Pergunta ao Governo

Sobre-exploração, precariedade e plataformas digitais de aquisição de bens ou serviços

O desenvolvimento técnico-científico criou as condições para o surgimento de plataformas digitais que permitem a aquisição on-line de bens ou serviços que depois são diretamente disponibilizados ao cliente. A pandemia de Covid-19 e os sucessivos confinamentos adotados para a combater impulsionaram significativamente a utilização deste tipo de plataformas.

Nestas plataformas, o que é novo e progressivo, e de facto facilita o acesso a bens e serviços, não pode ser usado para esconder o que é velho e caduco, e se limita a aproveitar uma boleia para se reimplantar. E velhas são as formas de prestação do trabalho onde «a liberdade» do trabalhador vender a sua força de trabalho como e onde quiser se traduz na precariedade, na desregulação da vida e numa total sobre-exploração.

Essa «liberdade» do trabalhador transformado em falso empresário, em falso trabalhador por conta própria, acaba por significar de facto a liberdade das entidades patronais se desresponsabilizarem de custos fixos, de conseguirem incrementar a exploração conseguindo mais horas de trabalho por menos retribuição. Como se uma Praça de Jorna Digital deixasse de ser uma Praça de Jorna por causa da palavra digital, ou porque na sua descrição se utilizem
palavras como «liberdade», «flexibilidade», «empreendedorismo» ou «Praça de Jorna 5.0».

Ora essa é a realidade das plataformas digitais e que exigem uma resposta das autoridades públicas. O regime laboral que estas plataformas utilizam não é inerente às plataformas digitais, mas uma opção ilegal que tem contado com a permissividade e mesmo cumplicidade das autoridades públicas. Estas plataformas, em vez de terem um quadro de trabalhadores que assegurem a prestação do serviço vendido ou o transporte das mercadorias da origem até ao cliente, recorrem quase exclusivamente à utilização de falsos prestadores de serviços, de falsos empresários por conta própria, que muitas vezes trabalham com a farda e as regras da plataforma, e o fazem por uma comissão ou pagando uma percentagem do valor cobrado, sempre sob as regras determinadas pela plataforma. O resultado objetivo é a implantação de novas “praças de jorna” à porta de centros comerciais e restaurantes. São milhares de motoristas e estafetas a trabalhar 12, 14 ou 16 horas por dia para conseguirem uma remuneração que lhes permita sobreviver, em efetiva precariedade, sem direito a estar doentes, a ter e cuidar dos filhos, a um horário de trabalho ou a uma retribuição base garantida.

O Governo não pode continuar a ignorar este problema, que não se resolve com leis que legalizem a exploração e a precariedade ou criando piores regimes laborais para estes trabalhadores - como se prepara para fazer a Comissão Europeia a pedido das multinacionais que estão preocupadas com o facto de em vários países europeus os trabalhadores terem ganho processos em Tribunal.

Este problema resolve-se impondo a estas empresas o respeito pelos direitos dos trabalhadores e dos restantes agentes económicos, começando por impor-lhes, como condição de licenciamento, o cumprimento da legislação laboral e económica existente.

Sendo ainda evidente que para melhorar o combate à precariedade e à sobre-exploração é necessário reverter as alterações que flexibilizaram a legislação laboral, a verdade é que a lei, mesmo com a excessiva flexibilidade já introduzida, não permite aquilo que está a acontecer à sombra destas plataformas.
A par do principal abuso, o da sobre-exploração destes trabalhadores através do encobrimento do vínculo laboral, estas plataformas digitais estão igualmente a recuperar um conjunto de comportamentos ilegais através dos seus algoritmos de gestão. Por exemplo, aplicam castigos múltiplos aos seus trabalhadores sem realizar qualquer processo disciplinar, chegando mesmo a aplicar multas. Ora estamos perante comportamentos abusivos, ilegais, que já deveriam estar a ser perseguidos e punidos, em vez de as autoridades agirem como se houvesse um limbo sobre a legalidade destas práticas. E mais uma vez, a solução não passa por legalizar a precariedade, mas por reconhecer os trabalhadores por conta de outrem como tal e impor às plataformas
digitais o cumprimento da lei e dos deveres das entidades patronais.

Acresce ainda que, os algoritmos deveriam ser públicos, auditáveis e inteligíveis, quer para as autoridades fiscalizadores, quer para os trabalhadores destas plataformas e suas organizações sindicais, e efetivamente fiscalizados relativamente à sua conformidade com as leis laborais.

Pelo exposto, e ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis, o Grupo Parlamentar do PCP solicita ao Governo que, por intermédio do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, preste os seguintes esclarecimentos:

1. Considerando o exposto e os múltiplos alertas, por parte de Organizações Internacionais, relativos à disseminação da precariedade e da sobre-exploração do trabalho intermediado pelas plataformas digitais de aquisição de bens ou serviços, por que razão o Governo não tomou ainda quaisquer medidas para combater a precariedade e sobre-exploração por parte das plataformas digitais?

2. Que medidas vai o Governo adotar para garantir a aplicação do Código do Trabalho e demais legislação laboral é aplicada aos trabalhadores e ao trabalho intermediado por estas plataformas?

3. Que estudos desenvolveu o Governo para melhor caracterizar o mundo material das plataformas digitais, nomeadamente no que respeita a:
a) tipo de plataformas a operar em Portugal;
b) origem do seu capital social; volume de negócio;
c) número de trabalhadores por conta de outrem ao seu serviço;
d) número de falsos trabalhadores por conta própria;
e) número médio de horas efetivamente trabalhadas (incluindo os tempos hoje não remunerados pela plataforma em que o trabalhador está ligado e dependente da plataforma);
f) retribuição hora média (calculado tendo em conta todo o tempo colocado efetivamente ao
serviço da plataforma)?

3. Quais as medidas tomadas em relação aos autores de centenas de anúncios para recrutamento de trabalhadores como falsos trabalhadores por conta própria a prestar serviço em várias plataformas digitais, em troca de uma percentagem do pagamento realizado pelas plataformas a estes trabalhadores?

4. Que medidas pensa o governo adotar para obrigar as plataformas a colocar os seus algoritmos disponíveis e inteligíveis quer pelas entidades fiscalizadoras quer pelos trabalhadores e suas organizações sindicais? Que ações de fiscalização foram já desenvolvidas face à evidência de estarem a ser cometidas pelas plataformas através destes algoritmos violações da legislação laboral, como sejam a aplicação de castigos sem qualquer
processo disciplinar?

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