Intervenção de Francisco Melo, membro do Comité Central, Apresentação do Tomo V das Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal

O tomo V mostra-nos uma nova fase da produção teórica em correspondência com o ciclo do processo revolucionário aberto pela revolução do 25 de Abril de 1974

Este tomo V das Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal mostra-nos uma nova fase da sua produção teórica em correspondência com o novo ciclo do processo revolucionário aberto pela revolução do 25 de Abril de 1974.

Com efeito, é fundamentalmente na forma do discurso político em comícios abertos aos militantes, aos simpatizantes e à população em geral, e em entrevistas à imprensa nacional e estrangeira de grande circulação (revelando neste último caso a projecção na Europa e no Mundo da Revolução portuguesa), que Álvaro Cunhal fará chegar a palavra de esclarecimento de uma situação em processo de mudança acelerada, a palavra de orientação na procura do caminho certo numa realidade económica, social, política e ideológica complexa e contraditória, a palavra mobilizadora de vontades para uma luta sem tréguas em diversas frentes.

Os textos que apresentamos, organizados cronologicamente, oferecem-nos um verdadeiro guia do itinerário histórico seguido pelo processo revolucionário, iniciado com o levantamento militar na madrugada libertadora 25 de Abril de 1974 (logo seguido do levantamento popular de massas), e que se prolongou até ao golpe militar da direita e dos moderados em 25 de Novembro de 1975.

Esses textos proporcionam-nos viver (ou reviver) mais de ano e meio de um processo revolucionário, com os seus avanços e recuos, com as suas curvas difíceis e golpes reaccionários e com o rasgar de perspectivas exaltantes de construção de um regime democrático a caminho do socialismo.

Perspectivas que se foram concretizando em conquistas da revolução, as quais, pelo papel determinante que nelas teve a iniciativa das massas populares; pelo seu carácter de emergência para cortar o passo e pôr fim às manobras contra-revolucionárias promovidas pelos monopolistas e latifundiários; pelo seu alcance, criando um sector determinante não capitalista na economia abrindo o caminho do socialismo à revolução democrática — vieram demonstrar a acertada apreensão pelo PCP da dinâmica do desenvolvimento do capitalismo em Portugal e a correcção da teoria revolucionária nela alicerçada, quer quanto à via armada para o derrube do fascismo quer quanto aos objectivos programáticos a serem alcançados pela revolução.

O facto de ao levantamento militar dos «capitães de Abril» se ter seguido imediatamente o levantamento popular mostra que, tal como Álvaro Cunhal apontara, era possível unir vastas camadas da população numa base antimonopolista e antilatifundista, conferindo à democracia portuguesa um conteúdo socioeconómico e não meramente formal. A aliança Povo/MFA, motor do processo revolucionário, constituiu precisamente a expressão criadora de uma ampla aliança englobando a classe operária industrial e rural, as massas camponesas, a pequena burguesia urbana e rural, a intelectualidade, a juventude, sectores da média burguesia e camadas nacionais de sentimentos patrióticos, designadamente nas forças armadas.

Com todas as contradições internas, geradoras de perigosas crises, essa ampla aliança social original — originalidade que Álvaro Cunhal reiteradamente sublinha como diferenciadora da revolução portuguesa de outros processos revolucionários — demonstrou a força e possibilidade da ampliação do sistema de alianças do proletariado na sua luta contra o capital monopolista e a propriedade latifundiária capaz de levar à conquista das liberdades e de importantes direitos sociais e políticos, ao estabelecimento do controlo operário, a proceder às nacionalizações dos sectores básicos da economia e à realização da Reforma Agrária na zona do latifúndio.

A consideração do caminhar do processo revolucionário levaria a que Álvaro Cunhal chamasse a atenção para o facto objectivo de que «O Movimento das Forças Armadas, sem o movimento popular, poderia talvez deter o poder político, mas jamais construir uma sociedade democrática», sendo por isso a aliança entre aqueles dois movimentos, entre aquelas «duas componentes», da revolução «um imperativo para o prosseguimento do processo revolucionário e uma das suas mais características originalidades.»

No que respeita ao movimento popular, é de sublinhar que a luta da classe operária e dos trabalhadores teve um papel determinante ao longo de todo o processo revolucionário.

Na verdade, eles souberam, nas acções e momentos decisivos desse processo, conjugar a luta pelas suas justas reivindicações com a recusa das que eram «sopradas demagogicamente por reaccionários ou esquerdistas pseudorevolucionários», souberam «escolher a forma de luta adequada, tendo em conta todas as incidências sociais e políticas da sua acção», para cuja necessidade Álvaro Cunhal alertara na base de uma concepção marxistaleninista feita de experiência de luta de classes prática e de estudo teórico rejeitando receitas e modelos. A consciência de classe dos operários e dos trabalhadores foi capaz, no fundamental do processo revolucionário, não só de não se deixar manipular pelo patronato reaccionário como de resistir aos cantos de sereia do verbalismo radicalista de «esquerda» apologista de acções ditas «espontâneas» que, só por o serem, logo mereciam o rótulo de revolucionárias, mesmo que as avenidas em linha recta com que os seus fomentadores acenavam desembocassem rapidamente em ruelas sem saída.

A tentativa de golpe contrarevolucionário de 11 de Março de 1975 (ainda mais que as tentativas golpistas anteriores) veio mostrar não apenas que a reacção estava disposta a tudo quando «surgiu com aviões e bombas», como escreve Álvaro Cunhal, mas revelou também insofismavelmente o comprometimento do grande capital na conspiração, tornando assim inevitável que se desencadeasse o processo das nacionalizações que, começando pela banca e os seguros (decretadas logo no dia 14 de Março de acordo com as decisões da Assembleia extraordinária do MFA realizada na noite de 11 para 12 de Março de 1975), rapidamente se estendeu aos sectores básicos da economia.

A tentativa de golpe de 11 de Março veio evidenciar também ela a força revolucionária da ampla aliança social de base antimonopolista. Em inteira correspondência com os factos, Álvaro Cunhal podia escrever: «A aliança do movimento popular com o Movimento das Forças Armadas é uma aliança que se traduz não apenas numa identidade de propósitos, mas em capacidade para defrontar e derrotar a contrarevolução, para tomar medidas revolucionárias, para fazer avançar o processo.»

Por isso, a tese repetidamente afirmada por Álvaro Cunhal — que tanto assustava a socialdemocracia, nativa e estrangeira, e o imperialismo — de que em Portugal não haveria «democracia burguesa segundo o modelo da Europa ocidental», de que haveria sim «uma república democrática mas com uma reforma profunda das estruturas económicas e sociais», essa tese tornavase cada vez mais um projecto político em processo de realização. Eis como Álvaro Cunhal o apresenta e singulariza: «Com estas duas características, a nossa democracia será muito diferente da democracia dos países ocidentais, designadamente dos países capitalistas da Europa, onde existe uma democracia conhecida pelo nome de democracia burguesa e que merece inteiramente esse nome. Nesses países existem liberdades democráticas (sobre as quais aliás há muito que dizer), mas existe também o poder económico dominante dos monopólios. No fim de contas, nesses países, o regime democrático encobre e serve a exploração do povo trabalhador pelo capital monopolista.»

Voltando à aliança do movimento popular com o MFA um outro aspecto não deve deixar de ser referido: o de que nela, como escreve Álvaro Cunhal, «o PCP tem um papel insubstituível como partido da classe operária e partido revolucionário com profundas raízes nas massas populares». Assim sendo, afirma, não é «possível construir a democracia nem o socialismo em Portugal sem o PCP e muito menos contra o PCP». Esta afirmação não se revestia de qualquer carácter exclusivista, muito pelo contrário: «O PCP sempre fez, faz e fará todos os possíveis (e mesmo os impossíveis) para conseguir unir na acção todas as forças sociais e políticas interessadas no processo democrático, interessadas em levar ao seu termo as tarefas da revolução portuguesa.» A consideração objectiva de que «Se o Partido Socialista se decidisse à cooperação real com o Partido Comunista, no quadro da aliança do movimento popular com o Movimento das Forças Armadas, todo o processo da revolução portuguesa estaria extremamente simplificado» fazia com que o Partido Comunista Português, «apesar de a direcção do Partido Socialista parecer incorrigível no seu anticomunismo e nas suas posições e actividades contra o processo revolucionário», insistisse na busca de «uma base de entendimento», como reafirma Álvaro Cunhal.

Só que o principal destinatário desses esforços unitários, o Partido Socialista como é evidente, nunca esteve interessado nessa unidade na acção, porque ela visava «profundas transformações da economia e da sociedade».
Duas razões levamnos a não evocar aqui as acções, manobras e calúnias antidemocráticas, anticomunistas e antiMFA do PS. É que, por um lado, seria redundante repetir as análises desses e de outros factos e acontecimentos a que Álvaro Cunhal procede nos seus textos (com uma grande contenção de linguagem, anote-se); e, por outro, porque em relação a eles dispõem além disso os leitores, nas notas finais, de esclarecimentos e referências bibliográficas complementares.

Concentremonos por isso na caracterização do objectivo estratégico determinante das tomadas de posição e acções tácticas do PS ao longo do processo revolucionário.

Álvaro Cunhal explicitará por diversas vezes com toda a clareza qual era esse objectivo estratégico: «O PS gostaria de copiar em Portugal uma democracia burguesa de tipo “ocidental”, dominada de facto pelo capitalismo monopolista.» Ora, era outra a democracia por que o Partido Comunista Português lutava. Álvaro Cunhal definia-a assim: «Queremos que a democracia a construir seja para benefício do povo, seja uma democracia não apenas política, mas económica e social.»

É desta «diferença de perspectivas» entre o PS e o Partido Comunista Português que vai resultar a ruptura da unidade das forças democráticas que Álvaro Cunhal e o Partido Comunista Português sempre consideraram necessária para o prosseguimento do processo democrático, juntamente com a aliança do movimento popular com o MFA. «A razão fundamental dessa ruptura», aponta repetidamente Álvaro Cunhal, «foi a deslocação para a direita do PS. A sua linha política passou a traduzir como perspectiva política para Portugal o poder económico e político dos monopólios, no quadro duma democracia burguesa e do capitalismo monopolista de Estado. A sua táctica passou a traduzir uma revisão das alianças, convergindo com a direita e com esquerdistas contra o Partido Comunista Português e outras forças revolucionárias. A violenta campanha anticomunista desencadeada foi a melhor expressão dessa viragem.»

Com os avanços revolucionários na sequência da derrota da tentativa do golpe do 11 de Março, essa viragem vai ter como alvo dos seus ataques, além do PCP, o MFA. Como acentua Álvaro Cunhal: «O MFA pronunciouse pelo socialismo. As medidas revolucionárias foram decididas pelo Conselho da Revolução. Essa é a razão fundamental pela qual o PS ultimamente tem combatido também o MFA e leva a cabo uma grande campanha de intrigas tentando introduzir no MFA factores de divisão.»

Na sua convergência com a direita reaccionária e com as organizações terroristas (ELP, MDLP e Maria da Fonte), na sua aliança com grupos esquerdista provocatórios como o MRPP, o PS, depois de vencer as eleições para a Assembleia Constituinte, passou a brandir esse trunfo para contestar as realizações revolucionárias, para derrubar o governo de coligação entre as forças políticas democráticas e o MFA (com particular sanha contra um dos grandes obreiros da revolução portuguesa, o general Vasco Gonçalves) e para se opor à continuação do processo revolucionário. Logo a seguir às eleições Álvaro Cunhal tinha alertado: «Cometeria um sério erro quem pretendesse pôr em causa a Revolução portuguesa e o seu processo original invocando o resultado das eleições para a Assembleia Constituinte.» Foi tal «erro» em que o PS laborou (e os partidos da direita com ele coligados) que levou Álvaro Cunhal a esclarecer: «Na revolução portuguesa, como característica original, há dois processos que podem desenvolverse paralelamente, convergir ou entrar em conflito: o processo eleitoral, cujos métodos foram inspirados pelas democracias burguesas, e o processo revolucionário com uma dinâmica de força, popular e militar.» Porém, ao passo que era desejo dos comunistas «que esses dois processos convergissem ou ao menos se desenvolvessem paralelamente», o mesmo não acontecia com o PS: «Um dos grandes erros do PS», sublinha Álvaro Cunhal, foi «querer opor o processo eleitoral e eleitoralista ao processo revolucionário.» A actividade política do PS seguiu uma linha de confronto com a dinâmica revolucionária assente na aliança PovoMFA, bem expressa na palavra de ordem gritada numa manifestação por si promovida: «O povo não está com o MFA!»

A propósito do processo eleitoral o Partido Comunista Português chamou a atenção para que, não existindo nem se perspectivando que existisse «a curto prazo» em Portugal um «regime democrático instituído, onde não haja perigos de golpes reaccionários», seria «particularmente perigoso para a revolução a submissão do processo revolucionário ao processo eleitoral». Por isso proclamava através das palavras de Álvaro Cunhal: «O processo eleitoral pode e deve inserirse no processo revolucionário». E em consequência reafirmava a sua orientação de sempre: «Pela sua parte e na medida das suas possibilidades, o Partido Comunista Português tudo fará para reforçar a unidade de acção, a cooperação, o entendimento com objectivos práticos, de todos quantos se pronunciam pela construção de um Portugal democrático a caminho do socialismo.»

Só que não era para o socialismo que o PS queria caminhar, embora mentirosamente o declarasse.
Como sublinha Álvaro Cunhal: «Em vez de tornarem o PS um partido defensor dos trabalhadores e das classes médias, participando activamente na construção do novo regime democrático e nas transformações económicas e sociais profundas abrindo caminho para o socialismo, os dirigentes [do PS] passaram a servir a causa da defesa e da consolidação do capitalismo. Em vez de se aliarem ao MFA, ao PC e a outras forças progressistas, caíram no anticomunismo que faz inveja aos fascistas, e aliamse à reacção e alargam cada vez mais à direita as suas alianças.» É particularmente significativo que este anticomunismo primário, estas alianças com as forças da direita ocorressem simultaneamente com a vaga terrorista do «Verão quente» contra os Centros de Trabalho do Partido Comunista Português e instalações de sindicatos e de outras forças progressistas.

Se pensavam intimidar o Partido Comunista Português enganaramse. Em princípios de Novembro de 1975, observava Álvaro Cunhal: «Os dirigentes sociaisdemocratas talvez se dessem por satisfeitos se o PCP capitulasse perante a pressão da reacção, da socialdemocracia, do oportunismo de direita e de esquerda e definisse como seu programa a construção duma democracia burguesa em Portugal.» E a isso contrapunha, com a autoridade moral de destacado obreiro do Partido Comunista Português, que «o PCP, vanguarda revolucionária da classe operária, partido marxistaleninista, não capitula, não se converte ao socialdemocratismo, permanece fiel aos interesses e aos objectivos do proletariado, continua considerando como tarefa histórica a revolução socialista, a liquidação do capitalismo, a construção duma sociedade sem exploração do homem pelo homem, a sociedade socialista e depois a sociedade comunista».

O desenvolvimento do processo revolucionário agudizavase entretanto cada vez mais.

A nível militar, a «acentuação do sectarismo nos sectores da esquerda», por um lado, e «a formação do Grupo dos Nove, que entra em luta contra aqueles», por outro, vai desembocar numa «cisão do MFA» com a consequente perda da sua autoridade e força, como anota Álvaro Cunhal. Que sublinha: «Na luta contra a esquerda militar, o outro sector procurou apoios e alianças à direita, já fora do MFA, e foi essa aliança que, depois de uma luta muito aguda em que se sucedem as ameaças de golpes e contragolpes, permitiu o pronunciamento de Tancos com todas as suas consequências, entre as quais a formação do VI Governo Provisório, com a hegemonia política PSPPD.»

A nível civil, intensificando a «sua luta contra o PCP, contra o movimento operário e contra a esquerda militar», escreve Álvaro Cunhal, o PS vai estreitar a sua «aliança com o PPD, vindo depois a participar, ao lado do PPD, do CDS e de reaccionários de todos os matizes, incluindo os do MRPP, em numerosas iniciativas».

O golpe militar do 25 de Novembro, com a derrota da esquerda militar e a dissolução do MFA como movimento militar revolucionário organizado culminou a crise políticomilitar que se vinha desenvolvendo. Considerálo «uma “insurreição comunista para a conquista total do poder e a eliminação dos adversários do comunismo”» — como o fez um deputado socialista em alinhamento com declarações da direita reaccionária e seus aliados — é, como diz Álvaro Cunhal, «por um lado completo disparate e por outro incitamento a medidas repressivas contra o PCP».

A verdade sobre a orientação e as iniciativas políticomilitares do Partido Comunista Português, foi explicitada por Álvaro Cunhal no discurso de 7 de Dezembro de 1975 no Campo Pequeno:

— foi o Partido Comunista Português que «afirmou sistematicamente que um confronto entre forças que têm estado com o processo revolucionário aproveitaria à reacção»;

— foi o Partido Comunista Português que se opôs «sistematicamente a uma política que conduzisse à guerra civil»;

— foi o Partido Comunista Português talvez «a única formação política que insistiu sistematicamente numa solução política para a crise, numa solução negociada, numa solução de compromisso entre as forças e sectores políticos e militares que têm estado com o processo revolucionário», e fêlo «mesmo em momentos em que defender uma solução negociada valeu ao PCP críticas e acusações por vezes extremamente violentas de sectores e elementos que não compreendiam o risco que resultaria para a revolução da fractura, divisão e confronto entre tendências diversas do MFA».

Ora, foi essa coerência revolucionária — «ao longo dos meses, e já mesmo em cima dos acontecimentos» (1) — um dos factores que impediu que, desencadeado o golpe, o PS, os partidos da direita e as forças reaccionárias terroristas, levassem por diante o seu objectivo de reprimir e ilegalizar o Partido Comunista Português; outro foi, a percepção dos militares ligados ao Grupo dos Nove e de sectores do PS do perigo que corriam de também eles virem a ser vítimas das alianças espúrias que tinham procurado.

Mas, no processo que levou ao 25 de Novembro, pensamos ser de relevar um outro aspecto que Álvaro Cunhal designa como a «serenidade» e a «orientação responsável» do Partido Comunista Português, as quais evitaram «uma grande tragédia e uma grande e sangrenta derrota do movimento operário e popular», pois a elas se deve «que a classe operária e as massas trabalhadoras em diversos sectores não tenham sido contagiadas pelo verbalismo pseudorevolucionário e aventureirista». Vale a pena ler a análise que Álvaro Cunhal faz dos elementos e sectores esquerdistas nas Forças Armadas, assim como de grupos esquerdistas civis que neles encontravam protecção e campo de manobra, quer pelos «danos irreparáveis» que então causaram «a toda a esquerda militar e a todo o processo revolucionário» quer pelo facto da sua recusa de uma solução políticomilitar, acompanhada da incapacidade de uma solução militar que insistentemente preconizavam, continuar a projectarse na mente de historiadores para os quais as revoluções são o produto incondicionado das mentes esquentadas de minorias revolucionárias e não um processo histórico, cujo desfecho depende da correlação de forças políticas e das condições objectivas de intervenção da classe operária, dos trabalhadores e das massas populares, sob a condução das suas vanguardas de classe.

Com o 25 de Novembro, como refere Álvaro Cunhal, «Criouse uma situação nova em muitos aspectos radicalmente diversa daquela que existia até 25 de Novembro». Porém, como declara então, «o PCP continua fiel a dois objectivos essenciais da revolução portuguesa: a construção de um regime democrático com as mais amplas liberdades e a realização de profundas reformas económicas e sociais que abram caminho para o socialismo».

A esta verticalidade de classe do Partido Comunista Português na defesa dos interesses da classe operária e dos trabalhadores portugueses correspondia, no plano internacional, a intransigente defesa dos interesses do nosso país.

Assim, no que diz respeito à CEE, para dar apenas um exemplo do pós25 de Novembro, Álvaro Cunhal, lembrando que, dada a «fraca capacidade competitiva da nossa indústria e da nossa agricultura», a integração na CEE «não seria favorável a Portugal», afirma: «As relações com a CEE, do mesmo modo que com os outros países, devem basearse nos princípios da igualdade, das vantagens recíprocas, da não ingerência, do respeito pela independência e pela soberania nacionais.»

Quanto ao imperialismo em geral, apenas duas breves mas esclarecedoras referências. Uma, a denúncia de Álvaro Cunhal, de que «Certos partidos e certos políticos pintam com as cores mais negras a situação da economia nacional para concluírem que nada se pode resolver sem ajuda estrangeira, que a ajuda só pode ser dada com garantias, que as garantias são de ordem política e que essas garantias de ordem política envolvem um governo com predomínio PSPPD e com certa distribuição de pastas, para que o imperialismo saiba que são amigos seus os que irão gerir os recursos enviados para Portugal»; outra, a desmistificação do propalado «auxílio económico» que, sendo feito «com empréstimos a juros muito favoráveis [para os emprestadores] não é bem auxílio económico», mas «no fim de contas uma operação de que se procura tirar rendimentos». Destes e de outros factos conclui Álvaro Cunhal estar o imperialismo «a impor condições lesivas da nossa independência nacional» e consequentemente reafirma que «A independência nacional e o reforço da independência nacional é uma condição para podermos construir um Portugal democrático e podermos realizar as reformas de carácter social e económico que nos conduzirão ao socialismo.»
A pertinência e a actualidade desta postura patriótica, identitária do pensamento político de Álvaro Cunhal e da actividade do Partido Comunista Português, antes e depois do 25 de Abril, não carece de ser evidenciada.
Para terminar, achamos ser de salientar que a política contrarevolucionária prosseguida ao longo de mais de três décadas tendo sempre em mira a liquidação das conquistas da Revolução de Abril, confere plena actualidade à afirmação de Álvaro Cunhal de que «A história das realizações, conquistas, valores e lições da Revolução de Abril contém elementos fundamentais da experiência necessária para, na situação actual, optar por um caminho de futuro e confiar naqueles que, falando verdade ao povo, têm mostrado ser capazes de cumprir aquilo que anunciam e prometem.» (2)

Notas

(1) Numa nota da Comissão Política do Comité Central do Partido Comunista Português do próprio dia 25 de Novembro dizia-se: «Na sequência da orientação que tem defendido, o PCP insiste na necessidade de se buscar urgentemente uma solução política para a crise. [...] Tal como sempre, o PCP continua pronto a examinar em conjunto a saída da situação.» (In Documentos Políticos do Comité Central do PCP, 3.o volume, Edições «Avante!», Lisboa, 1976, pp. 227-228.) prefácio
(2) Álvaro Cunhal, A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril (A contra-revolução confessa-se), Edições «Avante!», Lisboa, 1999, p. 322.