Intervenção de

Regime do Segredo de Estado - Intervenção de António Filipe na AR

 

 

Regulamentação do modo de exercício dos poderes de fiscalização da Assembleia da República sobre o Sistema de Informações da República Portuguesa e o regime do segredo de Estado

 

Senhor Presidente,

Senhores Deputados,

O Grupo Parlamentar do PCP traz hoje à discussão um projecto de lei  que visa regular duas questões de transcendente importância democrática e que são indissociáveis: A fiscalização do funcionamento do Sistema de Informações da República Portuguesa e o acesso da Assembleia da República a matérias classificadas como segredo de Estado.

 

A primeira questão tem sido objecto de grande e justificada controvérsia ao longo dos anos. O regime de fiscalização parlamentar do Sistema de Informações da República Portuguesa não é feito directamente através da Assembleia da República, como seria adequado e como é feito na maioria dos países democráticos, mas através da interposição de um Conselho de Fiscalização integrado por três personalidades que são indicadas por acordo entre os dois partidos com maior representação parlamentar.

 

Durante muitos anos, o Conselho de Fiscalização distinguiu-se negativamente, pela sucessiva demissão dos seus membros, incapazes de fazer face aos escândalos surgidos em torno dos Serviços de Informações, pela instabilidade da sua composição e funcionamento, pela falta de acordo entre o PS e o PSD quanto à sua composição, que o conduziu a vários anos de inexistência. É certo que a composição do Conselho está estabilizada e nada temos a objectar quanto ao perfil individual de cada um dos seus membros. Porém, essa, para nós, nunca foi, nem é, a questão essencial.  O essencial é que este modelo de fiscalização impede a Assembleia da República de exercer directamente uma função de primordial importância democrática, que é a fiscalização dos Serviços de Informações da República.

 

A Assembleia da República não se restringe aos dois maiores partidos. Os deputados dos dois maiores partidos são em maior número, mas não têm uma legitimidade democrática superior à dos restantes. Nem o Parlamento se reduz à maioria parlamentar, nem a oposição se reduz ao grupo parlamentar mais numeroso da oposição. E não há fiscalização parlamentar democrática de coisa nenhuma quando uma parte do Parlamento é pura e simplesmente excluída do exercício dessa fiscalização.

 

O que o PCP propõe é que a fiscalização parlamentar do SIRP seja assegurada por uma instância de controlo presidida pelo Presidente da Assembleia da República, que integre os Presidentes dos Grupos Parlamentares, bem como os Presidentes das Comissões Parlamentares de Assuntos Constitucionais, de Defesa Nacional e de Negócios Estrangeiros.

 

Esta instância teria ao seu cargo, no essencial, as funções que estão hoje cometidas ao Conselho de Fiscalização do SIRP e asseguraria também as condições de acesso, por parte do Parlamento, a matérias classificadas como segredo de Estado, substituindo a comissão fantasma criada pela Lei do Segredo de Estado em 1994 e que nunca deu, até hoje, qualquer sinal de vida.

 

O projecto de lei do PCP associa a questão da fiscalização do SIRP ao regime do segredo de Estado por uma razão óbvia que decorre do artigo 32.º da Lei Quadro do SIRP, segundo o qual, os registos, documentos, dossiers e arquivos dos serviços de informações cuja difusão seja susceptível de causar dano à unidade e integridade do Estado, à defesa das instituições democráticas estabelecidas na Constituição, ao livre exercício das respectivas funções pelos órgãos de soberania, à segurança interna, à independência nacional e à preparação da defesa militar.

 

Todos estes dados e informações são considerados segredo de Estado por força directa da lei, sem necessidade de qualquer classificação, e portanto, mesmo que a tal comissão do segredo de Estado funcionasse, passar-lhe-iam completamente ao lado. E também não vislumbramos nas atribuições do Conselho de Fiscalização do SIRP a capacidade para questionar os critérios que levam a considerar cada documento na posse do SIRP como integrando os requisitos legais para ser considerado como segredo de Estado.

 

Em resumo, não existe em Portugal um regime sobre o segredo de Estado. O que existem é disposições legais que protegem o segredo de Governo e o colocam a salvo de qualquer fiscalização parlamentar directa.

 

Esta situação é insólita e contraria mesmo o princípio constitucional da interdependência dos órgãos de soberania. O SIRP depende única e exclusivamente do Primeiro-Ministro, por intermédio do Secretário-Geral do SIRP. Os restantes órgãos políticos de soberania, Presidente da República e Assembleia da República estão afastados de qualquer participação directa no sistema. A Assembleia da República limita-se a eleger um Conselho de Fiscalização dos dois maiores partidos, e o Presidente da República depende das informações que o Primeiro-Ministro entenda fornecer-lhe sobre a condução da actividade dos serviços. Pode por isso acontecer que, no âmbito da cooperação internacional entre serviços congéneres, os serviços de informações portugueses transmitam a serviços secretos de outros países, informações que ocultam aos órgãos de soberania portugueses, perante os quais o Governo responde politicamente nos termos constitucionais.

 

A Constituição estabelece que os Deputados têm o direito de requerer e obter do Governo ou dos órgãos de qualquer entidade pública os elementos, informações e publicações oficiais que considerem úteis para o exercício do seu mandato, bem como de fazer perguntas ao Governo sobre quaisquer actos deste ou da Administração Pública e obter resposta em prazo razoável, salvo o disposto na lei em matéria de segredo de Estado. Porém, a Lei do Segredo de Estado não regula em que termos a Assembleia da República pode ter acesso a matérias abrangidas pelo segredo de Estado.

 

Se é perfeitamente justificável que o acesso dos Deputados a documentos e informações classificados como segredo de Estado seja restringido, tendo em conta os interesses de segurança interna e externa do Estado que a lei visa proteger, já não se afigura curial que essa restrição não seja, também ela, restrita, devidamente fundamentada, e determinada apenas em função dos interesses que visa proteger.

 

Assim, é de admitir que, perante um requerimento apresentado por um ou mais Deputados, solicitando o acesso a informações na posse do SIRP, as informações solicitadas possam ser fornecidas sem que daí decorra perigo para a segurança interna ou externa do Estado. Se assim for entendido, tratar-se-á tão só de acautelar as medidas de salvaguarda do grau de confidencialidade que o Governo e o Secretário-geral do SIRP considerem adequado.

 

Mas é de admitir também que o segredo de Estado seja invocado para recusar o acesso às informações solicitadas. Nesse caso, para além de se exigir um acto expresso de recusa devidamente fundamentado, não é admissível que a Assembleia da República, enquanto órgão de soberania competente para fiscalizar a actividade do Governo e da Administração, não tenha um mecanismo institucional que lhe permita avaliar a pertinência dessa fundamentação.

 

O PCP não propõe que haja uma derrogação do Segredo de Estado. Esse seria sempre salvaguardado. Do que se trata, é de encontrar um mecanismo efectivo, mediante o qual a Assembleia da República, enquanto órgão plural, possa fiscalizar a boa aplicação do regime do Segredo de Estado, designadamente por parte do Sistema de Informações da República Portuguesa.

 

Se a Lei n.º 6/94, de 7 de Abril, determina no seu artigo 1.º que o regime do segredo de Estado obedece aos princípios da excepcionalidade, subsidiariedade, necessidade, proporcionalidade, tempestividade, igualdade, justiça e imparcialidade, bem como ao dever de fundamentação, importa encontrar uma forma de fiscalizar minimamente o respeito por esses princípios.

 

Isso não tem acontecido, e para bem da democracia, é indispensável que aconteça.

 

Disse.

(...)

Sr. Presidente,

Srs. Deputados:

Começo por lamentar, sinceramente, que não seja possível, nesta Assembleia da República, termos uma discussão séria sobre os serviços de informações, sobre o Sistema de  Informações da República Portuguesa.

Sempre que o PCP aqui faz uma proposta concreta, colocando um problema real e propondo que seja discutida seriamente uma alteração de fundo ao regime de fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa, a resposta que os senhores - PS e PSD - dão é sempre, com um ar displicente, a seguinte: «O que os senhores querem é um lugar na fiscalização.»

O Sr. Deputado Matos Correia dizia que a regra da democracia é a regra da maioria. Eu diria que não é só a regra da maioria, é também a do respeito pelas minorias. E quando os mecanismos de fiscalização ficam exclusivamente nas mãos da maioria, não há fiscalização, Sr. Deputado.

Não há qualquer fiscalização quando ela fica apenas nas mãos da maioria.

É o que acontece em matéria de sistema de informações!

A questão que colocamos é esta: se o Sr. Deputado Matos Correia, ao abrigo dos seus direitos constitucionais, requerer o acesso a uma determinada informação e ela lhe for recusada com a evocação do segredo de Estado, o que é que o Sr. Deputado faz? Queixa-se ao Conselho de Fiscalização? Não faz sentido que um Deputado, para exercer as suas prerrogativas, se queixe a um órgão criado pela Assembleia da República.

Não faz sentido que o Sr. Deputado Matos Correia não tenha, no âmbito da Assembleia da República, uma forma de fazer valer os seus direitos constitucionais e que a Assembleia da República não tenha uma instância, enquanto órgão perante o qual o Governo responde politicamente, de poder avaliar se essa recusa é fundamentada, se essa recusa tem justificação ou não.

Em Espanha, a lei do segredo de Estado diz muito claramente que o segredo de Estado não é oponível perante o Parlamento. Em Portugal, nada se diz sobre isso.

Portanto, se a Administração Pública - já que os serviços de informações fazem parte da Administração Pública, embora seja um órgão sui generis - disser «isto é segredo de Estado, os senhores não têm acesso a isto», o Parlamento não tem um mecanismo institucional para reagir. Ora, é esta discussão que é preciso ter e é a esta discussão que, lamentavelmente, os senhores fogem, refugiandose em meia dúzia de coisas, dizendo que o que nós queremos é ter um lugar aqui ou ali, quando a questão não é essa.

A questão, Srs. Deputados, está em saber se os maiores partidos - PS e PSD -, em vez de fazerem do Estado e também dos serviços de informações uma coutada bipartidária, estão dispostos a ter uma discussão de regime séria sobre uma questão tão importante como são os serviços de informações.

Nos outros parlamentos isso é possível, mas, lamentavelmente, em Portugal não tem sido, por responsabilidade dos senhores.

 

 

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