Intervenção de

Referendo ao Tratado de Lisboa - Intervenção de Agostinho Lopes na AR

 

Referendo ao Tratado de Lisboa que altera o Tratado da União Europeia e o Tratado que institui a Comunidade Europeia, assinado em Lisboa a 13 de Dezembro de 2007
 

(projecto de resolução n.º 241/X)

Referendo ao Tratado de Lisboa que altera o Tratado da União Europeia e o Tratado que institui a Comunidade Europeia, assinado em Lisboa a 13 de Dezembro de 2007

Intervenção de Agostinho Lopes

 

 

Sr. Presidente,

Sr.as e Srs. Deputados:

Desde que, em 1989, a Constituição da República Portuguesa passou a admitir a existência de referendos nacionais, o PCP tem vindo a defender que a ratificação por Portugal de quaisquer tratados constitutivos ou modificativos do processo de integração europeia devem ser submetidos a referendo. Assim, fizemo-lo, em 1992, aquando do Tratado de Maastricht.

Em 2005, realizou-se a revisão da Constituição destinada a permitir ratificar o Tratado Constitucional.

Quando se iniciou, em Junho de 2005, já tinha acontecido o «não» em França. A posição do PCP foi de que não fazia sentido submeter a referendo apenas a ratificação de um Tratado que estava moribundo e que a única forma de resolver o problema seria considerar que deveria ser referendada qualquer evolução que, a nível dos tratados, se viesse a verificar.

Foi, então, expressamente afirmado pelo PS ter sido aprovada a possibilidade de o referendo incidir não apenas sobre a versão original do Tratado que institui a Constituição mas também sobre as respectivas alterações que, de futuro, viessem a ser introduzidas.

Com a assinatura, em 13 de Dezembro de 2007, do Tratado de Lisboa, estão presentes todos os pressupostos para se cumprir o compromisso assumido por todos os partidos políticos para com o povo português. O PCP mantém, coerentemente, a sua posição, e é esse o sentido profundo do projecto de resolução que apresentamos.

Srs. Deputados:

A 9 de Janeiro, o Primeiro-Ministro veio a esta Assembleia anunciar o que, há muito, era uma decisão tomada: a não realização do referendo.

Dos seis argumentos enunciados pelo Primeiro-Ministro, cinco, a serem válidos hoje, pós-assinatura do novo Tratado, eram já inquestionavelmente válidos quando o PS tornou públicos os seus Compromissos e Programa eleitorais, tal como eram inquestionavelmente válidos quando o Governo aprovou o seu Programa nesta Assembleia da República, e um sexto argumento é uma pura mistificação, porque, de facto, é uma tentativa canhestra de fazer passar por diferente um documento inteiramente semelhante através de artifícios formais e mudanças semânticas.

Observemos os argumentos do Primeiro-Ministro.

Não se justifica o referendo, disse o Primeiro-Ministro, porque há um «amplo consenso» nesta Assembleia, que, pretensamente, exprimiria «a vontade maioritária dos portugueses» sobre o referendo. Mas qual era a situação nesta Assembleia em 2004 e em 2005, quando o PS considerava que devia fazer-se o referendo ao Tratado Constitucional?!

Não se justifica o referendo, disse o Primeiro-Ministro, «porque a ratificação pelo Parlamento é tão legítima e democrática como a ratificação referendária». Em 2004 e em 2005 tal não era verdade?!...

Não se justifica o referendo, disse o Primeiro-Ministro, porque a realização de um referendo em Portugal «iria pôr em xeque (...) a plena legitimidade da ratificação pelos outros parlamentos nacionais (...)». Mas, então, em 2004, as ratificações ou não ratificações feitas por referendo em Espanha, França, Holanda ou Luxemburgo puseram em causa a «legitimidade» das ratificações feitas noutros países através dos seus parlamentos?! Um absurdo!

E também um atentado ao direito soberano e autónomo de decisão de cada povo e de todos os povos!

Desde quando o exercício por um povo do seu inalienável direito a pronunciar-se livre e democraticamente pelo voto em referendo pode ofender ou pôr em causa a legitimidade da escolha de outras vias por outros povos?!

Não se justifica o referendo, disse o Primeiro-Ministro, porque o «Parlamento é o coração da democracia representativa e foi no Parlamento que aprovámos a nossa adesão à Europa e todos os outros tratados europeus». Mas, em 2004 e em 2005, não era já assim?!

Não se justifica o referendo, disse o Primeiro-Ministro, porque «aqueles que reclamam um referendo ao Tratado de Lisboa, verdadeiramente o que querem é pôr em causa o projecto europeu», querem é «bloquear e boicotar o projecto europeu». Era o que o PS pretendia em 2004 e em 2005, com a reclamação e proposta de que se fizesse um referendo?!

Este é um argumento, além do mais, fraudulento, porque se sabe, e sabe o PS, que, hoje como ontem, na reclamação do referendo estão os que são pela actual integração europeia e pelo Tratado aprovado e os que são, sem disfarces, como o PCP, contra esta integração e contra este Tratado!

Srs. Deputados:

O sexto argumento que o Primeiro-Ministro enunciou, aparentemente como questão substancial, foi o de que o «Tratado de Lisboa (...) é diferente do antigo projecto de Tratado Constitucional», que «mudou na sua natureza e mudou no seu conteúdo» e que o compromisso do PS e do Governo seria com um referendo a um tratado constitucional. Profunda mistificação!

Convenhamos que a mistificação vem de longe. Vem do tempo em que um grupo de trabalho nomeado por um Conselho Europeu, baptizado, não inocentemente, de Convenção, se arrogou o direito de chamar constituição, sem povo constituinte nem mandato para tal, ao que não podia ser mais do que um projecto de novo tratado europeu.

Mistificação que foi, depois, secundada na Cimeira de Roma, em 2004; mistificação a que o povo francês e o povo holandês puseram cobro, com o seu «não»; mistificação que hoje se tenta prosseguir, quando a diferença substancial entre um e outro tratado se limita ao abandono do uso dos conceitos de «Constituição» e «Tratado Constitucional».

De facto, todos os elementos «constitutivos» - alguns dirão «constitucionais» - de um Estado federal constam do Tratado assinado a 13 de Dezembro: os símbolos, de facto para todos, mas, através da declaração juridicamente vinculativa, para 16 Estados-membros; o primado do Direito da União sobre o Direito dos Estados-membros; a personalidade jurídica da União; a existência de uma moeda comum; a repartição de competências entre a União e os Estados-membros; a adopção de um conjunto de direitos fundamentais, como a Carta dos Direitos Fundamentais; a criação de uma cidadania da União; o estabelecimento de uma política externa da União, à qual, na prática, devem submeter-se as políticas nacionais; a institucionalização do cargo de Presidente do Conselho Europeu, com funções de representação externa da União; e a criação de um Ministro dos Negócios Estrangeiros Europeu.

De facto, o Tratado de Lisboa não é mais do que o Tratado Constitucional com outro nome, e o nome foi alterado exclusivamente para tentar evitar novas rejeições populares. No seu conteúdo, nos seus efeitos e nas suas consequências é exactamente o mesmo!

Não foi propriamente uma novidade a referência de Giscard d'Estaing a «alterações cosméticas» para classificar as diferenças entre o anterior Tratado Constitucional e o assinado em Dezembro.

Em Junho, Romano Prodi, em visita ao nosso país, esclarecia: «Pode haver um problema de designação formal, mas não de substância (...), podemos chamar-lhe constituição ou tratado. Isso não importa». Pelo que, em coerência, apelou ao «trabalho criativo do Governo PS».

Tudo isto, na continuidade da verdadeira autora da fraude, a Sr.ª Merkl, a chanceler alemã, que, na questão n.º 3 que a Presidência alemã colocou aos seus parceiros, referia a «utilização de terminologia diferente, sem todavia modificar a substância jurídica» do anterior Tratado Constitucional.

Ou, então, a notável contradição entre os chefes dos governos de Portugal e Espanha, em que Zapatero fala da semelhança dos tratados para não fazer novo referendo e Sócrates da diferença dos tratados para não fazer um referendo. Notável!...

Serão precisos mais esclarecimentos sobre a fraude monumental - a diferença dos tratados - descaradamente assumida e produzida com o objectivo único de impedir os povos de se pronunciarem por referendo?!

Srs. Deputados: Conhecemos as razões de fundo não enunciadas nem explicitadas pelo PS e outros para recusarem o referendo, que é o medo do veredicto dos povos, incluindo o do povo português, sobre os resultados de um referendo sobre um Tratado tão profundamente ofensivo e violador dos seus interesses e direitos soberanos.

O PS não está só nesse medo: partilha-o nesta Assembleia com o PSD, que conseguiu o facto «extraordinário» de, a meio da Legislatura, mudar e justificar a mudança sobre uma questão de fundo para a vida nacional. Na União Europeia partilha-o com todos os representantes dos outros Estados, bem acolitados pelas organizações do grande capital e patronato europeus, Mesa Redonda dos Industriais Europeus e Business Europe e igualmente com o grande capital português. Para Belmiro de Azevedo um referendo ao Tratado de Lisboa «é completamente supérfluo».

Para esses sectores e para o PS é supérfluo ouvir os portugueses sobre um Tratado que aprofunda o carácter federal da União Europeia, institucionalizando o seu comando pelo directório das grandes potências.

É supérfluo os portugueses pronunciarem-se sobre os poderes atribuídos a órgãos não eleitos, a redução do número de Deputados e a não existência em permanência de um Comissário português.

É supérfluo que a Carta dos Direitos Fundamentais tenha inscrito «o direito de trabalhar» em contradição com «direito ao trabalho» da Constituição da República Portuguesa, mas em consonância com a Constituição de 1933 de Salazar.

É supérfluo ouvir o povo português sobre o reforço e institucionalização da natureza neoliberal do novo Tratado, com as suas gravosas ameaças aos serviços públicos, incentivos à deslocalização e ao dumping social, a transformação da «concorrência não falseada» em sacrossanto princípio fundador e a União Europeia como paradigma do livre comércio e motor da globalização neoliberal.

É supérfluo ouvir o povo português sobre a indisfarçável «militarização» da União Europeia, que passa a ser oficialmente encorajada - único âmbito em que os Estados-membros são incentivados a aumentar a despesa pública -, passando a Política Externa e de Segurança Comum (PESC), sem disfarces, a ser concebida como um instrumento integrado na NATO, comandada pelos EUA.

Para o PCP não é supérfluo ouvir o povo português, para mais quando o presente e o futuro deste País e desta Pátria estão em causa.

(...)

Sr. Presidente,
Sr.ª Deputada Alcídia Lopes,

Agradeço muito as questões que colocou...

Gostaria de começar pela questão do balanço dos 20 anos de adesão. É muito interessante começarmos por aqui porque, tanto quanto sei, o PCP foi o único partido desta Casa a promover uma iniciativa nacional dedicada exactamente a esse balanço, e do qual, aliás, demos informação nesta Casa.

Sr.ª Deputada, é risível que venha novamente com o argumento do referendo sobre a IGV. E é risível porque a duplicidade não é do PCP, é do PS!

A Sr.ª Deputada talvez não saiba, mas havia uma lei aprovada por esta Casa. O PS, no entanto, em cedência à direita, acabou por aceitar fazer um referendo. A Sr.ª Deputada Ana Catarina Mendonça e outras lembram-se muito bem da história!...

Portanto, o PCP, desde o início, teve uma posição bastante clara relativamente ao problema da IVG e de essa legislação ser aprovada, como devia ter sido, nesta Casa. O PS é que foi dúplice relativamente a esta situação, não teve o mesmo comportamento, teve outro peso e outra medida quando se tratou do referendo ao tratado europeu.

Porque o que é certo é que escreveu e que, depois, renegou, como o Sr. Primeiro-Ministro nos veio aqui dizer no dia 9 de Janeiro.

E sobre esta matéria, Sr.ª Deputada, ainda queria dizer-lhe algo mais que talvez sirva aqui não só para o PS como para o PSD.

Sabe qual era o conteúdo da pergunta que os senhores propuseram, e com a qual o PSD também esteve de acordo, em 2004, para referendar o tratado constitucional? As três questões essenciais que o PS colocou nessa pergunta eram as seguintes: a carta dos direitos fundamentais; a votação por maioria qualificada; e a alteração do quadro institucional da União Europeia.

Gostaria ainda de fazer-lhe uma pergunta (os Deputados do PS que vão intervir a seguir poderão esclarecer este aspecto): se estas três questões eram essenciais para definir o referendo ao tratado constitucional, diga-me lá, Sr.ª Deputada, qual delas não está agora presente no tratado aprovado em Lisboa, no dia 13 de Dezembro? Qual destas três questões não está presente?!

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