Projecto de Lei N.º 896/XV/2.ª

Regime extraordinário de proteção da habitação própria face ao aumento dos encargos com o crédito à habitação

Exposição de motivos

O novo aumento das taxas de juro, o décimo desde julho do ano passado, decretado pelo BCE é uma decisão ao serviço do capital financeiro que se traduz num agravamento da situação do País (sujeito a novas pressões para o seu financiamento), das pequenas e médias empresas e, sobretudo, do povo português, em particular das mais de 1 milhão e 300 mil famílias que têm empréstimos à habitação e que sentem o sufoco nas suas condições de vida. Uma decisão tão mais inaceitável quando assistimos à acumulação de lucros por parte dos bancos – mais de 11 milhões de euros por dia.

A subida das taxas de juro pelo BCE veio igualmente colocar as famílias numa situação aflitiva e os sacrifícios acumulam-se na tentativa de manter a casa e não ter de a entregar ao banco.

Apesar de a Comissão Europeia reconhecer que “os riscos de uma espiral salários-preços parecem extremamente controlados”, apontando para os estudos do BCE que concluem que “o aumento dos lucros foi significativamente mais dinâmico que o aumento dos salários”, e após o anúncio de entrada em recessão da Zona Euro, o BCE e a União Europeia insistem em promover uma política monetária restritiva sobre a procura, com profundos impactos sobre os trabalhadores e as suas famílias, especialmente em países como Portugal. O Governo e o Banco de Portugal não podem ser cúmplices desta política.  É preciso que o Governo português assuma uma posição clara, exigindo a baixa das taxas de juro por parte do BCE e que enfrente as imposições da União Europeia e a submissão do País ao Euro.

Estamos perante uma política que agrava injustiças e desigualdades, provocando enormes dificuldades no acesso à habitação, com preços que não são suportáveis pelos baixos rendimentos das famílias. Não é por fatalidade, ou casualidade, que Portugal seja dos países em que os jovens saem mais tarde da casa dos pais.

São precisas medidas que ponham os lucros da banca a suportar o agravamento das taxas de juro, que atribuam ao banco público, a CGD, orientações que contribuam para uma efetiva descida das taxas de juro no mercado bancário, nomeadamente, a fixação de um spread máximo a praticar pela CGD nos contratos de crédito à habitação, abaixo dos valores médios de mercado, aplicável a contratos existentes, novos contratos e à transferência de contratos celebrados noutras instituições financeiras, sem que possam ser cobrados quaisquer encargos administrativos ou outros para os respetivos titulares, a fim de influenciar o mercado bancário para uma redução geral dos encargos com o crédito à habitação.

O PCP apresenta soluções concretas para impedir que as famílias com crédito à habitação entrem em situação de incumprimento e que possam vir-se obrigadas a ficar sem casa, devido ao acelerado aumento das taxas de juro, num quadro de perda de poder de compra dos salários e das pensões. Soluções concretas para responder a um problema que afeta mais de um milhão de famílias, empurradas para o endividamento à banca para resolver o seu problema de habitação, dada a falta de resposta pública nesta matéria.

Nesta iniciativa propomos medidas que podem desde já ser adotadas, designadamente:

  • Travar a subida das prestações das famílias e pôr os lucros dos bancos a suportar as subidas das taxas de juro;
  • Fixar o limite máximo da prestação em 35% do rendimento mensal do agregado familiar e reforçar o poder negocial das famílias;
  • Criar uma moratória, por um máximo de 2 anos, suspendendo a amortização do capital e pagando juros apenas a uma taxa igual àquela a que os bancos se financiam;
  • Conversão do crédito em arrendamento com possibilidade de retoma do empréstimo no prazo de 10 anos, descontando as rendas pagas.

Se os bancos estão a lucrar como nunca, a questão que se impõe é de colocar os lucros da banca a pagar a subida das taxas de juro. Os lucros da banca são obtidos à custa dos sacrifícios das famílias e do seu empobrecimento. A banca deve ser chamada a contribuir face ao aumento das taxas de juro e não a manter este estatuto de privilégio.

Importa relembrar que a Constituição consagra o direito de todos à habitação – e não o direito dos bancos a impor a lei do mais forte e a esmagar as renegociações dos contratos.

Apesar de toda a propaganda em torno de medidas de renegociação aprovadas pelo Governo, a realidade já demonstrou que tais medidas são ineficazes. As renegociações não estão a levar a uma redução efetiva dos spreads. Há pedidos negados.

A atual situação exige soluções para resolver os problemas mais prementes, e exige a rutura com um caminho que tem vindo a ser prosseguido, de promoção da especulação imobiliária e de mercantilização da habitação, de liberalização de preços; de rutura com um caminho em que a habitação é considerada como mais uma oportunidade de negócio para obtenção de chorudos lucros pelos fundos imobiliários e pela banca e não como um direito.

A atual situação exige uma política alternativa, que garanta o direito constitucional à habitação a todos. Uma política alternativa que garanta a disponibilização de oferta pública de habitação para as diferentes camadas da população, dando prioridade ao investimento assegurado diretamente pelo Estado, sem transferir as suas responsabilidades para outros, a mobilização de património público para este fim e capacitando o IHRU com os meios necessários para a sua concretização; que proceda à requalificação do parque habitacional público, na sua maioria num elevado estado de degradação; que revogue a lei dos despejos e proteja e reforce os direitos dos inquilinos, regule os valores de renda e que impeça os despejos; a revogação dos “vistos gold” e do regime de residentes não habituais.

O que é preciso proteger não são os lucros da banca, mas sim a habitação das famílias.

Assim, nos termos da alínea b) do artigo 156.º da Constituição e da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do Regimento, os Deputados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte Projeto de Lei:

Artigo 1.º

Objeto e âmbito

  1. A presente lei cria um regime extraordinário de proteção da habitação própria face ao aumento dos encargos com o crédito à habitação, doravante designado Regime de Proteção da Habitação Própria.
  2. O Regime de Proteção da Habitação Própria estabelecido na presente lei aplica-se a todos os contratos de mútuo celebrados no âmbito do sistema de concessão de crédito à habitação destinado à aquisição, construção ou realização de obras de conservação e de beneficiação de habitação própria permanente.
  3. O Regime de Proteção da Habitação Própria é imperativo para as instituições de crédito mutuantes.
  4. A aplicação das medidas previstas no Regime de Proteção da Habitação Própria não prejudica a aplicação de condições mais favoráveis pelas instituições de crédito.
  5. A aplicação das medidas previstas no Regime de Proteção da Habitação Própria não pode ser invocada como fundamento para a aplicação de restrições, condicionamentos ou limitações do acesso ao crédito a quem a elas recorra.

Artigo 2.º

Definições

Para os efeitos previstos na presente lei entende-se por:

  1. «Crédito à habitação» os contratos de mútuo celebrados no âmbito do sistema de crédito à habitação destinado à aquisição, construção ou realização de obras de conservação ordinária, extraordinária e de beneficiação de habitação própria permanente;
  2. «Habitação própria permanente» a habitação onde o mutuário ou este e o seu agregado familiar mantêm, estabilizado, o seu centro de vida familiar;
  3. «Prestações» os montantes pagos periodicamente correspondentes à amortização de capital e aos juros;
  4. «Outros custos e encargos com o crédito» os custos e encargos que concorrem para a formação da Taxa Anual Efetiva Global (TAEG), acrescentando-se à Taxa Anual Nominal (TAN), sejam fixos ou variáveis, pagos de uma única vez ou em prestações periódicas, designadamente:
    1. Taxas e comissões bancárias de abertura do processo de crédito, de avaliação do imóvel, de manutenção de conta ou outras associadas ao processo de contratação do crédito;
    2. Prémios de seguros associados;
    3. Custos e encargos associados a vendas de produtos e serviços associadas facultativas ao contrato de crédito que constituam condição de redução do spread ou outro tipo de bonificação das condições contratuais;
  5. «Comissões» as prestações pecuniárias exigíveis pelas instituições de crédito aos clientes como retribuição por serviços prestados, diretamente ou através de terceiros, no âmbito da sua atividade;
  6. «Taxa de esforço» o rácio entre o montante da prestação e outros custos e encargos mensais com o crédito à habitação a que fica sujeito o agregado familiar e 1/14 do seu rendimento anual líquido.

Artigo 3.º

Redução de taxas, comissões bancárias e outros custos e encargos em face do aumento das taxas Euribor

  1. O aumento das taxas Euribor relevantes para efeitos do crédito à habitação determina a redução correspondente, de igual valor e proporcional dos outros custos e encargos com o crédito, de forma que não seja ultrapassado o valor da TAEG fixado no início do contrato.
  2. A identificação dos custos e encargos previstos no número anterior é feita a partir dos elementos constantes da Ficha de Informação Normalizada Europeia e do contrato de mútuo.

Artigo 4.º

Renegociação mediada do crédito à habitação

  1. É criado um processo de renegociação mediada do crédito à habitação.
  2. A renegociação mediada do crédito à habitação é realizada, sem direito de oposição pelas instituições de crédito:
    1. a requerimento do mutuário quando a taxa de esforço:
      1. ultrapasse os 35%; ou
      2. sendo originariamente superior a 35%, aumente em pelo menos 2 pontos percentuais (p.p.);
    2. por iniciativa do banco, com caráter obrigatório, sempre que a taxa de esforço seja igual ou superior a 50%.
  3. A renegociação prevista nos números anteriores é mediada, nos termos previstos nos números seguintes, por equipas técnicas a constituir pelo Banco de Portugal (BdP).
  4. A renegociação mediada do crédito à habitação consiste:
    1. na redução do montante das prestações correspondentes ao capital e aos juros, tal como definidas no contrato de crédito à habitação, abrangendo proporcionalmente juros e amortização de capital, até ao montante correspondente a uma taxa de esforço máxima de 35%;
    2. na aplicação dessa redução por um período entre 6 e 12 meses, renovável a pedido do mutuário até um período máximo de 24 meses;
    3. na extensão da maturidade do crédito por um período correspondente àquele por que vier a ser aplicada a redução das prestações, mesmo que ultrapassando os limites definidos pelo BdP para os contratos de mútuo bancário.
  5. Os rendimentos relevantes para cálculo da taxa de esforço são os existentes à data da renegociação das condições do crédito e são apurados pela média dos rendimentos obtidos nos seis meses anteriores.
  6. A comprovação dos rendimentos referidos no número anterior pode ser feita pelos respetivos recibos de vencimento ou, quando não exista essa possibilidade, por outros documentos idóneos, sem exigência de formalidades especiais.
  7. As equipas do BdP são responsáveis pela verificação das condições previstas no presente artigo.
  8. O prazo para a conclusão da renegociação é de 30 dias, cabendo ao Governo a responsabilidade pela regulamentação do respetivo procedimento.
  9. As condições resultantes da renegociação do crédito aplicam-se às prestações vencidas após o prazo de 30 dias previsto no número anterior.

Artigo 5.º

Moratória de capital

  1. A requerimento do mutuário, é aplicada uma moratória de capital aos contratos de mútuo bancário destinados à aquisição de habitação própria e permanente, nos termos dos números seguintes.
  2. A moratória de capital referida no número anterior determina a possibilidade de não pagamento da amortização de capital e apenas de juros, não implicando a constituição em mora, o vencimento antecipado do contrato ou o incumprimento contratual
  3. O pagamento de juros previsto no número anterior é feito a uma taxa correspondente à que tiver sido utilizada pelo Banco Central Europeu no financiamento bancário ou à que tiver sido aplicada ao banco na operação de financiamento no mercado interbancário, consoante a que seja mais baixa, considerando a mais recente à data do vencimento da prestação.
  4. O requerimento referido no n.º 1 é apresentado sob a forma e utilizando os meios previstos contratualmente para as comunicações entre o mutuário e a instituição de crédito, produzindo efeitos desde a data da sua apresentação.
  5. A moratória é aplicada pelo período requerido pelo mutuário, não podendo ser superior a um ano na sua aplicação inicial nem superior a dois anos no conjunto das renovações.
  6. A renovação do período de carência está sujeita às condições previstas para o requerimento inicial.
  7. A aplicação da moratória de capital prevista neste artigo determina a extensão da maturidade do contrato por período idêntico à duração total da moratória, mesmo que ultrapassando os limites de maturidade máxima dos contratos de mútuo bancário definidos pelo Banco de Portugal, não podendo constituir motivo justificativo para alteração das demais condições contratuais.

Artigo 6.º

Dação em cumprimento

  1. A dação em cumprimento é admitida no crédito à habitação sem possibilidade de oposição da instituição de crédito.
  2. O valor a considerar para efeitos da amortização da dívida é o do valor da avaliação do imóvel realizada aquando da concessão do crédito ou da que for realizada no momento da dação, consoante o que for mais elevado.
  3. Se, passados cinco anos da dação em cumprimento, se verificar que o imóvel foi vendido por valor superior ao montante da avaliação relevante no momento da dação, a instituição de crédito mutuante fica obrigada a entregar ao mutuário a diferença entre o valor em dívida à data da dação e o da venda mais elevada que se verificar naquele período, independentemente de quem proceder a essa venda.
  4. Se, naquele período, não se verificar nenhuma venda do imóvel por valor superior, considera-se a amortização feita nos termos do n.º 2.
  5. Se, dentro do prazo de cinco anos previsto no n.º 3, o imóvel não for vendido pela instituição de crédito mutuante, o mutuário pode requerer a anulação da dação em cumprimento, retomando-se o contrato de crédito a partir dessa data nas condições existentes à data da dação.

Artigo 7.º

Conversão em arrendamento para habitação

  1. Em caso de dação em cumprimento de imóvel que constitua habitação própria permanente ou de alienação de imóvel que constitua habitação própria permanente a Fundos de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional (FIIAH), o mutuário ou vendedor tem o direito de permanecer no imóvel na qualidade de arrendatário.
  2. Nas situações previstas no número anterior é aplicado o regime da renda condicionada com as seguintes especificidades:
    1. a aplicação do regime depende apenas de requerimento do mutuário ou vendedor no momento da dação em cumprimento ou alienação;
    2. a transmissão relevante, para efeitos do n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 80/2014, de 19 de dezembro, é a referida no n.º 1 do presente artigo;
    3. a renda anual não pode ser superior a 2% do total do capital em dívida à data da dação em cumprimento ou alienação.
  3. No prazo de 10 anos a partir da conversão em arrendamento, o arrendatário pode readquirir o imóvel pelo valor equivalente ao montante do capital em dívida à data da dação em cumprimento ou da alienação, deduzido do valor total das rendas entretanto pagas.

Artigo 8.º

Entrada em vigor

A presente lei entra em vigor no dia seguinte à sua publicação.

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