Nos últimos anos, o problema dos atrasos nos pagamentos do Estado atingiu uma dimensão alarmante, afetando todos os setores de atividade e, em particular, os seus elos mais fracos.
O atraso nestes pagamentos afeta negativamente a vida de milhares de cidadãos, empresas e entidades sem fins lucrativos, constituindo um fator de agravamento da situação económica e social do País. Afeta as empresas, que veem as suas disponibilidades financeiras ou liquidez postas em causa, colocando em risco a sua viabilidade económica ou obrigando-as a assumir elevados encargos suplementares. Especialmente prejudicadas são as micro, pequenas e médias empresas, que, forçadas a aguardar pagamentos durante meses e, por vezes, anos, e tendo muitas delas o Estado como principal cliente, sentem grande dificuldade em prosseguir a sua atividade.
Assentando numa visão simplista e deturpadora da realidade, o Governo atribui a origem do fenómeno dos pagamentos em atraso a uma mera aplicação deficiente dos procedimentos de registo e controlo de compromissos.
Na realidade, o problema tem a sua origem na política de subfinanciamento dos serviços do Estado nas administrações central, regional e local, levada a cabo por sucessivos governos do PS, PSD e CDS, subordinada aos dogmáticos objetivos da convergência nominal imposta pela moeda única, pelo cumprimento do Pacto de Estabilidade e, mais recente, pela total subserviência ao Pacto de Agressão da troica.
A obsessão pela redução do défice orçamental e pelo aparente controlo do crescimento da dívida pública tem levado sucessivos governos dos partidos da troica interna a negar a diversas entidades públicas, quer a nível central, quer a nível regional e local, as dotações orçamentais necessárias para cobrir todas as despesas decorrentes das respetivas funções e competências constitucionais e legais, colocando-as na indesejável situação de não conseguirem fazer face a todos os compromissos assumidos.
Partindo de um diagnóstico errado sobre a origem dos pagamentos em atraso, o Governo enveredou pelo caminho fácil da imposição de constrangimentos burocráticos e administrativos à execução da despesa orçamental e à assunção de compromissos financeiros decorrentes da contratação de serviços, aquisição de mercadorias ou contratação de pessoal por parte das entidades das administrações central, regional e local, da Segurança Social e dos hospitais EPE, sem antecipadamente ter atacado a origem do problema dos pagamentos em atraso, ou seja, o subfinanciamento crónico dos serviços públicos, desresponsabilizando-se das opções políticas de suborçamentação e subfinanciamento, passando o ónus para eleitos regionais e autárquicos, para responsáveis de serviços e empresas públicas e para os respetivos trabalhadores.
A solução encontrada pelo Governo e pela maioria PSD/CDS que o suporta, consagrada na Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro (Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso) é, contudo, completamente desadequada. Conduz, tal como o PCP alertou insistentemente aquando da discussão da proposta de lei na Assembleia da República, ao estrangulamento funcional das entidades públicas e à degradação da sua capacidade de prestarem os serviços públicos que lhes estão atribuídos. Compromete as funções sociais do Estado, visando o favorecimento dos grandes interesses privados que, desde há muito tempo, procuram apoderar-se dos serviços prestados pela administração pública, transformando-os em chorudos negócios. No caso concreto dos municípios, representa ainda uma inaceitável intromissão na autonomia administrativa e financeira do Poder Local, consagrada na Constituição da República Portuguesa.
Reconhece-se que algumas normas consagradas na Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso poderiam ter alguma utilidade. Mas essa utilidade só se verificaria noutro quadro político, em que a prioridade fosse a valorização dos serviços públicos e das funções sociais do Estado, ao serviço do desenvolvimento económico e do progresso social, em vez da atual política de corte cego nas despesas e de subfinanciamento, destinada a reconfigurar o Estado, colocando-o ao serviço dos interesses do grande capital.
Particularmente afetadas pela Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso têm sido as autarquias locais. A realidade concreta veio a confirmar as preocupações manifestadas pelo PCP quanto às consequências nefastas da aplicação da Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso na administração local. A sua aplicação está a criar inúmeros problemas no quotidiano dos municípios, impôs dificuldades ao nível da gestão, tornando-a menos ágil e flexível, colocando mesmo em causa o cumprimento das suas competências e conduzindo à sua paralisação. Em muitas autarquias há diversas equipas paralisadas, por falta de materiais, impossibilitando a execução de funções ao nível da manutenção urbana, dos espaços verdes, da conservação das vias rodoviárias ou da manutenção de refeições e transportes escolares. Em suma a aplicação desta lei, traduziu-se na asfixia do funcionamento das autarquias, condicionando negativamente a sua intervenção e a capacidade de resolução dos problemas junto das populações. Aliás, vários municípios assumiram publicamente o incumprimento da Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso, para poderem dar a resposta necessária às respetivas populações. Mesmo a publicação de um Despacho que permite aos municípios considerar os montantes a transferir pelo Ministério da Educação ao abrigo dos programas das refeições e dos transportes escolares, não resolve o problema.
A Associação Nacional dos Municípios Portugueses (ANMP) expressou veementemente a sua oposição à Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso ainda no processo de discussão deste diploma. Reiterando essa posição, as conclusões do XX Congresso (Extraordinário) da ANMP realizado no passado dia 29 de setembro, defendem a revogação da Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso. Entendem que esta lei se trata de um “diploma absurdo, completamente alheio ao bom senso que deve imperar, elaborado por quem desconhece a realidade, que paralisia a gestão municipal e que arrisca resumir a gestão municipal à gestão de tesouraria e os eleitos adjuntos de tesoureiros”, e afirmam ainda, que caso se mantenha a obrigatoriedade da aplicabilidade desta lei, os municípios terão de suspender “as atividades municipais em aspetos fundamentais nos serviços que prestam às populações”.
No plano da administração local não se pode ignorar a ingerência da Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso na autonomia administrativa e financeira do Poder Local Democrático, consagrada na Constituição da República Portuguesa. Acresce ainda as dúvidas de inconstitucionalidade, suscitadas pela ANMP, no que respeita à intromissão na autonomia do Poder Local Democrático e à equiparação dos eleitos autárquicos a dirigentes municipais. Neste sentido, a Procuradoria-Geral da República pediu a declaração de inconstitucionalidade da Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso, remetendo para o Tribunal Constitucional.
A Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso tem também criado profundas dificuldades no setor da saúde. Os estabelecimentos de saúde integrados no Serviço Nacional de Saúde defrontam-se com constrangimentos diários, decorrentes da aplicação desta lei, a acrescer aos sucessivos cortes orçamentais. Por exemplo, hoje as direções hospitalares têm dois caminhos, ou são responsabilizadas pelo não cumprimento da Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso ou pelo não tratamento dos doentes. Muitos gestores hospitalares assumiram publicamente que a aplicação da lei não é compatível com a missão dos hospitais, referindo mesmo a impossibilidade do seu cumprimento. Nos hospitais e centros de saúde registam-se faltas de material clínico; nos hospitais há restrições na realização de cirurgias ou na dispensa de medicamentos aos utentes. Há relatos da ocorrência de racionamento na dispensa de medicamentos, que se traduz na divisão de embalagens, na dispensa de medicamentos somente para 15 dias – quando anteriormente a dispensa era por um período mais alargado –, ou mesmo dificuldades no acesso dos utentes a determinados medicamentos.
O dia-a-dia demonstra que a aplicação da Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso aos estabelecimentos públicos de saúde gera novos obstáculos na prestação de cuidados de saúde adequados aos utentes. Segundo uma listagem das entidades da Administração Pública que se encontram em incumprimento da Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso, publicada pela Direção Geral do Orçamento referente ao mês de agosto, dos 59 serviços considerados incumpridores pelo Governo, 14 são serviços da área da saúde, nomeadamente as cinco Administrações Regionais de Saúde, Unidades hospitalares e institutos públicos.
O próprio Governo, perante a força dos factos e as inúmeras denúncias de entidades públicas – particularmente das autarquias, dos estabelecimentos de saúde e de instituições de ensino superior –, acabou por ter que reconhecer, embora a contragosto, os sérios problemas verificados na aplicação da Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso, com a publicação do Decreto-Lei n.º 127/2012, de 21 de junho, que pretende esclarecer os procedimentos necessários à aplicação da mesma e à operacionalização da prestação de informação.
Em particular, estabelece o Decreto-Lei n.º 127/2012 que as entidades públicas dispõem de um período de 45 dias seguidos para procederem à adaptação ou aquisição de sistemas informáticos necessários à aplicação da Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso. Também no mesmo diploma legal se admite que, num período transitório, a inserção do número de compromisso sequencial na ordem de compra, nota de encomenda ou documento equivalente possa ser feita manualmente. Ou seja, 120 dias após a entrada em vigor da Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso, o Governo reconheceu não estarem as entidades públicas preparadas para o seu cumprimento.
Apesar da clarificação de alguns procedimentos necessários à aplicação da Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso, o Decreto-Lei n.º 127/2012 não resolveu – nem poderia resolver já que essa não era a intenção do Governo – o problema de fundo: o subfinanciamento crónico dos serviços públicos. Enquanto este problema não estiver resolvido, a imposição dos procedimentos estabelecidos na Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso tem como consequência o estrangulamento funcional das entidades públicas e a degradação dos serviços por ela prestados.
Impõe-se, pois, a revogação imediata da Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro (Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso), assim como do Decreto-Lei n.º 127/2012, de 21 de junho, libertando as entidades das administrações central, regional e local, da Segurança Social e dos hospitais EPE de uma legislação asfixiante que as impede de cumprir cabalmente as atribuições que lhes estão cometidas por lei.
Nos termos regimentais e constitucionais aplicáveis, os deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte Projeto de Lei:
Artigo 1.º
Revogação
São revogados:
a) a Lei n.º 8/2012, de 21 de Fevereiro, que «aprova as regras aplicáveis à assunção de compromissos e aos pagamentos em atraso das entidades públicas»;
b) o Decreto-Lei n.º 127/2012, de 21 de Junho, que «contempla as normas legais disciplinadoras dos procedimentos necessários à aplicação da Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso, aprovada pela Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro, e à operacionalização da prestação de informação nela prevista».
Artigo 2.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no primeiro dia após a sua publicação.
Assembleia da República, em 2 de novembro de 2012