&quot;Quem tem medo?&quot;<br />Bernardino Soares na &quot;Capital&quot;

Mesmo para os mais empedernidos defensores da entrega da gestão de hospitais do Serviço Nacional de Saúde a grupos económicos privados, e desde que mantenham uma dose mínima de seriedade intelectual, será certamente incompreensível que o governo se apreste para avançar com a entrega de dez novos hospitais a privados sem proceder a uma avaliação séria e pública dos resultados da experiência do Hospital Amadora/Sintra.O Governo foge de uma avaliação transparente como o diabo da cruz, receoso de que um maior esclarecimento sobre esta experiência desvende que a entrega de mais hospitais à gestão privada prejudica o acesso à saúde pelas populações e aumenta os gastos do Estado.Lembre-se que a matéria foi já alvo de relatórios de entidades oficiais, como a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo e a Inspecção-Geral de Finanças, e que para além disso são conhecidas as queixas das populações servidas pelo Hospital em relação ao seu funcionamento.Basta aliás considerar meia dúzia de questões hoje já conhecidas.Por exemplo: o contrato foi assinado sem incluir o inventário dos equipamentos (no valor de milhares de contos) que o Estado cedia à Sociedade Gestora; havendo dois concorrentes privados à gestão do hospital, verificou-se que passados poucos meses o vencedor comprou o vencido, sem que o Ministério da Saúde estranhasse o caso; a Sociedade Gestora recebeu 750 mil contos referentes aos meses de Novembro e Dezembro de 1995, apesar de nesses meses o Hospital estar ainda a ser gerido pelo Estado; o Hospital utilizava clínicas de retaguarda sem licença; a Sociedade Gestora beneficiou de um critério de cálculo da anuidade a receber do Estado sem sustentação legal; a Inspecção Geral de Finanças concluiu terem sido pagos em excesso à sociedade gestora 75,6 milhões de euros (15,1 milhões de contos).Por outro lado, em relação aos cuidados de saúde prestados, verifica-se que o número de reclamações em 2001 foi neste hospital superior em 92% às do Hospital de Santa Maria e em 50% às do Hospital Garcia da Orta. Constata-se que quando comparado com este último (que tem características semelhantes), o Hospital Amadora/Sintra recebeu do Estado, entre 1995 e 2000, mais 14 milhões de contos. Verifica-se que em 2001 existiam cerca de 6000 utentes em lista de espera para cirurgia, enquanto em várias especialidades se desenvolvia actividade de carácter privado. Entretanto o actual Governo parece não querer retirar nenhuma consequência destes e de outros factos entretanto revelados, e mantém um silêncio comprometido que vai permitindo a continuação do negócio. Porque é preciso defender o interesse público, tornou-se irrecusável a criação de uma comissão parlamentar de inquérito que analise toda a gestão do hospital Amadora/Sintra, desde a sua entrega ao Grupo Mello, aos desenvolvimentos mais recentes, que decorrem das últimas inspecções oficiais, passando pelo acompanhamento (ou a falta dele) da execução do contrato. Esperemos que seja possível.Afinal, quem tem medo da comissão de inquérito?