&quot;Pelo caminho das aves&quot;<br />Ilda Figueiredo no &quot;Semanário&quot;<span class="data">

3 de Janeiro de 2003

Provavelmente há muito que não se escrevia tanto sobre os maus presságios de um novo ano como sobre 2003. É certo que o momento é de pessimismo para a maior parte dos portugueses. O ano que terminou foi difícil, sobretudo porque alguma esperança dos que acreditaram nas promessas eleitorais de Portas e Barroso, depressa se desvaneceu. E cruzam-se no horizonte nuvens negras preocupantes a nível nacional e internacional.

A política classista do Governo, que insiste em dois pesos e duas medidas para a contenção da despesa pública – agravamento das condições de vida de quem vive exclusivamente do seu trabalho ou de pensões e reformas baixas, enquanto crescem as benesses para o capital financeiro -, ao contribuir para o menor poder de compra, investimento insuficiente e mais desemprego, criando as condições para uma recessão, é, hoje, o principal problema de Portugal. O que vai obrigar a maiores tensões sociais e a um reforço da capacidade de mobilização dos diversos descontentamentos e desencantos.

Mas no plano internacional também os ventos não vão de feição. O ambiente negativo, ampliado pela apologia da guerra com que o imperialismo americano e seus aliados alimentam o nosso quotidiano informativo, preocupa a humanidade que receia justamente uma nova guerra, com todas as sua consequências nefastas, quer para o povo do país ou países atingidos, quer para o mundo em geral, e não apenas para a economia. Claro que alguém ganha sempre. Sobretudo a indústria da guerra e as multinacionais americanas que querem controlar o petróleo. Mas não os povos, incluindo o americano.

É neste quadro de pessimismo, que vale a pena ler ou reler um livro magnífico - “O caminho das Aves”, estreia literária de José Casanova, publicado durante o ano findo, pela editorial Caminho. Ler este livro ajuda não apenas a reviver momentos marcantes de uma geração ainda viva, que sonhou e lutou pela liberdade, em condições muito difíceis de ditadura, mas também a reconstruir os momentos sublimes da sinfonia da vitória dos ideais, como a Quinta de Bethoven, tantas vezes referenciada ao longo do romance. Num texto em que sobretudo a amizade mas também o amor são dois sentimentos fundamentais na riqueza das emoções descritas, a esperança de um tempo diferente e de um mundo mais justo suportam a teia em que se urde toda a estória romanesca, iniciada por uma narrativa fabulosa, a lembrar Fernão Lopes e Saramago, sobre a revolução de Abril de 1974. Há, como disse Leandro Martins na apresentação do livro, uma ponte para o presente e uma via sempre aberta para o futuro. Daí a importância e a urgência da sua leitura.

Quando o pessimismo medra como uma erva daninha, a leitura de um romance como este sobre a luta que atravessa toda a sociedade portuguesa, e não apenas a classe operária, embora José Casanova seja dirigente do PCP, torna-se um acto de lucidez. No momento difícil que vivemos, de graves contradições, onde brotam e tendem a desenvolver-se descontentamentos diversificados no meio do deserto de ideais que o capitalismo, numa das suas fases mais selvagens, está a promover, com desprezo de valores humanos, insensibilidade confrangedora, corrupção galopante e deusificação do imediatismo consumista, a leitura de “O caminho das Aves” torna-se um acto de resistência à coisificação e um exercício de fina sensibilidade que tonifica a alma e robustece a inteligência.

Com a esperança que as grandiosas manifestações contra a globalização capitalista e contra a guerra, como ainda em Novembro vimos em Florença, ou a luta contra a injustiça laboral, como o foi a greve geral de 10 de Dezembro que, no nosso país, envolveu cerca de um milhão e setecentos mil trabalhadores, é possível adivinhar 2003 cheio de profundas contradições e maiores lutas pelo progresso e desenvolvimento e contra os retrocessos que os poderes políticos estão a preparar. Tal como adivinhamos o caminho das aves, em cada primavera.