Artigo de João Amaral

«A síndroma e a sua causa»

Há uma técnica usada pelos responsáveis da OTAN para enganar a opinião pública na questão do urânio empobrecido (UE), que se impõe desmascarar. Ainda agora foi usada por Javier Solana, o ex-secretário-geral da OTAN responsável pelas guerras nos Balcãs.

Pomposamente, os responsáveis da OTAN dizem que não foi provada qualquer relação entre o uso do UE e os casos de doença. Fazem estas afirmações como quem põe um ponto final na questão. Muitos são os que se deixam levar tomando a afirmação com esse sentido, incluindo um certo correspondente em Bruxelas que, ingenuamente, a traduz pela afirmação de que não haveria relação entre as patologias e o UE.

O truque está em insinuar que é conclusão o que se limita a ser a constatação de que ainda não foi neste momento estabelecida a relação de causa-efeito entre aquele urânio e as patologias encontradas.

Mas esse facto não faz desaparecer três questões.

A primeira é a de que as coincidências são efectivas. Estes casos de doença estão a aparecer sistematicamente em zonas onde foram usadas munições com UE. Foi aliás o que sucedeu na Guerra do Golfo, com as leucemias em iraquianos e com o conjunto de patologias que afectaram os veteranos americanos conhecidas como a síndroma do Golfo.

Essa é, aliás, uma das razões para os manuais militares americanos alertarem para os perigos do UE e ensinarem as precauções para o usar.

A segunda questão é o facto de os muitos estudos conhecidos apontarem para a perigosidade do urânio. Esses estudos explicam as razões que tornam o UE perigoso, demonstrando que o principal perigo é tóxico, decorrente da sua fragmentação no momento do impacto em micropartículas, que podem ser inaladas ou ingeridas, actuando sobre o organismo da forma que actuam os metais pesados, como o chumbo.

Mas é a terceira questão que é essencial. É a do ónus da prova: a de saber quem é que nesta matéria tem de provar e o quê. Ora, perante todas as coincidências existentes e os estudos referidos, o ónus da prova incumbe à OTAN. O que há que provar não é se há uma relação entre o UE e os danos em pessoas. O que tem de ser provado é o contrário. Quem tem o encargo de fazer prova é a OTAN e é a prova de que não foi o UE que causou aqueles danos, mas outra substância, qual e de que forma.

Há uma situação paralela, que permite explicar bem o que se afirma. Trata-se da doença das "vacas loucas". Continua a não estar estabelecida cientificamente a relação entre a nova variante da Creutzfeldt-Jacob (encefalopatia espongiforme humana) e a BSE (encefalopatia espongiforme bovina). O mesmo que se passa com a relação entre o UE e as síndromas do Golfo e dos Balcãs.

Mas, o facto de não estar estabelecida a relação entre a BSE e a doença humana não impediu que se proibisse as rações de origem animal nem que se abatesse centenas de milhares de vacas, nem que se proibisse os consumos de certas partes do animal, nem que se tomasse sérias medidas de identificação da origem e história de cada animal.

Toda esta aplicação de um necessário princípio de precaução custou rios de dinheiro e atirou para o lixo bens alimentares essenciais. Como é possível estar agora a regatear a aplicação do mesmo princípio e negar a aplicação de uma moratória no uso destas munições, quando aqui estamos perante os mais abjectos produtos, que são as armas de morte?

Quanto mais se sabe deste processo (por exemplo, a publicação de um artigo no Jornal do Exército há ano e meio alertando para os perigos do urânio empobrecido), mais avulta a responsabilidade da OTAN e dos governos que nela decidem, entre eles o português.

Não venha o Governo falar de ignorância ou das culpas dos outros. Assuma as suas responsabilidades, aliás bem pesadas!

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