&quot;Fernando. Também Maurício&quot;<br />António Abreu na &quot;Capital&quot;

Assim o evocaram, cantando, na passada 5ª feira, mais de dois mil amigos e “ colegas de ofício”, no Coliseu, aquele que foi nas últimas décadas uma figura de referência para gerações de fadistas, e que há algum tempo nos deixou.Vieram dos bairros antigos, das colectividades, das juntas de freguesia, das casas de fado. Cantaram, aplaudiram, emocionaram-se. O fado soou em guitarradas, foi cantado a solo, à desgarrado e em coro. Da “Igreja de Santo Estêvão” ao “Boa Noite Solidão”. Do “Agora vou dormir porque quero sonhar com ela” á “Moreninha da Travessa”. Do “É tão bom ser pequenino” ao “ Escrevo o teu nome no vento”. Ele que foi “a voz dolorida” que a gravação nos trouxe ou foi recriada pelo “grupo mauriciano”, ali no Coliseu.Fernando Maurício nasceu em 1933 na Rua do Capelão, na Mouraria. Desde criança se ligou ao fado. Na vida profissional correu muitos cafés e casas de fado, pisou palcos, incluindo noutros países editou discos. Mas era entre a sua gente, nas festas de beneficência e solidariedade, que mais o encontrávamos. Conheci-o no Grupo Desportivo da Mouraria, a que sempre esteve ligado bem como à marcha do bairro. Era avesso a homenagens mas em 1989, Amália descerrou na rua onde nasceu lápides com o seu nome e o da Maria Severa Onofriana. A CML assinalou em 1994 as suas bodas de ouro artísticas no S. Luiz. E em 2001 de novo o homenageou no Coliseu, altura em que o Presidente da República lhe atribuiria a Comenda de Bem Fazer, e depois, nos Paços do Concelho quando, no mesmo ano, o município publicou, com a colaboração da então EBAHL e da Casa do Fado e da Guitarra Portuguesa, a sua biografia pessoal e artística. Das memórias partilhadas com amigos de infância, retiramos uma recordação: “Havia uma padaria na Rua do Capelão onde eu nasci e nós naquela altura - nos anos 40 - dormíamos todos na rua. De manhã levantávamo-nos e íamos lavar a cara ao Chafariz da Guia. Eram muitos amigos que eu tinha. Tínhamos uma equipa de futebol e jogávamos à bola na Rua do Capelão. Entre o Capelão e a Guia. Jogávamos descalços. Nessa padaria havia cestos de verga com pão quentinho, acabadinho de sair do forno. De madrugada, enquanto o padeiro trabalhava, encostávamo-nos à porta e tirávamos uns pães. Era uma época muito má. Corriam os tempos da guerra. Nós éramos 5 irmãos, depois nasceram os dois mais novos. A minha mãe era do Bonfim, do Porto. Lavava roupa para ajudar em casa”. Foi ainda dessas memórias com um desses amigos, o poeta Mário Raínho, que saiu um dos seus fados preferidos, “O irmão da Juventude”: Nascemos na mesma rua, Chutámos a mesma bola, Passámos a mesma fome A minha fome era a tua Nem sequer fomos à escola, Crescemos os dois sem nome; Unidos fomos à moina, Foi a fruta, foi o pão, E outras coisas que havia; Andámos juntos na estroina, Malandros até mais não No bairro da Mouraria; Hoje temos outra idade, O passado é já distância E a vida não nos ilude, Mas tenho de ti saudade Ó meu amigo de infância, Meu irmão da juventude.É um fado que revela bens as origens de uma vida, de uma maneira de estar, que sustentou um estilo próprio e inconfundível. O seu coração parou no ano passado. Mas os seus fados continuam a passar de boca em boca nos nossos bairros.