&quot;Pacto e memória&quot;<br />Vítor Dias no &quot;Semanário&quot;<span class="data">

5 de Dezembro de 2003Os leitores perdoarão a imodéstia ou a presunção mas, apesar de já terem sido publicadas tantas dezenas de artigos e comentários sobre os últimos episódios em torno do Pacto de Estabilidade, julgamos estar em condições de escrever alguma coisa que outros não escreveram, assim suprindo uma patente e muito perversa lacuna. A ideia podia ter-nos ocorrido a propósito de muitas outras declarações, designadamente de personalidades da área do PS, mas na verdade, por acaso, fortaleceu-se na nossa decisão ao lermos diversas afirmações de Manuel Maria Carrilho, no seu artigo no último “Expresso”. Aí pudemos ler que o ex-ministro da Cultura sustenta que “é pois altura de se ver o PEC na sua realidade de mero instrumento de uma política, não como um dogma de uma inquestionável ciência” e que “é sobretudo altura de compreender que a sua fixação em 3% do PIB foi uma decisão totalmente arbitrária, que tanto podia ter sido esse valor como 2% ou 4%, 0% ou 6%”, sendo de registar que M. M. Carrilho vai mais longe e afirma que “o colapso do PEC apresenta ainda outros aspectos, interessantes e reveladores, quando expõe com nitidez os efeitos nefastos do monetarismo dominante na década de 90”. Aqui chegados, cumpre dizer que tudo estaria bem se M. M. Carrilho, fazendo o que outras personalidades do PS também não fizeram, tivesse gasto meia linha do seu artigo para escrever qualquer coisa do género “é certo que nem sempre pensámos assim mas...”. Não o fazendo, obriga-nos a contragosto a lembrar que o famoso Pacto de Estabilidade e Crescimento teve o seu parto, então entusiasticamente festejado por quase todos, na Cimeira de Dublin que se realizou em Dezembro de 1996, ou seja, no tempo em que 11 dos 15 países da União Europeia eram governados por partidos socialistas ou social-democratas e no tempo em que era o PS que governava Portugal, o que pelos vistos não bastou para ao menos atenuar ou travar à escala europeia “o monetarismo dominante” agora fustigado por M. M. Carrilho. Obriga-nos a lembrar que, nessa época, a identidade de pontos de vista entre o PS e o PSD nessa matéria era tão grande que, em Fevereiro de 1997, os dois partidos faziam gala de apresentar conjuntamente e votar solidariamente um Projecto de Resolução (o 42/VII) que, entre outros pontos, expressava um total apoio ao PEC e à necessidade de as atinentes conclusões da cimeira de Dublin serem «tidas em conta nas orientações para a política macro- económica nos próximos anos”. E, mas agora em plágio assumido do que noutro espaço escrevemos em Agosto de 2002 a propósito da relativa flexibilização das posições do PS (já fora do Governo) quanto ao PEC, obriga-nos a lembrar quantas acusações de radicalismo, insensatez, irresponsabilidade e antieuropeismo lançadas pelo PS, pelo PSD e por tantos comentadores o PCP teve de ouvir ao longo dos últimos anos de cada vez que criticou o Pacto de Estabilidade ou defendeu a sua revisão ou renegociação, e tudo isto muitíssimo antes de o senhor Prodi o ter qualificado de “estúpido” e de o senhor comissário Lamy o ter baptizado de coisa “medieval”.. Obriga-nos a evocar quantas respostas agrestes e definitivamente hostis o PCP teve de ouvir de cada vez que sublinhava que as rígidas exigências sobre o valor do défice não tinham qualquer suporte científico e que nenhum economista jamais tinha demonstrado por que é que tinha de ter um valor rígido e não mais ou menos um ponto. Obriga-nos a recordar quantas comentários ríspidos e dogmáticos o PCP teve de ouvir de cada vez que sublinhava que não fazia nenhum sentido que o governo de um país como Portugal se fizesse campeão da ortodoxia monetarista do Banco Central Europeu e do Pacto de Estabilidade quando países como a França ou Itália, sempre que lhes dava jeito, não hesitavam em dela se quererem distanciar. E, finalmente, obriga-nos a lembrar quantas duras e automáticas rejeições o PCP teve de ouvir de cada vez que salientou que, sendo contestável em geral, o Pacto de Estabilidade e as suas exigências eram acrescidamente erradas e nefastas em conjunturas de estagnação ou de recessão económica. Muitas lições e ilações se poderiam – e deveriam - tirar desta experiência e deste caso. Mas talvez a mais importante e com maior actualidade seja a de compreender que as proclamadas excelência, correcção e inevitabilidade da dita ”Constituição europeia” bem podem vir a ter o mesmo desenlace do PEC que, há uns anos, também se dizia ser igualmente excelente, correcto e inevitável.

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