&quot;A encruzilhada da União Europeia&quot;<br />Ilda Figueiredo no &quot;Semanário&quot;

Vive-se uma encruzilhada particularmente crítica da integração europeia. O início, a 4 de Outubro passado, da Conferência Intergovernamental, exige que se faça uma reflexão mais aprofundada sobre o que se pretende da União Europeia e se debatam as alternativas possíveis, tendo também em conta que em 1 de Maio do próximo ano se fará a integração de mais dez países. Os trabalhos e o documento final da Convenção europeia, onde, da Assembleia da República, apenas puderam participar os dois maiores partidos (PS e PSD, o que desde logo dá a dimensão do seu conceito de democracia, durante cerca de dezasseis meses elaboraram um projecto a que chamaram constituição europeia, exorbitando claramente das funções que lhe tinham sido atribuídas. Mas, sem dúvida, cumpriram um objectivo: abrir caminho para um grande salto no aprofundamento da integração europeia e condicionar os trabalhos da Conferência Intergovernamental. Por muito que tenham repetido que é preciso simplificar e democratizar o processo de decisão comunitário, antes da entrada de 10 novos países, o défice democrático de todo o processo criou logo as maiores dúvidas. E tudo é agora bem mais claro, com a autêntica chantagem que os mais poderosos estão a fazer, chegando o Presidente Chirac a insinuar que quem quiser alterar o projecto da dita constituição europeia pode sofrer as consequências nos fundos comunitários. Como se a soberania se pudesse trocar por um prato de lentilhas cada vez mais pequeno e mal repartido. Ora, como por diversas vezes denunciámos, o método de trabalho e os processos pouco democráticos de formação da Convenção contribuíram para a elaboração de um texto que nos merece uma frontal oposição, por discordarmos do projecto de sociedade que ali se defende, de aprofundamento do capitalismo cada vez mais agressivo, definindo um ordenamento neoliberal da sociedade, mercantilizando tudo, desvalorizando cada vez mais as pessoas, secundarizando os aspectos sociais que dizia defender, agravando o caminho traçado com os Tratados de Maastricht e Nice. Mesmo que nos primeiros artigos haja princípios correctos (coesão económica e social, defesa dos direitos humanos, das mulheres, etc), no miolo fundamental, designadamente todo o articulado sobre as medidas concretas e os mecanismos previstos para as concretizar, visam exactamente o contrário e servem para consolidar o neoliberalismo, o poder dos grupos económicos e financeiros, os interesses dos países mais poderosos, como é notório em toda a parte referente às questões económicas e sociais. Trata-se, igualmente, de um verdadeiro atentado aos princípios da Constituição da República Portuguesa, designadamente quando tenta que se imponha o primado das normas comunitárias em áreas fundamentais da nossa afirmação como Estado independente. Põe-se em causa a soberania, quer em termos jurídico-constitucionais, quer em áreas concretas dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos. Tenta-se remeter para o caixote do lixo da história a possibilidade de vias alternativas de construção europeia e de novos rumos. Não podemos aceitar que haja uma soberania europeia a sobrepor-se às soberanias nacionais. Queremos cooperação entre as diferentes soberanias. O que não acontece quando propõem um Ministro dos Negócios Estrangeiros da UE ou um Presidente Europeu. Por último, importa sublinhar que o texto da Convenção, em vez de eleger como prioridades absolutas a construção da paz, do desenvolvimento e da coesão económica e social com base em níveis elevados de bem-estar social para todos, define a paz apenas como uma possibilidade e não como um objectivo central, acolhe a via da NATO, do aprofundamento do militarismo e da ligação ao imperialismo americano, o que é um perigo para a paz, como a experiência actual demonstra. Assim, no debate que temos pela frente, estão em confronto modelos de sociedade completamente opostos: o aprofundamento do capitalismo na sua fase mais agressiva do neoliberalismo, que precisa de mais centralismo, burocracia e reforço do militarismo para tentar impor-se com mais facilidade junto dos mais débeis; ou o aprofundamento de uma via democrática e solidária, assente nos princípios da igualdade entre estados soberanos, que buscam a cooperação e a coesão económica e social para o desenvolvimento sustentável e a paz. Por mim, prefiro o segundo.

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