Intervenção de

Propriedade das farmácias - Intervenção de Bernardino Soares na AR

Propriedade das farmácias e regime geral das contra-ordenações às infracções cometidas no exercício da actividade farmacêutica

 

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

Queria começar por me referir também ao processo. Tenho de dizer que o Governo deveria, nesta matéria, ter apresentado uma proposta de lei material à Assembleia da República. Isso permitiria não só a audição de muitas entidades que têm uma opinião relevante nesta matéria - essa audição não é substituída pela que o Governo terá feito na elaboração da proposta de lei - mas também um debate, na especialidade, o qual, penso, tinha na Assembleia o seu local próprio, dada a importância desta legislação e desta matéria .

O Governo não quis assim, teve medo desse debate na especialidade e apresenta uma proposta de lei de  autorização legislativa (n.º 124/X).

Também quero referir que esta proposta de lei teria beneficiado, na sua discussão, se tivesse baixado à Comissão de Saúde, apesar de o tempo talvez não ser igual ao que existiria se houvesse um debate, na especialidade, com uma proposta de lei material, permitindo que esta tivesse um envolvimento nesta matéria, porque as consequências desta medida são, sobretudo, para a saúde, não são, sobretudo, económicas.

Quero dizer, ainda, que, de alguma maneira, isto ainda é possível. Basta que todos os grupos parlamentares, designadamente o da maioria, se ponham de acordo para fazermos o que já fizemos em relação a outras propostas de lei de autorização legislativa, que é a de, em vez de procedermos na próxima semana, como é tradicional, à votação na generalidade, na especialidade e final global da proposta de lei de autorização legislativa, suspendermos essa votação por algumas semanas, por um prazo a consensualizar, para permitir, pelo menos, que nesse prazo a Comissão de Saúde possa fazer as audições e ter um papel adequado à importância desta proposta.

Deixo este desafio às outras bancadas, para o ponderarem até à próxima quinta-feira.

Bom, mas eu não tenho receio de discutir o fundo da questão.

Vi aqui o PS e o PSD embrulharem-se muito numa grande discussão sobre o processo, à qual não retiro importância, mas parece que há algum receio em discutir o fundo da questão, e ele tem que ver com a liberalização da propriedade das farmácias.

A pergunta primeira que é preciso fazer é esta: que problema vem resolver esta legislação? Isto é, que problema estava criado com a actual legislação que precise ser resolvido com a sua alteração?

Bom, o que vemos e temos de reconhecer é que não havia um problema com a actual legislação, não havia um problema na venda, a retalho, de medicamentos com a actual legislação. Não estava criada qualquer dificuldade para as populações, para a segurança dos medicamentos, para a acessibilidade, por causa da exclusividade da propriedade da farmácia aos farmacêuticos. Penso que podemos dizer que esse problema não existia.

Então, se esta proposta não vem resolver um problema, vem fazer o quê?

Aliás, o Sr. Ministro, se me permite uma citação talvez não completamente rigorosa mas penso que no sentido do «sim», disse que «não se justifica a manutenção da obrigação da coincidência entre o director técnico e o proprietário da farmácia». Repito, não se justifica! Mas não referiu que existe um problema que é preciso resolver, porque ele não existe! E esta é que é a questão!

Bom, digamos, então, que não há um problema para resolver mas, sim, uma singularidade jurídica. Isto é, há um sector económico, um negócio, cuja propriedade é exclusiva de uma só classe profissional.

É verdade. Trata-se de uma singularidade jurídica. Mas não é a única. Há outras áreas profissionais e económicas que são exclusivas de uma só profissão. Não são exactamente iguais, não quero fazer comparações, mas também existem.

Podemos perguntar: mas é indispensável ser farmacêutico para fazer uma boa gestão da farmácia?

Não. Claro que não é. Claro que outros profissionais, outras pessoas, podem gerir bem uma farmácia não sendo farmacêuticos. Isso não está em questão. Só que o problema, aqui, não é jurídico, é político.

O nosso ordenamento jurídico está cheio de singularidades e não é por isso que vamos alterá-las todas, como o Governo pretende alterar esta.

O que há é uma opção política não de resolver um problema pré-existente mas, sim, de permitir a titularidade das farmácias de forma aberta e liberalizada.

Todos sabemos que isto vai permitir que as farmácias sejam detidas por grandes grupos económicos, designadamente na área do medicamento.

Todos sabemos que noutros países esta medida conduziu à verticalização do controlo do sector do medicamento, que é o pior e o maior obstáculo a uma política de medicamento que qualquer governo queira seguir.

E esta é que é a opção do Governo! Não é resolver um problema ou eliminar uma singularidade, é permitir a verticalização do sector e o controlo da venda a retalho por grupos económicos deste sector, ou não. Dirão: «Há garantias. A lei prevê que cada entidade só pode ter um máximo de quatro farmácias». Não vou discutir porque é que são quatro, não interessa muito se são quatro ou cinco, até podia arranjar uma razão muito curiosa, mas não vou apresentá-la.

O problema é que todos sabemos que a realidade ultrapassará a salvaguarda legal, como demonstram as experiências noutros países.

Todos sabemos que a lei vai dizer que cada um só pode ter quatro farmácias. Mas conhecemos também como é que, por outras vias indirectas, esses mesmos grupos de quatro farmácias podem ser concentrados, em grande maioria, na mão de um só poder económico, de um só centro de decisão. Todos sabemos que isso é possível. Todos sabemos que isso aconteceu noutros países.

Portanto, não podemos olhar para isto com a ingenuidade de quem diz «está na lei a limitação, portanto isso é suficiente para garantir que esta perversão não aconteça».

Aliás, a singularidade do exclusivo da propriedade por parte dos farmacêuticos é, imagine-se, maioritária na União Europeia. Vejam bem tão singular que é esta questão.

Tive oportunidade de ter acesso às afirmações sobre a área da farmácia dos candidatos presidenciais franceses e verifiquei que, por exemplo, a Sr.ª Ségolène Royal diz o seguinte, e a tradução é minha, perdoem-me alguma imperfeição: «o princípio do farmacêutico proprietário da sua farmácia é útil para a proximidade da oferta e para evitar as derivas capitalistas».

Imagine-se!

Sei que o PS não está muito preocupado com derivas capitalistas, até as apadrinha em muitos sectores, mas podia, ao menos, ouvir o que os vossos camaradas socialistas franceses têm a dizer sobre esta matéria.

Já a direita - e podemos falar do Sr. Sarkozy - também tem uma opinião sobre esta matéria.

Diz o Sr. Sarkozy: «quebrar o monopólio conduziria a fragilizar uma rede de farmácias de oficina, vital para a rede médica do país. Defenderei isto sem hesitação. Sou firmemente opositor a qualquer questionamento do monopólio dos farmacêuticos». Afinal, também à direita podem olhar para o exemplo francês!

É claro que dirão alguns - e vou referi-lo explicitamente - que o problema aqui é quebrar o poder da Associação Nacional das Farmácias e será essa a intenção do Governo com esta medida - é o que se justifica, à boca pequena, mas que nem sempre se diz no debate explícito.

Ora, o poder da Associação Nacional das Farmácias, uma entidade associativa das várias farmácias do nosso país - não de todas -, é aquele que os governos lhe permitirem ter, é o mesmo da APIFARMA, dos prestadores privados de saúde, enfim, será aquele que o Governo lhe permitir. E sabemos que, neste caso, o poder, o tal poder tão temido da Associação Nacional das Farmácias é tal que o Governo, para aprovar e propor a liberalização da propriedade das farmácias, teve de compensar muito a Associação Nacional das Farmácias. Vejamos: as farmácias passam a poder realizar análises clínicas e outros exames, as farmácias passam a poder candidatar-se e a concorrer, como o Sr. Ministro ainda agora disse, a farmácias privadas dentro dos hospitais, isto é, têm direito à privatização das farmácias hospitalares, as farmácias vêem satisfeita uma reivindicação antiga, da Associação Nacional das Farmácias, que é a de pôr fim aos benefícios fiscais das farmácias sociais, e podia continuar mas já ultrapassei o tempo de que dispunha e, portanto, não vou dar outros exemplos de como o Governo compensou bastante este grupo, este centro de poder, que quis e quer enfrentar - diz o Governo! -, para poder apresentar a liberalização da propriedade das farmácias.

A conclusão a que chegamos é a de que esta é uma medida desnecessária e de que a vida provará que terá consequências negativas para o sector do medicamento e para as populações e consequências negativas na capacidade de este Governo ou de qualquer outro conduzir uma política do medicamento soberana e de acordo com o interesse público nacional.

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