Projecto de Lei N.º 674/XIV/2ª

Regula as relações de trabalho no exercício profissional da advocacia

Exposição de motivos

Nas últimas décadas tem despontado na sociedade portuguesa o exercício institucionalizado da atividade da advocacia assente na divisão objetiva entre advogados assalariados e sócios de sociedades aproximando-se a profissão da lógica empresarial em clara ambivalência com o pendor não mercantilista da profissão.

São já milhares de advogados, na sua maioria jovens, que exercem a atividade em regime de subordinação, numa relação de dependência económica e funcional de outros advogados, desenvolvida sobretudo por grandes sociedades que fazem gaudio do uso de expressões, qualificativos, organização funcional e métodos copiados do mundo empresarial. Tal evolução tem contribuído para socavar o relevante pendor de interesse público assinalado à advocacia, descaracterizando-a em benefício da comercialização da prestação de serviços, por um lado, e por outro, intensificando contradições típicas das relações laborais.

Embora sujeitos a uma realidade de subordinação jurídica, são-lhes negados direitos laborais, tais como proteção no emprego, retribuição mínima, organização do trabalho em condições que permitam a conciliação da atividade profissional com a vida familiar, repouso e lazeres, limite máximo da jornada de trabalho, descanso semanal e férias pagas, parentalidade, proteção no desemprego, entre tantos outros. Esta realidade tem contribuído para a disseminação da precariedade, sobre-exploração e dependência do advogado assalariado.

Abrindo os olhos à realidade entende o PCP que a existência de trabalho subordinado na advocacia deve ser regulada, protegendo-a, e com direitos assegurados, como acontece aos demais trabalhadores por conta de outrem. No mesmo sentido se toma a opção pela inscrição no regime geral da Segurança Social assegurando-se desse modo a proteção social integral dos advogados em subordinação, sendo opcional a compensação pelas contribuições para a CPAS. Também se prevê que os advogados em regime de subordinação deverão ter assegurada uma carreira para progressão como advogado na estrutura em que se integra.

Acresce que o exercício da advocacia, além de imprescindível para a boa administração da justiça, obedece a princípios deontológicos, de forte vocação ética e moral, que devem continuar a ser protegidos e garantidos especialmente em relações de subordinação de natureza eminentemente conflitual e desigual.

Pertence ao passado o conceito de advogado de pendor essencialmente liberal, no pressuposto de que a profissão de advogado seria sempre estruturalmente incompatível com qualquer vínculo de subordinação jurídica, logo laboral, só porque poria em causa os princípios fundamentais da autonomia e independência técnicas do advogado. A figura do advogado de empresa veio desde logo contraditar essa conceção.

A advocacia modificou-se nos últimos anos e por isso a lei tem de acompanhar essas alterações sociais. Quando existam, mesmo na advocacia, não há relações laborais de menor estatuto ou transfiguradas em prestação de serviço e é assim que deve ser, evitando novas ambiguidades sempre com prejuízo para a parte menos protegida.

A presente lei especial ao invés de criar um novo regime jurídico-laboral estabelece os termos do âmbito e da equiparação do Código do Trabalho às relações subordinadas existentes no exercício da advocacia sem interferir nos advogados de empresa desde há muito por ele abrangidos numa situação estabilizada e respeitando a qualificação de advogado inserido numa estrutura que decorre do Estatuto da Ordem dos Advogados. Cria por isso novas presunções da relação individual de trabalho específicas do exercício subordinado da advocacia clarificando que a figura de advogado associado não se concilia com a de advogado assalariado.

Com a presente iniciativa legislativa o Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português toma a opção pela defesa e garantia dos direitos individuais, em proveito de uma advocacia mais humana e justa, na perspetiva de reconhecer a realidade gerada na advocacia e valorizar as relações contratuais celebradas entre os advogados assalariados e suas entidades empregadoras levando em conta certas especificidades próprias da profissão.

Nestes termos, ao abrigo da alínea b) do artigo 156.º da Constituição e da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do Regimento, os Deputados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte Projeto de Lei:

Artigo 1.º

Objeto e âmbito

  1. A presente lei estabelece o regime jurídico aplicável aos advogados que exercem a sua atividade profissional sob a forma de trabalho dependente.
  2. A presente lei é ainda aplicável:
    1. ao advogado estagiário, após o termo da primeira fase de estágio, estando nas condições do número anterior;
    2. a qualquer advogado cuja relação contratual, prevista ou não no regulamento próprio de uma sociedade de advogados a que se refere o nº 9 do artigo 213º do Estatuto da Ordem dos Advogados, configure objetivamente uma relação em regime de subordinação.
    3. ao profissional de sociedade que se estabeleça em território nacional para a prestação de serviços de advocacia nos termos do disposto no artigo 212º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
  3. A presente lei não se aplica ao advogado de empresa e ao consultor de sociedade de advogados que não pratique em qualquer caso atos de advocacia nem substitua terceiros na prática informal de tais atos.

Artigo 2.º

Regime jurídico próprio

  1. Sem prejuízo das regras especiais e das adaptações previstas nos artigos seguintes, as disposições do Código do Trabalho são aplicáveis ao advogado compreendido no âmbito estabelecido no artigo 1º que exerça regularmente uma atividade profissional em regime de subordinação para sociedade de advogados, escritório de advogados não organizado em forma societária, advogado em prática individual ou inserido em sociedade civil e preencha as presunções estabelecidas no artigo 12.º do Código do Trabalho.
  2. Para os efeitos previstos no número anterior, são presunções adicionais às contidas no 12.º do Código do Trabalho, específicas do exercício subordinado da advocacia, a escolha unilateral pela entidade empregadora de processos, de clientes e do modo de organização e orientação da atividade profissional da qual beneficia o escritório, e a exclusão objetiva do advogado subordinado da progressão e plano de carreira previstos no artigo 5º e da partilha equitativa de honorários.
  3. O advogado contratado pode usar instrumentos de trabalho próprios, não ter um local de trabalho nem horário fixos, estar sujeito a regime parcial ou total de teletrabalho, sem que essas circunstâncias específicas em uso na atividade da advocacia possam concorrer para afastar a consequência jurídica que decorre da verificação das presunções contidas no artigo 12.º do Código do Trabalho e no número anterior.
  4. O contrato nominado como de avença ou relação jurídica consensual sujeita a emissão de recibo verde, estabelecida entre advogados ou entre estes e sociedades de advogados, cujo objeto consista na prática de atos de advocacia, na falta da adaptação prevista no n.º 7, é convolado em contrato individual de trabalho abrangido pelo Código de Trabalho.
  5. Ficam excluídas do disposto no número anterior as situações em que o advogado prestador emite quitação obtendo diretamente do constituinte honorários provenientes da sua atividade profissional.
  6. A relação jurídica à qual se aplica o regime previsto no presente artigo é objeto de contrato reduzido a forma escrita.
  7. O regulamento interno das sociedades de advogados a que alude o nº 9 do artigo 213º do Estatuto da Ordem dos Advogados fica subordinado ao presente regime jurídico devendo ser adaptado, caso necessário, no prazo máximo de sessenta dias, sendo nulas todas as disposições contrárias ou restritivas menos favoráveis ao advogado em subordinação compreendido no âmbito estabelecido no artigo 1º.
  8. O presente regime jurídico-laboral tem natureza imperativa, sem prejuízo de condições mais favoráveis ao advogado individualmente contratadas.

Artigo 3.º

Contribuições para a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores

  1. O advogado abrangido pelo regime jurídico do artigo anterior fica sujeito ao regime contributivo e de proteção social próprio dos advogados.
  2. A entidade empregadora é responsável pela inscrição e pagamento de contribuições para o regime geral da segurança social, podendo adicionalmente optar por compensar o advogado contratado, total ou parcialmente, na proporção do período normal de trabalho, pelo pagamento das suas contribuições para a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS).

Artigo 4º

Condições especiais

O advogado cujo exercício da atividade se faça ao abrigo do regime jurídico constante da presente lei fica sujeito aos seguintes deveres e direitos especiais, sem prejuízo das demais regras e princípios estatutários e de outras regras contratuais lícitas sobre direitos e deveres:

  1. Dever de confidencialidade respeitante a assuntos profissionais ou internos da sociedade ou escritório em que se integra, incluindo as matérias de organização, funcionamento e clientela;
  2. Dever de colaboração diligente e de boa-fé, de acordo com as orientações da entidade empregadora;
  3. Dever de não concorrência, quando em ocupação exclusiva, salvo os casos de permissão expressa, reduzida a escrito, de angariação de clientela própria;
  4. Direito a manter clientela própria, pré-existente à data do ingresso em regime subordinado, desde que não concorra com a entidade empregadora nem constitua conflito de interesses nos termos estatutários;
  5. Direito de recusar a sua colaboração e solicitar a sua substituição em casos específicos, designadamente, por motivos éticos ou deontológicos devidamente fundamentados;
  6. Direito a patrocinar o seu cônjuge, descendentes e ascendentes, sem que com isso viole o eventual regime de exclusividade contratado ou o disposto na alínea c);
  7. Direito à formação contínua necessária à manutenção de um nível adequado de capacitação técnica e profissional no exercício da profissão, pelo menos nas mesmas condições de tempo e modo previstas no Código do Trabalho, com prioridade para a participação nas ações de formação promovidas ou patrocinadas pela Ordem dos Advogados.
  8. Direito a ser compensado pela despesa incorrida em deslocações realizadas em serviço e por conta da sociedade ou escritório em que se integra.

Artigo 5º

Progressão e plano de carreira

  1. A entidade empregadora deve manter informado o advogado, desde o momento da sua admissão, acerca das regras ou princípios relevantes e em vigor em matéria de progressão como advogado na estrutura em que se integra.
  2. A entidade empregadora deve, ouvidos os advogados interessados, aprovar o respetivo plano de carreira, nos termos estabelecidos no Estatuto da Ordem dos Advogados, devendo os critérios de progressão constantes do plano de carreira conter elementos objetivos de apreciação quantitativa e qualitativa, compatibilizando o princípio da não discriminação.
  3. Considera-se exclusão objetiva da progressão e plano de carreira quando, volvidos os primeiros cinco anos de experiência após a agregação, o advogado não seja promovido ou não progrida na carreira estabelecida findo esse período, ou, posteriormente, num período superior a três anos consecutivos.

Artigo 6.º

Deontologia profissional

  1. A atividade do advogado abrangido pela presente lei é exercida com absoluta independência e autonomia técnica e está sujeita às garantias, normas e princípios deontológicos que regulam o exercício da advocacia, nomeadamente o Estatuto da Ordem dos Advogados.
  2. O pacto de não concorrência, a existir, não pode, em nenhum caso, corresponder a uma limitação geral ou tendencial ao exercício da profissão de advogado, nem às especialidades de direito a que se dedique a sociedade ou o escritório de advogados não organizado em forma societária beneficiários da atividade.
  3. O advogado mantém, após a cessação do contrato, a obrigação de confidencialidade relativamente aos clientes da entidade empregadora e aos respetivos assuntos de que teve conhecimento durante ou por causa da sua relação contratual anterior.

Artigo 7º

Regime sancionatório e inspeção

  1. O regime sancionatório estabelecido no Código do Trabalho aplica-se, com as necessárias adaptações, às relações contratuais estabelecidas ao abrigo da presente lei.
  2. As relações subordinadas reguladas pela presente lei ficam sujeitas à ação inspetiva da ACT incluindo o dever de comunicação ao respetivo Conselho de Deontologia da Ordem dos Advogados.

Artigo 8º

Produção de efeitos

  1. A presente lei aplica-se às situações por ela abrangidas existentes à data da sua entrada em vigor.
  2. Os escritórios de advogados não organizados em forma societária, e os advogados em prática individual em especial, abrangidos pela presente lei, devem dar cumprimento ao novo regime estabelecido no prazo de 90 dias a contar da sua entrada em vigor, sendo de 60 dias o prazo geral imperativo estabelecido para os demais casos para a respetiva adaptação ao presente regime jurídico.

Artigo 9.º

Entrada em vigor

A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.

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