31 de Dezembro de 2002
O foguetório governamental só pode ser entendido como uma tentativa, pouco séria, para justificar que o Governo tenha obrigado o País “ao pior dos últimos vinte anos”
Numa época do ano em que é tradição o envio de cartões de boas festas, e porque a nível nacional e internacional não me parece existirem razões para festejos, resolvi neste último dia de 2002 deixar aqui três cartões de fim de ano.
1º O Primeiro-Ministro Durão Barroso terminou o ano de 2002 vangloriando-se de o Governo ter conseguido, para este ano, um défice orçamental “abaixo dos 3%”. Não se conteve na exaltação, (“É uma grande vitória para Portugal”) nem poupou no auto-elogio (“Uma vitória da capacidade de agir, da firmeza de tomar decisões, da coragem de definir objectivos ambiciosos”). Parafraseando o próprio, digo que “é extraordinário este desaforo”. Porque é público que esse nível de défice é conseguido à custa de operações extraordinárias, por isso em si mesmas irrepetíveis. Um perdão fiscal que oferece prendas de natal aos contribuintes incumpridores, abrindo o apetite para que se reforce e alargue a psicologia de que o não cumprimento da legislação e obrigações fiscais, não só é legítimo como é tentador, porque compensador. A venda de uma rede fixa de telefones, um bem público e de serviço público incontestável, que em mãos públicas sempre deveria permanecer. A venda de património imobiliário a preços de saldo. A antecipação do recebimento das portagens que os portugueses irão pagar na CREL ... durante os próximos trinta anos. A liquidação de uma valiosa ‘holding’ do Estado (IPE), para fazer entrar nos cofres do Estado as suas reservas acumuladas ... ao longo de anos anteriores. O congelamento de despesas de investimento, cujos efeitos negativos no futuro se farão sentir. Com todos estes truques, o Governo obteve receitas extraordinárias da ordem de um ponto percentual do PIB. Ou seja, sem estes “expedientes” o défice orçamental do SPA em 2002 seria, de facto, da mesma ordem de grandeza do que herdou do seu antecessor, e que tanto dramatizou. Sem razão, pois, o foguetório governamental. Incompreensível pelos resultados, só pode ser entendido como uma tentativa, pouco séria, para justificar que o Governo tenha obrigado o País “ao pior dos últimos 20 anos”.
2º Após a introdução de portagens na CREL, o Governo pré-anuncia o aumento das propinas no ensino superior e a subida do preço das taxas moderadoras. Podem ser exemplos da “capacidade de agir”, mas são sobretudo paradigmas da incapacidade de bem decidir.
As circulares exteriores das grandes urbes como Lisboa e Porto, não são uma benesse para quem as usa, antes uma necessidade para todos os que nestas residem ou trabalham e para a produtividade nacional. Desviar o trânsito de ligeiros e, em particular, de pesados, dos centros das grandes cidades deveria ser um objectivo a incentivar. Nunca o inverso como agora está a ser feito.
O aumento das propinas é significativo da persistência em considerar que o ensino superior deve ser tido como uma despesa corrente. E que, basicamente, só a ele deve ter acesso quem tenha rendimentos para o pagar. É um gravíssimo erro. Do ponto de vista social como do económico. Socialmente, porque tendencialmente elitista e lesivo do propalado princípio da igualdade de oportunidades, no caso a de acesso ao último grau de ensino. Economicamente, porque a melhoria generalizada, em quantidade e qualidade, do nível educativo dos cidadãos portugueses e da investigação é uma condição necessária para o indispensável aumento da produtividade da nossa economia. Por isso, a qualificação e formação da população deve ser considerada como um investimento de elevadíssima reprodutividade. Cuja responsabilidade e custo o Estado deve assumir e suportar.
A tese do aumento diferenciado das taxas moderadoras no acesso aos cuidados de saúde (e não cuidando, agora, da bondade da sua existência) igualmente assenta num erro crasso: o de admitir que as declarações de IRS são fidedignas dos níveis de rendimentos reais auferidos pelos cidadãos. Todos, a começar pelo Governo, sabem que não é assim. Só são verdadeiros para os que vivem exclusivamente de rendimentos do trabalho dependente. Recorde-se a propósito, e passe algum exagero, que quando foram introduzidas as propinas no ensino superior se dizia que delas só ficaram isentos os alunos que chegavam às escolas nos seus carros próprios.
3º O passado dia 20 de Dezembro fica registado como mais um dia negro para a Humanidade. Na Organização Mundial de Comércio, os EUA impediram que se chegasse a um acordo que concretizasse a porta aberta uma ano atrás, na conferência de Doha, de “permitir aos Estados membros (da OMC) tomar medidas para proteger a saúde pública, em particular contra a sida, a tuberculose, o paludismo e outras epidemias”. Ao passar das palavras aos actos, os EUA vetaram a possibilidade de os países do terceiro mundo sem capacidade para os produzir, poderem importar medicamentos genéricos visando combater aquelas epidemias. Como, a propósito, recordou uma organização internacional de médicos, “a SIDA, a tuberculose e o paludismo matam 6 milhões de pessoas por ano, sem falar de outras epidemias. Mais uma vez, os interesses comerciais prevaleceram sobre os interesses vitais das populações mais frágeis”. De uma forma brutal, os EUA de Bush de novo demonstraram que as pessoas basicamente lhes interessam enquanto fonte de lucro para as grandes multinacionais. Para os dirigentes da terra do Tio Sam, não há humanismo que se sobreponha a egoístas interesses privados das suas indústrias.
Também por razão idêntica, a ninguém sobram dúvidas de que Bush irá invadir o Iraque. Quaisquer que sejam os resultados a que cheguem os investigadores da ONU. Ao cowboy que habita a Casa Branca isso nada interessa. O que lhe importa, e o motiva, é poder controlar as reservas petrolíferas do Iraque. Ainda que para tal seja necessário provocar uns largos milhares de vítimas “colaterais” entre o povo iraquiano.
E todo este uso e abuso da lei do mais forte se processa com a complacência dos países da UE. Que, para alívio das suas consciências ou ludíbrio dos seus povos, ritualmente fazem pias e inócuas declarações de desagrado.
Bem gostaria, para concluir, desejar a todos que o próximo ano seja melhor que o de 2002. Mas temo que 2003, para os portugueses, venha a ser ainda pior. O próprio Primeiro-Ministro só promete melhorias para 2006. Por acaso, ano de eleições...