Intervenção de Bernardino Soares na Assembleia de República

Sobre a Procriação Medicamente Assistida

(projetos de lei n.os 122/XII/1.ª, 131/XII/1.ª, 137/XII/1.ª, e 138/XII/1.ª)

Sr.ª Presidente,
Srs. Deputados:
Seria fácil, mesmo sendo verdadeiro, invocar neste debate como prioritárias as gravíssimas questões da política do Governo — o ataque brutal aos direitos dos trabalhadores, as privatizações, o corte nos salários ou a destruição do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Seria também fácil, mesmo sendo verdadeiro, denunciar aqui apenas que neste País não há uma política de apoio à maternidade; o que há é uma política contra a maternidade e a paternidade, contra as famílias e contra todos os que queiram ter filhos.
Mas, apesar destas importantes questões, não deixaremos de abordar as propostas que, em concreto, vários grupos parlamentares e Deputados quiseram trazer hoje a debate.
Reconhecemos importância às matérias que hoje, aqui, discutimos. Mais do que isso: compreendemos muito bem as aspirações, a sensibilidade e as expectativas das pessoas que são especialmente visadas pelas propostas que hoje estão aqui em debate. E é com todo o respeito por todas essas pessoas que, com frontalidade, abordaremos estes temas.
O PCP tem desde há muito intervindo na questão da reprodução medicamente assistida. Denunciámos a primeira lei aprovada na Assembleia da República, que impunha restrições, na prática inviabilizadoras do sucesso dos tratamentos e que em boa hora foi vetada pelo Presidente da República de então.
A lei de 2006 veio, finalmente, suprir esta ausência de legislação, garantindo o acesso ao Serviço Nacional de Saúde e elencando os tratamentos e as condições para a eles aceder e definindo a conceção, consensual na altura, das técnicas de PMA como resposta ao diagnóstico de infertilidade. É evidente que a atual lei não é uma obra acabada. A vida, a evolução das técnicas e a própria discussão na sociedade levará naturalmente à necessidade de periodicamente reavaliar o seu conteúdo.
Mas há uma questão que o PCP sempre criticou na lei atualmente em vigor e que, na nossa opinião, devia ter sido consagrada desde o início: é que não há nenhuma razão para que uma mulher só, sem qualquer outra exigência ou critério que não seja o diagnóstico de infertilidade — tal como acontece com os casados ou unidos em união de facto —, seja excluída do acesso às técnicas de PMA. Acompanharemos pois, na especialidade, as normas que introduzem esta possibilidade, como há muito temos vindo a defender.
Existem várias questões de aperfeiçoamento da lei que naturalmente merecerão a nossa atenção, decorrentes dos anos de aplicação que a lei já leva, em particular a questão da eliminação dos embriões excedentários ao fim de um determinado prazo, incompreensivelmente deixada em branco na lei em vigor.
Há, contudo, duas questões a suscitar mais polémica no debate dos últimos dias e na antecipação deste debate parlamentar.
Quanto à questão da maternidade de substituição, ela encaixa, de facto, num diagnóstico de infertilidade, condição que continuamos a considerar adequada, acrescido da comprovação de que as técnicas previstas na lei são ineficazes. Mas será fácil reconhecer que, ao contrário das restantes técnicas, há fatores adicionais nesta solução que merecem uma reflexão acrescida. Naturalmente que se compreende que muitas mulheres, na situação de impossibilidade de suportarem uma gravidez, desejando profundamente a maternidade biológica, olhem para a maternidade de substituição como uma última linha de solução do seu problema, por via ainda biológica.
Mas, respeitando estas perspetivas e sentimentos, quando fazemos uma lei, temos de olhar para o panorama global. E, na realidade, há uma diferença fundamental entre as técnicas atualmente previstas na lei e a maternidade de substituição. É que na maternidade de substituição intervém de forma profunda — o que não acontece com os dadores de gâmetas que não intervêm de nenhuma forma no processo da gravidez — uma outra mulher, o que introduz um conjunto de potenciais conflitos e questões éticas que não podem ser ignoradas. A maternidade de substituição, pela sua complexidade, não pode ser considerada no mesmo plano que as restantes técnicas já previstas na lei. O peso das questões e das incertezas levantadas pela sua introdução — aliás, bem patente no facto de vários projetos remeterem essas complexas questões para uma regulamentação que não se sabe como vai ser feita! — é demasiado significativo para ser ignorado, mesmo compreendendo, e compreendemos, as aspirações daquelas que poderiam a ela recorrer. E é por isso que entendemos que não estão criadas as condições para acolher esta alteração.
Temos, depois, as propostas que alargam o recurso às técnicas de PMA para casais de pessoas do mesmo sexo. Elas retomam uma discussão que foi feita recentemente noutra sede e que entra aqui pela «janela» da alteração à lei da procriação medicamente assistida, propondo o afastamento do critério da infertilidade. É a questão da parentalidade dos casais de pessoas do mesmo sexo que aqui está sem tirar nem pôr, não é outra. Parece-nos, aliás, pouco adequado introduzir nesta lei uma questão que tem que ter uma consideração mais global. Faria algum sentido, quando não se aceitou incluir a possibilidade de adoção no momento em que se legislou, com o apoio do PCP, a introdução da possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo, introduzir agora aqui a possibilidade de recurso desses mesmos casais às técnicas de PMA? Teríamos a situação de proibir a adoção, permitindo a reprodução assistida a esses casais.
Nesta matéria, continuamos a dizer que é uma questão complexa e que continuaremos a acompanhar a reflexão sobre ela na sociedade portuguesa. Por isso, neste momento, sem que isso signifique uma posição de rejeição, como não significa uma posição de aceitação, não podemos acompanhar estas propostas de alargamento do acesso às técnicas de PMA a casais de pessoas do mesmo sexo, que de qualquer modo teria de ser tratada de forma mais global considerando todas as questões da parentalidade destes casais.
Mas é preciso dizer, no final desta intervenção, que há um problema fundamental que está a ser ignorado neste debate: é que o principal problema nesta matéria de procriação medicamente assistida são as cada vez maiores dificuldades de acesso aos centros públicos ou apoiados para recorrer às técnicas de procriação medicamente assistida, que levam a que existam 1800 casais em lista de espera no nosso País.
O problema são também as restrições por falta de financiamento para os tratamentos que, como está a acontecer em vários centros, levam a que, em vez de se fazerem os três ciclos de tratamento previstos na lei, se estejam só a fazer dois ciclos devido a falta de financiamento por causa dos cortes orçamentais. Esse é hoje, sem desvalorizar todas as outras questões, o principal problema que afeta os portugueses e as portuguesas na questão da procriação medicamente assistida. E é um problema que se agravará se prosseguirem as políticas de corte no financiamento das instituições públicas de saúde.
É este o entendimento do PCP sobre as propostas hoje em presença.

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