Intervenção de

Situação nos Balcãs - Intervenção de João Amaral

Senhor Presidente,
Senhores Deputados:

Face aos dados agora conhecidos sobre as condições em que se encontram as Forças portuguesas nos Balcãs, e particularmente após o conhecimento público do uso de munições com urânio, e face ao evoluir da situação político-militar nessa zona, o PCP considera que se impunha que a Assembleia da República assumisse o papel político que a Constituição lhe atribui, debatendo e pronunciando-se sobre a participação de Portugal nas operações militares em curso na Bósnia-Herzegovina e na República Federal da Jugoslávia, na província sérvia do Kosovo. O PCP apresentou nesse sentido, em 9 de Janeiro, o Projecto de Resolução nº 92/VIII, e requereu o seu agendamento imediato, nomeadamente para antes da partida de um contingente de militares portugueses para os Balcãs, que se verificou no final do mês de Janeiro. Só que o Partido Socialista opõe-se a esse agendamento rápido, sem nenhum argumento válido, pelo contrário, no claro propósito de que o debate fosse feito já depois da partida dos militares portugueses. Esse tipo de truques e de golpismo são de certeza muito convenientes aos interesses político-partidários do Partido Socialista e do Governo PS, mas na prática põem a Assembleia da República num papel subordinado, perante factos consumados e a reboque do Governo. Fica aqui a denúncia do truque e o vivo protesto por esta subversão do modelo constitucional de funcionamento das instituições.

O debate que agora travamos levanta quatro questões e confronta o Governo com as pesadas responsabilidades que nelas tem.

O Governo é responsável pela sonegação de informação ao País, à Assembleia da República, ao Presidente da República e aos militares que fez avançar para o Kosovo, sobre as condições em que se encontrava a zona após os bombardeamentos com munições com urânio empobrecido e sobre os perigos que ele representa para a saúde pública.

Em segundo lugar, o Governo é responsável por se ter oposto a uma moratória (apontando para a proibição) do uso desse tipo de munições, que contêm, como está demonstrado, um perigo real de contaminação e envenenamento resultante da inalação e ingestão das micro partículas de um metal pesado, como é o urânio empobrecido, projectando os seus efeitos danosos e eventualmente letais para além do período das operações militares, incluindo sobre civis.

Em terceiro lugar, o Governo é responsável pela manutenção das forças portuguesas em operações militares nos Balcãs que, como hoje está demonstrado, não concretizam um qualquer objectivo político de solução de problemas existentes antes visam consolidar a presença da NATO na zona, alargar a sua área de influência e prepará-las para um novo tipo de missões de intervenção e domínio.

Em quarto lugar, o Governo é responsável por manter, com a permanência do actual Ministro da Defesa Nacional, um clima de confronto com as instituições (particularmente com o Presidente da República) e de desprestígio das Forças Armadas, de todo inaceitáveis face aos interesses nacionais e face ao respeito devido ao modelo constitucional e legal de definição das questões da Defesa Nacional e de relacionamento com as Forças Armadas.

Um debate como este, na Assembleia da República, exigiria que o Governo e a bancada do PS interviessem com verdade, com sentido das responsabilidades e com vontade de assumirem os erros cometidos para os corrigirem. Temos todas as razões para temer que isso não suceda. O caminho até agora traçado pelo Governo foi o da demagogia de que é exemplo caricato o passeio aos Balcãs de um trio ministerial. Foi o caminho do passa culpas, falando da NATO e das suas decisões como se o Governo não integrasse as suas estruturas dirigentes. Foi o caminho dos remédios aplicados tarde e à pressa, com comissões e rastreios, em vez da extirpação das causas. Foi o caminho do destrambelhamento do discurso e das atitudes em vez da resposta serena e eficaz. E quando já não consegue inventar nada para dizer face aos problemas postos, o Governo ataca tudo e todos, o Presidente da República, as Forças Armadas, o deposto Milosevic, e até, em delírio completo, a oposição, porque... não fez o que o Governo devia fazer, isto é, governar.

Não é esse tipo de barragem de fogo, que o PS e o Governo têm feito, que é o debate necessário para abordar esta matéria, e podem estar certos, o Governo e o PS, que não entraremos nesse jogo.

A primeira explicação que de uma vez por todas o Governo tem aqui que dar é qual a razão pela qual, sabedor como foi de que no Kosovo (incluindo na zona onde se iam localizar as Forças Portuguesas) foram usadas munições com urânio empobrecido, não informou disso nem a Assembleia da República, nem o Presidente da República, nem o País, nem os militares mandados para o Kosovo, nem (como confessou o Senhor Primeiro Ministro) o Conselho Superior de Defesa Nacional.

O Governo alega que não informou por lhe terem dito que o uso do urânio empobrecido era negligenciável. Nunca se viu. O Governo argumenta que não informou porque é ingénuo, lorpa, ignorante e desatento. Eis os méritos que o Governo invoca: lê os papéis em diagonal, não conhece nem pede os estudos relativos a um material que só pelo nome merecia atenção máxima, ignora completamente os estudos e as fundadas suspeitas que se levantaram no caso da chamada "síndroma do Golfo", e dispensa-se da sua obrigação de informar, incluindo ao Presidente da República e à Assembleia da República.

O problema, Senhor Presidente e Senhores Deputados, é que o Governo tinha de saber que o uso do urânio empobrecido era potencialmente perigoso. O Governo, que até dispõe no armamento nacional, de armas desse tipo, tinha de saber que havia instruções quanto ao seu manuseamento. Tinha de saber das prevenções quanto à sua inalação no local do impacto. Tinha de saber das públicas acusações que organizações internacionais e países fizeram em várias instâncias da ONU, onde o Governo está representado, quanto às consequências do urânio empobrecido na população do Iraque. Tinha de saber das públicas denúncias e dos estudos feitos por organizações de veteranos americanos da Guerra do Golfo. Tinha de saber dos manuais preparados pelas Forças Armadas Americanas, incluindo pelo Departamento de Guerra Química. Tinha de saber das medidas tomadas, com retirada e armazenamento de camadas de terreno, em zonas de experimentação dessas munições nos Estados Unidos. Tinha de saber do caso do acidente de aviação perto de Amsterdão, onde houve combustão de uma significativa quantidade de urânio empobrecido e em consequência sérias medidas ambientais, incluindo remoção de solos. Tinha de saber que o subproduto urânio empobrecido, em certas circunstâncias, vem associado ao plutónio, material altamente cancerígeno, mesmo em ínfimas quantidades. Tinha de saber que o principal problema de saúde pública resultante do urânio empobrecido não está na sua baixa radiação, mas no processo da sua explosão, e fragmentação em micro partículas inaláveis, ingeríveis através da cadeia alimentar não solúveis e não eliminadas pelo organismo, causadoras de patologias várias, como metais pesados que são, incluindo de natureza cancerígena.

Tinha de saber tudo isto e sabia: se não, porque deu uma mini-formação NBQ aos soldados que enviou para o Kosovo? Porque levaram instrumentos de mediação de radiações? Porque se entendeu que não deveriam tomar alimentos e bebidas locais?

Aliás, se não soubesse, para que servia o Governo? Que espécie de Governo tínhamos, cego, surdo e mudo?

O problema é que o Governo, como os outros Governos da NATO, consideraram que a relação custos/benefícios era favorável ao uso destas armas - na lógica da guerra aérea e da aplicação da teoria "zero baixas" que presidiu à guerra contra a Jugoslávia. "Zero baixas" na guerra compensa algumas baixas no post guerra, em termos mediáticos. "Zero baixas" garante que a guerra era levada até ao fim.

É por isto - pela perigosidade da munição e pela má-fé do processo - que o Governo é particularmente responsável perante esta Assembleia da República, perante o Presidente da República, perante o País pela sonegação da informação.

Como é responsável pela oposição a uma moratória - e proibição de uso destas munições - que o Parlamento Europeu e a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa já reclamavam.

O Governo diz que não foi feita a prova positiva da relação entre as situações detectadas no Golfo e nos Balcãs e o urânio empobrecido. Como não foi feita a prova positiva da ligação da BSE (encefalopatia espongiforme dos bovinos) e a nova variante da doença de Creutzfeldt-Jacob (encefalopatia espongiforme humana).

A afirmação do Governo, na linha das declarações de Solana e Robertson é um raciocínio mistificatório. Hoje, o que é preciso fazer é a prova positiva de que as síndromas do Golfo e dos Balcãs não têm origem no urânio empobrecido mas sim noutra causa. O mesmo raciocínio que é feito no caso da BSE, em nome do princípio da precaução, que assim atinge os produtores pecuários para defesa dos cidadãos. Aqui, qual é o poder da indústria de guerra e dos senhores da NATO (incluindo na decisão do Governo português) para imporem a defesa dos produtores de armamento à custa da segurança dos cidadãos?

A terceira responsabilidade do Governo refere-se à questão essencial, de manutenção da participação portuguesa nas operações militares nos Balcãs.

Todos aqui se recordam que depois do Governo PSD tomar a decisão de participação na Bósnia-Herzegovina, foi feita uma reunião aqui na Assembleia, com o Ministro António Vitorino, em finais de 1995. Nessa reunião, o prazo previsto de participação de Portugal era um ano. Já vamos no sexto ano de presença portuguesa nos Balcãs.

Quando se pergunta hoje qual é afinal o objectivo político dessa participação e qual o seu calendário, as respostas são titubeantes e evasivas. Tanto para a Bósnia como para o Kosovo.

Na verdade, não há resposta à questão. Pelo contrário, há a reiterada afirmação de que sem as Forças haveria o caos e a guerra. E vêm os exemplos com o que agora ocorre em Mitrovica. Quatro notas sobre isso:

Quem provocou a guerra não vale dizer que foi só o ex-Presidente Milosevic. Quem provocou a guerra foi, por exemplo, também a Alemanha quando fez o reconhecimento unilateral da Croácia e da Eslovénia em 1992. Ou os Estados Unidos quando em 1999 boicotaram os acordos de Rambouillet, impondo à Jugoslávia condições inaceitáveis (como a ocupação de todo o território da Sérvia, até Belgrado), condições que ainda por cima não obtiveram, apesar da pesada metralha que fizeram cair sobre os Balcãs.

A segunda observação é a de lembrar aqui quem alimentou a guerrilha albanesa, quem a alimenta agora e permite que ela actue, apesar das afirmações claras do Presidente Kostunica, não só sobre a responsabilidade da KFOR, como sobre a capacidade de intervenção jugoslava para resolver os problemas de segurança interna levantados, problemas para os quais uma força militar como a KFOR não está vocacionada.

A terceira observação é uma simples comparação. Na Irlanda, há trinta anos que ocorreu uma guerra civil não declarada, com ocupação de território pelas tropas inglesas invasoras. Passou pela cabeça da NATO, ou do Governo português que a resolução fosse pôr tropas da NATO na zona? Ou no País Basco? Ou na Córsega? Como toda a gente sabe, esses problemas só se resolverão se e quando as partes se entenderem. Não é pela força que se resolvem as questões.

A quarta observação tem a ver com a actual situação política nos Balcãs. Depois das mudanças políticas na Croácia e na Sérvia, que impede a negociação urgente de solução para os problemas?

Ou será que afinal ainda não são os actuais Parlamentos sérvio e jugoslavo, e os actuais Presidentes jugoslavo e sérvio aqueles que satisfazem as ambições da NATOP.

Digam aqui com verdade de uma vez por todas: ainda não é o Presidente Kostunica o vosso homem em Belgrado?

A posição do PCP é clara. Impõe-se uma imediata alteração do rumo político nos Balcãs. Impõe-se o caminho de soluções políticas locais (incluindo no Kosovo, parte da Sérvia), sem a tutela expansionista e ingerente da NATO. E Portugal deve dar o sinal claro da vontade política de que isso suceda.

Ninguém fala em sair em debandada. Fala-se e propõe-se uma posição política clara - a intenção de sair - para defesa de uma orientação política clara: a urgente via da negociação local, para soluções que o quadro das mudanças ocorridas mais impõem.

Mas, para executar uma política clara, determinada e coerente na área da Defesa Nacional, é antes de tudo necessário que quem é por ela politicamente responsável compreenda a alta missão que partilha com outros órgãos de Estado, compreenda e respeite as Forças Armadas e se paute por critérios de rigor e contenção.
O Senhor Ministro da Defesa Nacional cometeu durante este processo erros que comprometem a sua posição.

Afrontou o Presidente da República.

Sonegou informação à Assembleia e à Presidência.

Apoucou as Forças Armadas com uma frase assassina - a de que a guerra é demasiado séria para ser confiada aos militares - dita à frente do Chefe Militar máximo.

Afirmou em Dezembro que não havia riscos nenhuns para os nossos soldados, quando esses riscos já eram do conhecimento público e já alarmavam vários países europeus.

Foi desautorizado pelo Primeiro Ministro, que resolveu o problema do Governo com o Presidente da República dizendo à comunicação social o contrário do que o Ministro dissera à Comissão de Defesa.

O que se pergunta, ao Primeiro Ministro é se acha se nestas condições o Ministro da Defesa Nacional deve permanecer nas funções que exerce.

O Primeiro Ministro, naquele estilo típico de que a forma de resolver um problema é ignorá-lo, deixa tudo na mesma.

Quem paga é a política de Defesa Nacional, são as Forças Armadas, é o interesse nacional.
O sector da Defesa está em crise. Leis essenciais estão atrasadíssimas, como a programação militar, a justiça militar, a revisão do artigo 31º está congelada, o debate (que o Presidente da República pediu há um ano e meio, num artigo do DN) sobre as grandes opções estratégicas de defesa continua por fazer, a revisão da lei de mobilização nem está esboçada.

O país sabe quanto se gasta no Orçamento da Defesa. Confia nas sua Forças Armadas. Mas quer respostas par os problemas, à luz do interesse nacional.

Assim, não vamos lá.

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