Sobre duas prementes questões de política educativa<br />Conferência de Imprensa do PCP

· A "reforma" curricular em curso no ensino básico e secundário; · As propostas do Governo em relação ao ensino superior e o projecto de lei quadro sobre este sector que o PCP acaba de apresentar na AR Que a "paixão" da educação, tão propalada pelo Governo do PS, não conduziu afinal à resolução de nenhum dos problemas estruturais do nosso sistema educativo, é uma evidência que as crescentes expressões de mal-estar e as manifestações de descontentamento e de protesto estão a trazer à ribalta política. Regressam às ruas os estudantes do ensino secundário. Os professores prosseguem a sua luta e anunciam a realização de uma greve nacional no final deste mês. As críticas e os protestos no ensino superior - dos estudantes, dos docentes e dos responsáveis académicos - vêm subindo novamente de tom. E o movimento associativo de pais faz ouvir, de forma crescente, a sua voz, na procura de resposta para os múltiplos e em muitos casos graves problemas existentes ao nível das escolas. Entretanto o Governo avança com políticas em relação ao ensino básico, secundário e superior, que a não serem rapidamente alteradas ameaçam desestabilizar todo o sistema de ensino e precipitar uma crise de imprevisíveis proporções.o PCP contra a "reforma" curricular em curso Ao longo cinco anos, o Ministério da Educação do PS privilegiou um discurso que em nome de uma pretensa "estabilidade" recusou realizar um diagnóstico aprofundado da crise do sistema educativo marcado pela "reforma" de Roberto Carneiro e empreender, com base nesse diagnóstico crítico, uma verdadeira reforma democrática de que o sistema educativo carece. Ao mesmo tempo, de forma avulsa, foi publicando um conjunto de medidas entre as quais os chamados "currículos alternativos", o "9º ano mais um", e outras, que têm um traço comum: permitir alcançar o "sucesso escolar" através de currículos com menor grau de exigência. Entretanto, no presente ano lectivo, assiste-se à vertiginosa implementação de uma reforma do ensino secundário a que o Ministério da educação, estranhamente, chama reajustamento curricular, ao mesmo tempo que é generalizada a gestão flexível dos currículos do ensino básico, medidas que estão a gerar uma enorme e generalizada apreensão ente os professores, os estudantes e muitos pais e que merecem, por parte da Comissão para as Questões da Educação e do Ensino do PCP uma avaliação muito negativa. Criticamos na "reforma" curricular em curso, entre outras, medidas tais como:

  • a rigidificação de duas vias no ensino secundário com percursos de primeira categoria e percursos de segunda categoria, em que a mobilidade entre esses percursos se não é de todo impossível é gravemente penalizadora dos alunos, o que vem acentuar ainda mais os factores de injustiça e as diferenciações de natureza classista e sócio - cultural;
  • a inexistência de articulação, seja entre as diversas modalidades de realização do ensino secundário, seja entre este e os ensinos básico e superior;
  • a ausência de medidas para combater o insucesso que se manifesta no 10º ano, preconizando o Ministério da Educação que haja apenas lugar a um esforço de recuperação e de reorientação dos alunos durante um período de tempo perfeitamente irrealista (duas ou três semanas!);
  • relativamente ao ensino básico, no âmbito do processo da chamada "gestão flexível de currículos", cuja experiência, recorde-se, não foi avaliada rigorosamente, o Ministério da Educação avança agora com a generalização a todas as escolas, ao mesmo tempo que impõe uma nova padronização que perverte o próprio conceito de flexibilidade;
  • não é também apresentado qualquer programa concreto que vise preparar as escolas para suportar as mudanças adoptadas, não só em relação aos recursos em geral, mas em particular à formação inicial e contínua dos professores.

Uma reforma do sistema educativo implica naturalmente decisões políticas da maior relevância e irá influenciará o futuro de muitos milhares de jovens. Por isso, necessita de se caracterizar por uma profunda democraticidade o que significa que deverá ser concebida e concretizada no quadro de um largo envolvimento de todos os intervenientes a quem deve ser dada oportunidade de contribuir para a tomada de decisões no que diz respeito aos aspectos estruturais dessa reforma e, nomeadamente, aos currículos. Afirmar, como o faz a equipa governamental, que essa participação já teve lugar, porque o processo se iniciou há três anos quando um primeiro plano, ainda incompleto da reorganização do ensino secundário, foi apenas divulgado em Dezembro de 1999 e o documento gestão flexível de currículos do Ensino Básico" em Março de 2000, constitui uma mistificação. É, pois, necessário denunciar e criticar o facto de, à sociedade em geral e à comunidade educativa em particular, não estar a ser dada oportunidade para se pronunciar e para influenciar as "propostas" que, há escassos meses, o Ministério da Educação divulgou e cuja implementação está já em curso. Só razões político - partidárias pouco claras podem justificar que o Ministério da Educação tenha estabelecido a calendarização apertadíssima que está a ser adoptada. Não é esclarecedor que ao mesmo tempo que as instituições se pronunciavam (em geral com reservas, críticas e dúvidas), já equipas designadas pelo Ministério da Educação haviam iniciado os reajustamentos, a revisão de alguns programas e a elaboração de programas novos? O processo atinge o caricato quando, no dia 26 de Abril, foi iniciada uma "discussão" dos programas, via internet, rotativamente e por períodos de quinze dias. Estes factos são esclarecedores de que ao autoritarismo do PSD se sucedeu uma política em que um aparente diálogo serve para esconder decisões já tomadas. A participação revela-se assim uma farsa. É fundada convicção da Comissão para as Questões da Educação e do Ensino do PCP que as medidas que o Governo está a pôr em prática não virão suprir as insuficiências e problemas do sistema educativo, mas que poderão mesmo vir a agravá-las. Urge, por isso, conceber e concretizar uma reforma democrática do ensino com vista a torná-lo mais capaz de dar resposta às necessidades e anseios da sociedade e dos jovens; uma reforma que prepare mais adequadamente os estudantes para a vida, seja para o prosseguimento de estudos de nível superior, seja para um horizonte em que o exercício de uma profissão esteja mais próximo; uma reforma que assuma como grande objectivo elevar a qualidade da escola pública, melhorando as condições de trabalho de alunos e professores, criando condições mais favoráveis ao estudo, através de um progressivo mas decidido redimensionamento da rede escolar e da implementação do turno único nas escolas; uma reforma que dê resposta ao ensino e à formação de nível secundário mas que deve estar também articulada com acções a desenvolver noutros níveis, valorizando a educação e o ensino nos primeiros anos, desde a rede pública de educação pré-escolar ao ensino básico. É indispensável diminuir o insucesso e a exclusão escolares, aumentar significativamente a escolarização e alargar para doze anos a escolaridade obrigatória. É imperioso pôr fim às barreiras que, de forma injusta e socialmente discriminatória , dificultam e impedem o acesso aos ensino superior. contra uma política de inspiração neo-liberal no ensino superior, por uma nova política democrática - a proposta de lei quadro apresentada pelo PCP A proposta de lei n.º 22/VIII que o Governo enviou para a Assembleia da República sobre "organização e ordenamento do ensino superior", cuja discussão está prevista para a próxima semana, configura - nos seus pontos fundamentais - uma política de inspiração neo-liberal para a qual importa chamar vivamente a atenção do país. São de sublinhar criticamente na proposta do Governo, entre outros pontos:

  • a tentativa de criar um dispositivo de violação e de incumprimento da Lei da Autonomia das Universidades e da Lei do Estatuto e Autonomia dos Estabelecimentos de Ensino Superior Politécnico, através do absurdo estabelecimento de uma "arquitectura normativa" e de uma "hierarquia (legislativa) descendente", que imporia que "a leitura e a interpretação (dessas leis) teria de ser feita de acordo com a presente lei" (refere-se à proposta do Governo apresentada na Assembleia da República);
  • a consagração da possibilidade do ensino privado ser substitutivo do ensino público e da possibilidade do Estado financiar as escolas privadas;
  • a insistência na compartimentação rígida do ensino superior em dois subsistemas - o universitário e o politécnico - promotora de uma imagem desnivelada e da desvalorização artificial de uns cursos do ensino superior em relação a outros;
  • o desenvolvimento de um conceito de "rede pública" que, em vez de assentar na indispensável articulação, coordenação e cooperação entre os estabelecimentos do ensino superior públicos existentes numa determinada região, não passa na realidade de uma modalidade burocrática,centralista e governamentalizada de definição dos estabelecimentos , áreas e níveis de formação a quem é "reconhecido" o direito à existência;
  • a efectiva transferência para um pretenso "organismo de regulação independente" da responsabilidade do Estado em relação à evolução do sistema de ensino superior;
  • a remissão para ulteriores actos legislativos, mas da exclusiva iniciativa do Governo, de aspectos muito importantes em relação aos quais a presente proposta é propositadamente omissa.

Não é mais possível enfrentar a gravidade dos problemas e das contradições com que o ensino superior está confrontado através de medidas avulsas. Muito menos com a adopção de orientações, como estas que o actual Governo propõe, de evidente inspiração neoliberal . Urge, por isso, abrir uma perspectiva de uma nova política democrática para o ensino superior que controle e supere os factores de crise que estão acumulados. Com a apresentação de um projecto de lei quadro do ensino superior o PCP cumpre o propósito de apresentar, de forma condensada e coerente , as principais orientações que propõe para o ensino superior e que se inserem no quadro mais geral dos princípios e objectivos de política educativa democrática consagrados na Constituição da República e na Lei de Bases do Sistema Educativo. A complexidade de uma tal iniciativa legislativa, apesar da ampla auscultação realizada no sector e do aprofundado debate na Comissão Nacional para as questões do Ensino Superior do PCP, que estiveram presentes na sua elaboração, justificam inteiramente que ela seja assumida de forma aberta. Ou seja, como um projecto de lei ainda promotor da reflexão e do debate, receptivo a recomendações e a propostas de alteração que responsáveis académicos, professores, estudantes e outros interessados entendam fazer-lhe.Numa revisitação inevitavelmente breve e incompleta das propostas do PCP permiti que destaque algumas questões relevantes:

  • O sistema público de ensino superior deve continuar a desempenhar um papel central no sector do ensino superior, o que é indispensável: para concretização do desígnio de democratização do acesso e da fruição de níveis superiores de instrução e cultura; para garantia de liberdade de ensino e de aprendizagem; pela grande dimensão das infra-estruturas e do financiamento necessário ao bom funcionamento exigido por este sector; pelo interesse social inadiável do ensino - em especial em certos domínios do conhecimento, de interesse vital, que não podem ser adiados ou abandonados à iniciativa privada; pelas exigências de coerência da oferta de ensinos diversificados, da cobertura do território, da qualidade e da relevância do ensino; pela função estruturante da política do ensino superior - em articulação com outras políticas sectoriais -, no desenvolvimento social, económico e cultural.
  • À luz da Lei de Bases do Sistema Educativo, o sistema de ensino superior compreende uma componente universitária e outra politécnica. Esta diferenciação, sobretudo formal, tem sido causa de conflito de atribuições e de discriminação de recursos sem que corresponda a uma substancial diferenciação de missões. Quando hoje é clara a necessidade de o ensino superior dar resposta a uma multiplicidade de necessidades, para além das suas competências tradicionais de ensino e atribuição de graus académicos e de realização de investigação científica, extingue-se a necessidade de um subsistema autónomo de estabelecimentos de ensino que cumpram apenas algumas dessas atribuições, sobretudo quando tal existência autónoma surge associada a redução de recursos estruturais . Ao mesmo tempo, surge com crescente acuidade a necessidade de procurar a coerência da oferta de formações e a abrangência da cobertura territorial pelo ensino superior, ou seja, urge proceder a formas diversificadas de articulação dos estabelecimentos de ensino existentes. Estas duas linhas de argumentos suportam a integração dos actuais subsistemas num único sistema de ensino superior.

No quadro desse sistema único de ensino superior deverá haver lugar para soluções organizativas diferenciadas, conteúdos científicos e modelos pedagógicos muito diversos e modalidades distintas de formação - garantido que seja o respeito por regras gerais que assegurem a qualificação profissional e a comparabilidade académica a nível nacional e internacional.

  • Deverá ser consagrado um único grau de formação inicial de nível superior, a licenciatura, independentemente da natureza da instituição que o confere, salvaguardados limiares universalmente aplicáveis. A atribuição de graus académicos dos diferentes níveis por qualquer escola do ensino superior, será apenas determinada pelos currículos, duração dos cursos, qualidade do corpo docente e avaliação do ensino. Os percursos escolares serão flexibilizados.
  • A gratuitidade da formação inicial a nível superior, constitucionalmente justificada, deve ser respeitada.
  • O contrato-programa acordado em 1993 entre o Governo de então e os representantes do sistema de ensino superior público bem como a Lei do Financiamento do Ensino Superior de 1997 consagram o princípio de uma fórmula para o cálculo do orçamento de funcionamento. Embora os propósitos enunciados não tenham sido cumpridos, o princípio mantém a sua validade e deve ser respeitado. Importa também que as manifestas insuficiências da fórmula de financiamento sejam urgentemente rectificadas e que ela seja objecto de um dispositivo legal que a consagre.

O Orçamento do Estado assegurará integralmente o orçamento de funcionamento dos estabelecimentos públicos de ensino superior, ao nível objectivamente calculado por uma fórmula que tomará em devida consideração os parâmetros seguintes:

- Números de alunos ingressados, diplomados e inscritos; - Números de docentes e investigadores vinculados; - Domínios científicos dos cursos oferecidos e níveis dos graus e diplomas atribuídos; - Modalidades de ensino e formação e tipologias curriculares ministradas; - Domínios científicos dos programas de pós-graduação e de investigação prosseguidos; - Capitações de despesas com pessoal docente, de investigação e outros funcionários; - Capitações de despesas de ensino de qualidade por estudante a níveis de licenciatura e de pós-graduação; - Funcionamento físico, manutenção e amortização de patrimónios edificado, documental, laboratorial e outros equipamentos; - Estruturas centrais e comuns do estabelecimento de ensino; - Estruturas especializadas integradas ou anexas, de valor cultural, científico ou histórico.
  • Os regimes de acesso e ingresso no ensino superior público, particular e cooperativo ou outro, passarão a ser de aplicação universal , o Estado assegurará a eliminação de restrições quantitativas de carácter global no acesso ao ensino superior público (numerus clausus) e criará as condições para que os cursos oferecidos assegurem a satisfação de aspirações e de necessidades da população e a elevação do seu nível educativo, cultural e científico.
  • O Estado criará, através da Acção Social Escolar, as condições que garantam a todos os cidadãos, que satisfaçam as condições de acesso, a possibilidade de frequentar o ensino superior independentemente da respectiva área de residência e do nível de rendimento pessoal ou familiar, por forma a impedir os efeitos discriminatórios decorrentes das assimetrias regionais e de desvantagens sociais prévias.

A acção social abrangerá toda a população escolar em formação inicial e passará a abranger também os estudantes em níveis de formação pós-graduada. Os apoios gerais da acção social abrangerão igualmente todos os estudantes de todos os subsistemas de ensino superior. Os apoios específicos abrangerão os estudantes do subsistema público e são extensivos aos estudantes do subsistema particular e cooperativo enquanto subsistir o sistema de numerus clausus no sistema público. O Estado garante o financiamento estável da acção social escolar com base em parâmetros e indicadores objectivos e de uma fórmula de cálculo acordada com o Conselho Nacional da Acção Social do Ensino Superior.

  • Aos docentes e investigadores do ensino superior é exigível elevada responsabilidade social e ética nas funções que desempenham, elevado nível de qualificações, competência e dedicação. Em contrapartida, é-lhes reconhecida e protegida a liberdade intelectual, conferidos estatutos de carreira e de remuneração correspondentemente elevados, bem como o direito e o dever de participação ou de representação nos órgãos de governo e de coordenação científica ou pedagógica.

Cada estabelecimento de ensino disporá de quadros próprios de docentes, investigadores e outro funcionários, objectivamente dimensionado.Os recrutamentos de docentes e investigadores serão regulamentados tendo em vista a aplicação de normas universais e objectivas de aferição de competências e a incentivação de oportunidades de progressão profissional e de mobilidade dos recursos humanos.O regime de prestação de serviço de docentes e de investigadores compreende o cumprimento de funções docente, de investigação e de gestão, em proporções complementares. Ao cumprimento dessas funções, poderá ser acrescido o desempenho de outras funções de interesse institucional, pelas quais poderão ser remunerados adicionalmente em termos regulamentados. O exercício de funções de um docente ou investigador vinculado ao quadro de um estabelecimento de ensino é incompatível com o exercício de funções noutra instituição, sem prejuízo da participação em projectos ou em equipas de ensino ou de investigação formalmente acordadas entre instituições.É incentivada a cooperação inter-institucional na gestão dos respectivos recursos, no quadro das estruturas de articulação da rede de estabelecimentos de ensino superior público.

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