Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

Sobre as propostas do governo no âmbito do combate ao terrorismo

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Alterações ao Código de Processo Penal e combate ao terrorismo
(propostas de lei n.os 279/XII/4.ª, 280/XII/4.ª, 281/XII/4.ª, 282/XII/4.ª, 283/XII/4.ª, 284/XII 285/XII/4.ª e 286/XII/4.ª)

Sr.ª Presidente,
Srs. Membros do Governo,
A minha pergunta será dirigida, nesta fase, à Sr.ª Ministra da Administração Interna, sem prejuízo de poder haver questões a que a Sr.ª Ministra da Justiça entenda que deva responder. Portanto, do nosso ponto de vista, a pergunta será dirigida indistintamente a uma das Sr.as Ministras que entenda estar em condições de responder.
Naturalmente que este pacote de medidas legislativas tem aspetos diversos, suscita questões diversas, que iremos colocar não no período destinado a perguntas mas numa intervenção.
Nesta fase do debate, há uma questão que, a nosso ver, deve ser já colocada e que tem a ver, particularmente, com a proposta de lei n.º 283/XII (4.ª), que é aquela que, entendemos, suscita problemas mais delicados do ponto de vista jurídico-penal, dada a extensão da criminalização que se pretende levar a efeito.
De facto, se verificarmos as formulações que constam desta proposta de lei, encontramos, designadamente, no que se refere às viagens, a criminalização da facilitação da tentativa de viajar com a intenção de se ser recrutado para uma associação terrorista, que, por sua vez, tenha a intenção de praticar atos terroristas.
Ou seja, temos aqui um longo trajeto de criminalização que não se fica pela tentativa, nem pelos atos preparatórios, fica-se pela tentativa de atos preparatórios. É algo difícil de criminalizar, é uma criminalização difícil de operacionalizar.
O mesmo se passa com o problema do acesso às mensagens eletrónicas acessível por Internet ou com apoio eletrónico. Também se criminaliza quem aceder a mensagens eletrónicas com a intenção de ser recrutado para uma organização que tenha a intenção de praticar atos determinados.
A questão que se coloca é a seguinte: como o direito penal tem uma vertente punitiva, mas também tem uma vertente preventiva — temos órgãos de polícia criminal que têm como função prevenir a criminalidade —, quais são os meios pelos quais é possível, sem violar direitos e garantias fundamentais, prevenir este tipo de atuações? Ou seja, vamos fiscalizar todos os acessos a todos os sites? Vamos fiscalizar o Facebook de todos os cidadãos para verificar se um determinado cidadão teve acesso a um site que possa estar ligado a uma organização terrorista, mesmo que esse cidadão o possa fazer até por razões de investigação? Relativamente às viagens, vamos monitorizar todo o movimento de marcação de viagens, através de sites da Internet, através de agências de viagens?
Em suma, temos aqui, de facto, uma questão difícil de equacionar e eu gostaria de saber qual é a reflexão que as Sr.as Ministras têm acerca da possibilidade de operacionalização e de monitorização deste tipo de crimes, se eles forem, de facto, criminalizados.
(…)
Sr.ª Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Sr.as e Srs. Deputados:
Em matéria de combate ao terrorismo, há dois aspetos que gostaríamos de salientar. Em primeiro lugar, é preciso ser coerente para se combater coerentemente o terrorismo.
O que queremos dizer com isto é que os Estados que mais têm legislado supostamente para combater o terrorismo têm sido os menos coerentes e, em alguns casos, têm-se comportado verdadeiramente como o Dr. Frankenstein, ou seja, criam criaturas que, depois, se viram contra o criador. Temos muitos exemplos disso. Ainda nos lembramos que, nos anos 80, o Bin Laden era um combatente da liberdade e o terrorista era o Nelson Mandela.
O segundo aspeto que importa ressaltar é que, para combater com eficácia o terrorismo, há que evitar derivas erráticas. Tivemos muitas derivas erráticas: desde 2001 para cá, tivemos e temos Guantánamo; tivemos o Patriot Act; tivemos prisões secretas na Europa; tivemos voos secretos da CIA; tivemos guerras no Iraque, na Líbia, na Síria; e tivemos a criação do Estado Islâmico, que é inseparável das consequências dessas guerras.
Portanto, há que ser coerente e há que não ser errático. Há que evitar derivas erráticas.
Feita esta prevenção, passemos à legislação que nos é proposta. Esta legislação tem aspetos que não nos merecem qualquer objeção, designadamente a consideração do financiamento do terrorismo como integrado no tipo criminal de terrorismo — muito bem, aliás, é uma lacuna que existe e que importa que seja colmatada.
Há aspetos que nos parecem mais problemáticos. E vou referir-me sinteticamente aos que nos parecem mais difíceis de aceitar ou que devem merecer uma discussão mais aprofundada, na especialidade, como se entender.
Já referi objeções relativamente à proposta de lei n.º 283/XII (4.ª), que se refere ao problema da Internet e das viagens, pelo que não repetirei aquilo que disse na pergunta que fiz Governo. Mas referia ainda que, no que se refere à proposta de alteração à lei da nacionalidade, o que se propõe aqui é introduzir um critério discricionário num diploma que só tem critérios objetivos.
É que, para a aquisição da nacionalidade por naturalização, o que se exige, hoje, é que o cidadão seja maior de idade, resida em Portugal há mais de seis anos, prove um conhecimento razoável da língua portuguesa, o que é aferido através de um exame que é realizado, e não tenha sido condenado por crimes que vêm referidos na lei da nacionalidade.
Ora, aqui, o que se quer introduzir como novo fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa é que não constitua perigo ou ameaça para a segurança ou a defesa nacional. Ou seja, estamos aqui a introduzir um aspeto que é, de facto, discricionário, que não existe, até agora, na lei da nacionalidade e que, do nosso ponto de vista, deveria merecer uma discussão aprofundada, pelo menos quanto à sua densificação.
Relativamente à lei de estrangeiros, também temos um problema que, diria, é relativamente próximo deste, na medida em que, atualmente, se recusa o visto a alguém que seja uma ameaça grave para a ordem pública, segurança pública ou saúde pública, e o que se propõe, agora, é que possa ser negado o visto a quem constitua não apenas uma ameaça mas, sim, um perigo ou ameaça. Teremos de procurar saber exatamente o que é que isto significa: a ameaça não é um perigo? O perigo não é uma ameaça? Qual é o sentido da utilização dos dois termos?
E é um perigo ou ameaça já não apenas para a ordem pública, segurança pública ou saúde pública mas também para a defesa nacional. Ou seja, está a introduzir-se aqui não apenas critérios de segurança pública, de ordem pública, mas também de defesa nacional.
Diria que estamos um pouco a querer americanizar a nossa legislação. É que, no quadro constitucional português, há uma diferença entre as funções de defesa nacional, que são realizadas fundamentalmente pelas Forças Armadas, e as funções de segurança interna, que estão a cargo das forças de segurança. E há aqui um problema, que é o de saber qual é o papel que as autoridades judiciárias têm de ter, ou não, nesta matéria, porque as chefias militares não estão subordinadas, nem orgânica nem funcionalmente, às autoridades judiciárias.
Portanto, há que ter cuidado na forma como se faz a fusão entre a segurança e a defesa nacional. E isto, aqui, do nosso ponto de vista, não está suficientemente acautelado, e deveria estar, porque estamos aqui a querer americanizar a legislação portuguesa contra aquilo que é o nosso quadro constitucional.
Estas são algumas objeções sérias que temos a algumas das propostas que são feitas, mas, naturalmente, teremos toda a disponibilidade e todo o empenho em discutir a matéria. Aliás, no âmbito deste processo legislativo, há entidades que ainda não se pronunciaram, nomeadamente o Conselho Superior da Magistratura. Já temos o parecer do Conselho Superior do Ministério Público, mas não temos ainda os pareceres do Conselho Superior da Magistratura ou da Ordem dos Advogados. Ou seja, há entidades que importa ouvir relativamente a esta matéria, e isso deve ser feito precisamente para evitar que, mais uma vez, devido à comoção criada por um hediondo atentado terrorista que todos temos de condenar, haja derivas securitárias e se ponham em causa princípios basilares do nosso ordenamento jurídico-constitucional.

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