Sim, de facto<br />Artigo de Ruben de Carvalho

A cr?nica da semana passada sobre o referendo da IVG mereceu um n?mero record de e-mails: 54 para ser exacto. Justificam-se algumas observa??es. Uma ? de o n?mero de mensagens em apoio ao "sim" que defendi ser largamente superior aos contr?rios: 36 contra 18. A situa??o n?o ser? ins?lita na medida em que todas as sondagens t?m apontado uma maioria favor?vel ? despenaliza??o, mas revela um aspecto que julgo conter alguns factores novos. Em situa??es anteriores que dividiram a opini?o p?blica verificava-se que a conservadora se manifestava publicamente a n?vel pessoal com maior vigor que a progressista. Cartas para jornais, protestos juntos da RTP e ?rg?os de soberania, demandas judiciais. 50 anos de repress?o tinham criado na esquerda o reflexo de prud?ncia que contrastava com a ?bvia impunidade (quando n?o provento) da manifesta??o da concord?ncia com os universos salazaristas e afins. Basta visitar a maioria das empresas portuguesas para saber que a coac??o n?o desapareceu. Mas poder? dizer-se que uma maior interven??o c?vica a n?vel individual por parte, lato senso, de esquerda reflecte positivamente um consolidar da democracia, a evolu??o social e cultural e maior capacidade de express?o pr?pria. Mas interessar? tamb?m reflectir se este fen?meno positivo n?o revelar? igualmente perda da capacidade de representatividade que a opini?o de esquerda lucidamente sempre preferiu fortalecer pela interven??o colectiva e organizada. O individualismo propagandeado durante uma d?cada de cavaquismo, as frustra??es sucessivas geradas pela eterna duplicidade do PS arvorando esperan?as na oposi??o e concretizando desilus?es no Governo, as altera??es econ?micas e sociais (desindustrializa??o e desemprego nomeadamente) e do panorama pol?tico mundial que geraram muta??es profundas na classe oper?ria, com reflexos nas forma??es pol?ticas e de classe a ela ligadas, n?o ser?o certamente alheias a um sentimento de necessidade de maior interven??o individual. A ac??o transformadora sobre a sociedade, o combate ? explora??o, ? pobreza, ? exclus?o, o aprofundamento da democracia, n?o podem ignorar esta tend?ncia e que a indispens?vel ac??o colectiva pode e tem de contar com uma cada vez maior vontade e capacidade de interven??o individual. Um segundo aspecto no correio recebido ? a eleva??o c?vica. N?o seria de esperar que quem subscreve ideias aqui defendidas o fizesse de forma rude ou agressiva, mas sabe-se que com os advers?rios da IVG o equil?brio n?o costuma ser tra?o saliente. Tamb?m aqui sublinhe-se que o sucedido com estas mensagens n?o destoa de uma preocupa??o em manter um tom geral contrastante com epis?dios e radicalismos do N?O bem mais vivos ainda quando da aprova??o da primeira legisla??o. H? excep??es virulentas, sem d?vida, mas o seu n?mero e a condena??o que merecem talvez sejam afinal mais uma positiva consequ?ncia do crescente enraizamento dos valores de respeito pela liberdade e pela dignidade humanas que sustentam afinal a tend?ncia para a vit?ria do "sim". Finalmente (nas limita??es do espa?o de que disponho, recorrerei ao e-mail em alguns casos) tr?s curtas observa??es aos que discordaram do que escrevi. Insisto, n?o est? em causa ser-se favor?vel ou contr?rio ? IVG: est? em causa acabar com a sua criminaliza??o, por um lado, e, mediante essa despenaliza??o (n?o liberaliza??o, note-se bem) contribuir para alterar e melhorar radicalmente do ponto de vista cl?nico e assistencial as condi??es a que milhares e milhares de mulheres se v?m for?adas. N?o t?m, por outro lado, a menor sustenta??o os argumentos de que a despenaliza??o "fomentar?" o aborto, tal como n?o a t?m as afirma??es de que diminuir? a procura do Planeamento Familiar e do recurso a outros m?todos contraceptivos (n?o aconteceu num ?nico pa?s da Europa e na Comunidade apenas a Irlanda mant?m a criminaliza??o). Poder? ter alguma justifica??o o coment?rio que me dirigiu um leitor segundo o qual quem beneficiar? sobretudo com a despenaliza??o ser?o mulheres com meios econ?micos para recorrerem a cl?nicas especializadas. Mas o problema aqui, caro leitor, n?o ? da despenaliza??o - ? da sociedade. As condi??es de ricos e pobres s?o diferentes como o s?o nas suas casas, no seu trabalho, nas suas doen?as, no seu vestir ou no seu comer. A luta seguinte - a luta de sempre - ? para que todas, mas todas as mulheres, independentemente dos proventos, possam ter o apoio necess?rio mediante um servi?o de sa?de p?blico preparado. Mas para o exigir ? necess?rio despenalizar, porque n?o se pode exigir a um servi?o de sa?de p?blica que apoie uma mulher na pr?tica de uma decis?o pela qual uma legisla??o medieval lhe imp?e uma pena de tr?s anos de cadeia. E ? por isso que combater a despenaliza??o ? apoiar o aborto clandestino. Nenhuma transforma??o na vida das sociedades resolveu jamais todos os problemas. Muitos se resolveram, mas decididamente essencial ? a vontade e decis?o da Humanidade para concretizar transforma??es que a tornem melhor e mais justa. E porque partilho essa vontade e essa decis?o irei, de facto, votar "sim".