&quot;Dois ou oito?&quot;<br />Vítor Dias no &quot;Semanário&quot;<span class="data">

9 de Abril de 2004

Lamentamos desiludir os cultores de rituais e cerimoniais mas, francamente, não consideramos que o mais simbólico da passagem do 2º aniversário da posse do Governo PSD-CDS/PP tenha sido a reunião especial do Conselho de Ministros nem os desesperados esforços que lhe foram associados para aparentar recuperação de energia e novo fôlego.

De facto, entre tantos outros, escolhemos antes dois factos relativamente simples que dizem mais sobre este governo, a sua política, a sua atitude e os seus métodos do que todas as encenações festivas e todos os truques de aplicar novo celofane em velhas promessas nunca cumpridas.

O primeiro diz respeito à indecente publicação de propaganda governamental sob a forma de anúncios de página inteira nos jornais, representando uma despesa para o erário público de muitos milhares de contos.

A este respeito, o mínimo que se pode dizer é que só mesmo um governo mergulhado no autismo mais profundo ou caído numa deriva de desespero político se podia lembrar de montar uma tal operação numa conjuntura de imensas e dramáticas dificuldades para a maioria da população, num momento em que centenas de milhar de famílias vivem situações de pungente aflição e numa circunstância em que o país inteiro tem os ouvidos cheios até mais não dos argumentos governamentais de que não há dinheiro para isto e para aquilo.

Acresce que o Governo nem sequer se pode queixar de qualquer bloqueio dos «media» à divulgação da sua actividade e às declarações dos Ministros. Com efeito, é bom que se saiba que, por exemplo, no mês de Fevereiro passaram nos serviços noticiosos das 20 horas das quatro televisões nada mais nada menos que 223 notícias ou reportagens sobre acções do Governo ou envolvendo os seus membros, ascendendo esse número a 263 no mês de Janeiro. Saiba-se também que, se considerarmos o conjunto de serviços noticiosos da RTP/1, da 2:, da SIC, e da TVI também no mês de Fevereiro teremos o valor muito superior de 445 notícias sobre o Governo. E, se considerarmos os noticiários da RDP, da TSF, da R. Renascença e da R. Comercial, igualmente em Fevereiro, essas notícias foram 565.

Pois é, a mensagem principal desse conjunto de anúncios proclama «Muito trabalho feito. E mais vamos fazer. UM GOVERNO DE PALAVRA. Dois anos de Governo em quatro de mandato».

Mas tudo parece indicar que a maioria dos portugueses se reconheceria muito melhor numa ligeira adaptação desta mensagem, que já escaparia ao crime de publicidade enganosa, e que rezaria assim: «Muito estrago feito. E mais vamos fazer se continuarmos. UM GOVERNO DE PALAVRAS. Dois anos de desgraça em quatro anos de pesadelo».

O segundo facto que escolhemos para simbolizar o 2º aniversário da posse do Governo dos partidos da direita são as portentosas e sofisticadas declarações de Bagão Félix («Público» de 6/4) explicando pedagogicamente aos ignorantes que a pobreza que existe em Portugal é «não tanto a de recursos monetários» mas a que resulta de «as pessoas não terem oportunidades, ou porque não têm emprego, ou vivem sozinhas, ou têm uma iliteracia avançada, ou estão numa situação de licença profissional».

O país inteiro, a começar por todas as pessoas de bom senso, não pode deixar de se deslumbrar com a subtileza da distinção introduzida pelo insuperável Bagão Félix.

Na verdade, qualquer pessoa com dois dedos de testa pensaria que a maior parte dos factores que este Ministro invoca conduzem mais ou menos em linha recta à falta de recursos monetários, mas, pelos vistos, para a mente retorcida de Bagão Félix são coisas distintas, ou quem sabe talvez nos queira convencer que há pobres com recheadas contas bancárias mas vivendo o drama da iliteracia e da falta de oportunidades.

E, por este caminho de impenitente mistificação, só é de estranhar é que, interrogado sobre os 200 mil portugueses que passarão fome, Bagão Félix não nos tenha vindo dizer (talvez fique para a próxima) que não se trata realmente de fome, antes se trata sim de uma insatisfeita vontade de comer.

E é por estas e por muitíssimas outras razões que na sociedade portuguesa crescem a olhos vistos quer a sensação de que, em vez de dois, já passaram oito anos de governo PSD-CDS/PP quer o sentimento de que está na hora de o despachar em grande velocidade.