Projecto de Resolução N.º 619/XV/1.ª

Reforço dos direitos da mulher em matéria de interrupção voluntária da gravidez

Exposição de motivos

Sucessivas gerações de mulheres viram-se obrigadas a recorrer ao aborto clandestino mesmo sabendo que, em face da lei, isso era considerado um crime sujeito a pena de prisão.

Este facto, do aborto clandestino, levava a que, quando existiam complicações, o que acontecia muitas vezes pela falta de condições em que o aborto era efetuado, as mulheres por receio de serem presas, atrasassem o recurso aos hospitais e mentissem sobre a causa das suas queixas, tendo como consequência uma mortalidade altíssima, ou lesões permanentes, que muitas vezes provocavam infertilidade em muitas jovens que, noutra altura, desejariam ser mães.

Finalmente em 2007, por força da luta das mulheres e das forças políticas, que como o PCP nunca desistiram de enfrentar um grave problemas social e de defender os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, na sequência de um referendo então efetuado, ficou consagrada a exclusão da ilicitude da interrupção voluntária da gravidez com a aprovação da Lei n.º 16/2007, de 17 de abril permitindo assim que Portugal se tenha visto livre de um quadro legal muito restritivo no que se refere à possibilidade de realização de uma interrupção voluntária da gravidez (IVG) em meio hospitalar.

Em julho de 2015, mesmo no final da XII legislatura, o PSD e o CDS-PP fizeram aprovar o Projeto de Lei n.º 1021/XII/4, vindo com este diploma a eliminar a isenção de taxas moderadoras nas situações em que a IVG venha a ser realizada por opção da mulher durante as primeiras 10 semanas de gravidez. Por, com a publicação da Lei n.º 134/2015, em setembro de 2015, a IVG por opção da mulher veio a ser onerada, passando a ser mais um fator discriminatório das mulheres com menos recursos económicos, correspondendo a um retrocesso nos direitos conquistados em 2007.

Felizmente a alteração da correlação de forças na Assembleia da República, na XIII legislatura veio permitir que esta lei fosse revogada, voltando a permitir o acesso universal das mulheres à IVG por sua opção nas primeiras 10 semanas de gravidez, deixando para trás o critério económico de acesso que PDS e CDS-PP quiseram impor.

Como consequência de um quadro legislativo que conferiu às mulheres condições de dignidade, legalidade e segurança médica, o número de abortos, que antes da lei de 2007 se estimavam em cerca de 100 mil abortos clandestinos por ano, passaram para um número actual da ordem de 11 640 IVG em 2021, mantendo-se a tendência de decréscimo que se vem registando desde 2011. Este decréscimo tem tendência a acentuar-se, visto que 90% das mulheres que recorreram à IVG, saíram dos serviços de saúde com um anticoncecional.

Se em matéria legislativa e regulamentar, a IVG por opção da mulher nas primeiras 10 semanas de gravidez é de acesso gratuito e universal, em matéria concreta este acesso verifica-se condicionado em diversas situações por falta de disponibilidade do serviço, seja por falta de profissionais, seja por falta de vontade das entidades prestadoras de saúde em assegurar a sua realização dentro dos parâmetros que a Lei determina.

No passado recente, diversas notícias têm vindo a público denunciando situações que põe gravemente em causa o direito das mulheres de acesso à IVG por sua opção, com relatos de processos que mais parecem um “calvário” do que um procedimento expedito como a Lei prevê.

Estas notícias dão conta de que os direitos das mulheres continuam a ser postos em causa verificando-se que em diversos hospitais do SNS muitas mulheres enfrentam enormes dificuldades no acesso à IVG, vendo-se obrigadas a esperar semanas ou a ter que percorrer centenas de quilómetros, enfrentando muitas vezes o desprezo, a recriminação ou mesmo a exposição pública.

Os dados públicos sobre esta temática mostram que dos 44 estabelecimentos de saúde oficiais para a realização da IVG por opção da mulher, apenas 27 estabelecimentos apresentam acesso ao procedimento por marcação direta da utente (11 na região Norte, 6 na região Centro, 5 na região de lisboa e Vale do Tejo, 1 na região Alentejo, 2 na região do Algarve, 1 na Região Autónoma da Madeira e 1 na Região Autónoma dos Açores) e em 4 estabelecimentos o acesso à IVG por opção da mulher resultará de referenciação por outras unidades de saúde. Assim, verifica-se que em cerca de 30% dos estabelecimentos oficiais para a realização da IVG por opção da mulher, este serviço não é prestado.

No que respeita à região Centro, a não realização de IVG quer na Unidade Local de Saúde da Guarda, quer na Unidade Local de Saúde de Castelo Branco e a respetiva referenciação do serviço para o Centro Hospitalar de Tondela Viseu, obriga a deslocações que variam entre os 80 km e os 170 km, com os prejuízos que tais deslocações impõem às mulheres que pretendem recorrer à IVG por sua opção, penalizando-as numa situação já de si fragilizada.

Na região de Lisboa e Vale do Tejo destaca-se que dos 13 estabelecimentos oficiais referenciados, 6 não disponibilizam o serviço e 2 entidades apenas o fazem por via de referenciação por parte de outras entidades, ou seja, apenas 5 estabelecimentos têm o serviço disponível, por marcação direta, para responderem a um universo de 421 766 mulheres entre os 15 e os 39 anos que residem na Área Metropolitana de Lisboa.

Volvidos cerca de 16 anos depois da lei que consagra o direito à IVG por opção da mulher, até às 10 semanas de gravidez, é inadmissível que esta seja diariamente incumprida no SNS. Hoje como no passado, são todas as mulheres que procuram os cuidados de saúde que são prejudicadas, mas sobretudo as mulheres das classes mais carenciadas, as que mais sofrem com o incumprimento da lei, vendo-se perante gravidezes indesejadas, atravessando situações emocionais difíceis, e que se confrontam com a inoperacionalidade do sistema, que falha num tão importante momento de decisão das suas vidas, deixando-as à mercê de outras soluções que podem inclusive pôr em risco a própria vida.

Para que as dificuldades hoje sentidas sejam ultrapassadas e sejam corrigidos os desvios ao cumprimento da lei, é fundamental que se conheça, em tempo e com rigor, as situações que se verificam em matéria de acesso à IVG, em cada uma das unidades de saúde integrantes do SNS e que face aos cenários concretos sejam tomadas as medidas adequadas.

Para tal é fundamental assegurar a realização dos registos de contacto de mulheres que pretendem recorrer à IVG por sua opção nas diversas unidades de saúde do SNS, que seja registado qual o encaminhamento dado a cada uma das situações, bem como os resultados desse mesmo encaminhamento.

A publicitação destes dados permitirá realizar o acompanhamento das diferentes situações, proceder à avaliação do acesso das utentes à IVG e monitorizar o nível de serviço e a qualidade dos serviços prestados nesta matéria, elementos que são fundamentais para se poder atuar e corrigir as situações em que o cumprimento da lei é posto em causa.

Nos casos em que os estabelecimentos de saúde oficiais para a realização da IVG por opção da mulher não disponibilizem o acesso ao serviço, deve ser garantido o transporte gratuito das utentes que a estes recorram, para o estabelecimento de saúde oficial para o qual estas utentes forem referenciadas.

Importa ainda acrescentar que às utentes que realizem IVG por sua opção, deve ser garantido, se essa for a vontade da utente, o seu encaminhamento para acompanhamento psicológico, pelo menos durante o ano seguinte à realização da IVG.

O PCP, que muito contribuiu para a luta pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, considera que os processos que ponham em causa o total e cabal cumprimento da Lei n.º 16/2007, de 17 de abril, constituem profundos retrocessos no que toca ao direito da livre opção das mulheres.

Nestes termos, ao abrigo da alínea b) do artigo 156.º da Constituição e da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do Regimento, os Deputados do Grupo Parlamentar do PCP propõem que a Assembleia da República adote a seguinte

Resolução

A Assembleia da República, nos termos do n.º 5 do artigo 166.º da Constituição, resolve recomendar ao Governo que adote um conjunto de medidas para garantir e reforçar os direitos das mulheres no quadro da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG), designadamente:

  1. Sejam criadas as condições para que, até final de 2023, em todos os estabelecimentos de saúde oficiais para a realização da IVG por opção da mulher, este serviço esteja disponível e seja prestado dentro dos prazos regulamentares.
  2. Nos estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos para a realização da IVG, seja garantido, às mulheres grávidas que o solicitem, a disponibilidade de acompanhamento psicológico.
  3. Quando os estabelecimentos de saúde oficiais para a realização da IVG por opção da mulher não disponibilizem o acesso ao serviço, seja garantida a gratuitidade do transporte das utentes que a estes recorram, para o estabelecimento de saúde oficial para o qual estas utentes vierem a ser referenciadas, sempre que este último esteja fora da área de referenciação da residência da utente.
  4. Assegurar que os serviços administrativos dos estabelecimentos de saúde oficiais referidos no n.º 3, efetuam de imediato a marcação, com data e hora, nos estabelecimentos de referência, logo no ato da solicitação da consulta de IVG, tendo em conta o tempo de gestação da requerente, sendo entregue à utente, por via informática ou presencialmente, o documento comprovativo da marcação efetuada.
  5. Assegurar que nos estabelecimentos de saúde oficiais, incluindo aqueles onde ainda não existam consultas da IVG, é garantido o apoio psicológico até 1 ano após a realização da interrupção voluntária da gravidez, a todas as utentes que o desejarem.
  6. Seja criado no portal da transparência do SNS um domínio de informação relativa aos processos de interrupção voluntária da gravidez que disponibilize a informação, com periodicidade mensal, sobre os seguintes aspetos, discriminada por estabelecimento de saúde oficial, ou oficialmente reconhecido, para a realização da Interrupção Voluntária da Gravidez por opção da mulher:
    1. O número de utentes que solicitem a realização de IVG por opção da mulher e tipologia de encaminhamento dado.
    2. O número de utentes que realizaram a IVG por opção da mulher, discriminado pela tipologia de procedimento utilizado (cirúrgico com anestesia local, cirúrgico com anestesia geral, medicamentoso ou outro).
    3. Os tempos médios decorridos nas diversas fases do processo de IVG, o número de situações em que houve referenciação para outra unidade de saúde, o número de reclamações relativa à dificuldade de acesso ao serviço.
    4. Número de ocorrências em que não foram cumpridos os prazos regulamentares do processo para a realização da IVG por opção da mulher.
    5. Número de ocorrências em que o incumprimento de prazos inviabilizou a realização da IVG por opção da mulher.
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