em simultâneo uma prática que pela sua acção e omissão contribui para o seu maior enfraquecimento, o Governo agarra-se a duas ou três novidades legislativas, aliás com boa parte do seu conteúdo ainda por definir, como se daí resultassem melhorias que só ocorrerão com medidas de fundo que o próprio Governo se recusa a tomar.

O Estatuto do SNS do Governo PS inclui o que é negativo e omite o que é necessário para recuperar o SNS.

O PCP não deixará de intervir neste processo, nomeadamente com a apresentação de um Projecto de lei com o objectivo de rectificar o que de negativo este Estatuto inclui.

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