Projecto de Lei

Projecto de lei n.º 119/X - Lei de Bases da Água

Aprova a Lei de Bases da Água

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Exposição de Motivos

A água, elemento contínuo no ciclo hidrológico, é parte integrante e fundamental do constante movimento e evolução da natureza, determinante da composição atmosférica, do clima, da morfologia, das transformações químicas e biológicas, das condições de toda a vida na Terra, sendo insubstituível e essencial nas suas funções de suporte à vida e ao bem-estar humano, bem como à maioria dos processos produtivos. A vida e as actividades humanas dependem dessa circulação comum que liga todos os seres vivos, passados, presentes e futuros.

Mas cada uso repercute-se no funcionamento do ciclo da água e nos processos associados, desencadeando, para além do propósito desejado, uma sucessão de efeitos próximos e remotos na natureza, que por sua vez arrastam uma cadeia de repercussões sociais directas e indirectas.

Os efeitos sociais agudizam as desigualdades existentes, pois o desígnio directo do decisor é satisfeito e as consequências negativas recaem sobre outros, penalizando principalmente os mais vulneráveis e desprotegidos e delapidando as condições de vida das gerações futuras.

O uso da água não pode ser tratado na perspectiva da sua apropriação nem do seu comércio, mas como a participação num fluxo em harmonia de processos dinâmicos, com dimensão no tempo e no espaço determinando transformações permanentes e interligadas. Não há lugar a individualismo, nem a competição, nem à procura de mais-valias de curto prazo. A menos que se queira agravar as iniquidades actuais e hipotecar o futuro.

O Direito da Água tem de defender essa circulação comum, defendê-la das intervenções abusivas de indivíduos isolados e colectivos, mas também do imediatismo e arbitrariedade de decisores públicos e do desinvestimento visando a protecção do interesse comum e do futuro. Em simultâneo, têm de ser instituídos instrumentos efectivos que garantam a cada pessoa o gozo dos seus direitos, não apenas o direito à vida e o direito à saúde, mas também os direitos económicos e em particular a utilização da água como meio ou factor de produção, o direito ao ambiente e à natureza, assim como o direito de participação nas decisões sobre a água.

A verdade é que o Direito da Água actualmente em vigor não cumpre essa função.

Para além de incoerente é inconsistente, porque, depois da última tentativa de reordenação que se processou entre 1917 a 1919, a produção legislativa no domínio da água tem consistido na produção avulsa de diplomas, que tornaram o enquadramento jurídico e institucional português da água num intrincado de legislação dispersa, desconexa e parcialmente revogada.

Mantém na sua base os conceitos do direito romano da água, adaptado pelo Código Napoleónico e essencialmente centrado na hidráulica fluvial e na captação de águas superficiais, com um forte papel de administração do Estado e estritamente associado ao regime de propriedade da terra.

É ainda esse “direito clássico da água” que constitui a base de ligação com o direito geral, mas quase irreconhecível devido às sucessivas alterações e revogações de que tem sido alvo.

À desfiguração deste direito clássico da água foi sendo mais recentemente apensa uma profusão de diplomas essencialmente regulamentares e normativos, que transcrevem, mais do que transpõem, directivas e normas europeias e pretensamente corresponderiam ao “novo direito da água”, centrado na qualidade da água, no combate à poluição e nas questões ambientais e que releva cada vez mais a protecção das águas subterrâneas.

As políticas da água têm vindo a centrar-se na obtenção de receitas financeiras e na eliminação de despesas com os bens públicos, e alijamento das responsabilidades do Estado na administração, valorização e monitorização da água e na fiscalização das utilizações.

A situação actual é de um incumprimento generalizado por parte dos particulares e do Estado, tornou-se habitual a violação sistemática da legislação, sendo o Estado prevaricador contumaz. A maioria das utilizações da água instalada está em situação de contra-ordenação, não se encontrando, sequer, inventariadas. As rotinas de monitorização violam a legislação pela insuficiência de parâmetros medidos e pela baixa frequência, quando não são completamente omissas.

Verifica-se uma utilização descontrolada e degradação crescente do estado das águas, a insegurança e a degradação da qualidade de utilizações públicas e privadas, o abastecimento doméstico de origens impróprias, as inundações e escassez cada vez mais frequentes e com efeitos pessoais, sociais, ecológicos e económicos mais graves, o inquinamento de aquíferos e fontes naturais, a eutrofização das águas todos os anos, a decadência vertiginosa dos ecossistemas aquáticos e particularmente dos recursos piscícolas.

Releva ainda o atropelo dos direitos dos cidadãos, reconhecidos na Constituição da República Portuguesa e mais directamente relacionados com a água, que não são na prática exercidos nem considerados na legislação específica da água.

O actual contexto legislativo e institucional não proporciona as condições indispensáveis a uma melhoria necessária do estado das águas, assim como não assegura os direitos dos cidadãos relativamente à utilização da água, condições essas que, não existindo no presente, ficariam irremediavelmente comprometidas com qualquer iniciativa legislativa que preconizasse uma desresponsabilização maior ainda do Estado e a privatização do domínio público hídrico para exploração selvagem de quem o pagar.

O Partido Comunista Português considera premente uma reorganização de fundo, que não é possível conseguir num único diploma. Assim, o Grupo Parlamentar do PCP apresenta um Projecto de Lei que Aprova a Lei de Bases da Água, instituindo os princípios do “Direito da Água”, de acordo com a Constituição da República Portuguesa, incorporando as decisões de fundo sobre o direito público e privado da água.

Institui ainda a necessidade de reorganização e sistematização dos diversos diplomas avulsos, através da elaboração de um Código da Água, por forma a dar coerência e consistência a todo o restante corpo legislativo e regulamentar.

A base em que assenta o Projecto de Lei de Bases da Água apresentado pelo PCP é a da integração dinâmica e da conciliação do direito com a realidade física e social do ciclo da água, da vida e dos processos produtivos que com ela se relacionam. Essa base atravessa todo o Projecto de Lei, dando-lhe a integridade que a torna inovadora e adequada à resolução dos problemas actuais da água e à efectividade dos direitos dos cidadãos.

Assim, a estrutura do Projecto de Lei organiza-se em torno de cinco questões fundamentais:

- a figura do domínio público hídrico, em que assenta todo o direito latino da água e que é particularmente adequada pela protecção que confere aos bens que nele se integram, especialmente nas limitações à arbitrariedade e na responsabilização que impõe ao Estado;

- a administração da água;

- o regime de licenciamento que passa a integrar todo o ciclo da utilização, condicionando a captação à adequada qualidade da descarga das águas;

- a garantia do exercício efectivo dos direitos de participação dos cidadãos na determinação das políticas da água;

- a criação da Alta Autoridade da Água, órgão independente a funcionar junto da Assembleia da República e que com forte participação de representantes do Poder Local, garante a fiscalização da execução das políticas e do cumprimento da legislação referentes à água.

Acresce que o presente Projecto de Lei, estabelece não só as obrigações do Estado em relação à protecção da água e à disponibilização das suas funções gerais, que incluem a ecológica, como institui os processos que garantam a sua execução de facto, contrariamente ao que tem ocorrido no passado recente e incorpora a água subterrânea e as formações que a delimitam no domínio público hídrico, à imagem do sucedido nas décadas de 80 e 90 na Holanda, França, Itália e Espanha, e em muitos outros países.

São reforçados os direitos de participação e acesso à informação dos cidadãos em cumprimento do plasmado na lei fundamental, obedecendo aos princípios da publicidade, transparência, igualdade, justiça e imparcialidade, garantindo, nomeadamente o direito dos cidadãos a serem consultados e à sua participação ser tida em conta nas decisões sobre políticas, programas, projectos, medidas e legislação sobre a água devendo a participação e a informação ser acessíveis em todo o território nacional e designadamente ao nível das freguesias.

De entre as diversas propostas previstas destacam-se ainda:

a) O estabelecimento da correspondência dos direitos constitucionais em direitos relacionados com o domínio público hídrico e a sua utilização, e que se traduzem, não só em prioridades de utilização da água e gratuitidade obrigatória da disponibilização de alguns dos seus benefícios, como num regime de compensações mais amplo e mais justo para pessoas prejudicadas na utilização da água por intervenções públicas ou privadas, incluindo expropriações, integrando ou não os bens afectados.

b) A revitalização e clarificação da figura de “Domínio Público Hídrico”, numa perspectiva funcional ao invés da meramente territorial e de sentido de “propriedade”, restringindo fortemente a arbitrariedade de utilização e licenciamento e interditando todas as formas de comercialização pelos poderes públicos. Nesse sentido, integraram-se as águas subterrâneas no domínio público para reforçar a obrigação do Estado na sua protecção, e estabelecem-se prazos e regras para a regularização das situações anómalas provenientes de prévia ocupação e outras figuras jurídicas incompatíveis com o funcionamento real.

c) Um novo regime de autorização de uso da água, visando a garantia dos direitos e equidade do uso da água, o controlo da poluição, nomeadamente a difusa, e a minimização de efeitos sobre terceiros. Um regime de autorização que substitui o actual sistema de licenças ou concessões respeita ao utilizador directamente e nunca a intermediários, e incide sobre a “utilização da água” integralmente, desde a captação à rejeição das águas. O processo inclui a análise do balanço completo dos efeitos no meio hídrico e em relação a terceiros, incluindo a avaliação da poluição difusa e a autorização que poderá implicar limites à composição e quantidades das substâncias incorporadas na água. É estabelecida uma hierarquização de utilizações, em respeito pelas funções da água, nomeadamente as ecológicas, e de acordo com os princípios e objectivos da presente iniciativa legislativa.

d) O aprofundamento da responsabilização do Estado pela administração do domínio público hídrico e a instalação de diversas formas de controlo, incluindo o reforço das formas de fiscalização e controlo directo pelos cidadãos.

e) A criação da Alta Autoridade da Água, que funciona junto da Assembleia da República e com fundamentais atribuições no desenvolvimento da participação pública e no acesso dos cidadãos ao direito, incluindo a defesa de interesses difusos, do interesse público e em processos contra o Estado.

f) A responsabilização dos utilizadores da água por prejuízos ambientais em geral e a terceiros em particular, abrangente de utilizações autorizadas ou clandestinas.

g) Um regime económico da água baseado na análise dos fluxos materiais de produção e na obrigatoriedade de avaliação dos efeitos macroeconómicos das medidas, designadamente assegurando que não se traduzem em inflação de preços de bens socialmente necessários, e enfatizando o cálculo do balanço energético, incluindo o cálculo da energia necessária para despoluição e devolução ao local de captação a água utilizada.

h) A limitação do regime de taxas, que é aplicado às utilizações que se encontrem conformes com a lei e à emissão de poluentes particularmente perigosos, centrando os incentivos económicos em coimas dissuasoras aplicáveis aos prevaricadores, incentivando assim a legalização das utilizações da água.

i) A obrigatoriedade da administração do domínio público hídrico por entidades de administração directa do Estado e a interdição de que a entidade licenciadora possa usufruir de qualquer espécie de benefício financeiro do licenciamento, sejam taxas ou outros benefícios que possam incentivar as intensificações de pressões sobre a água. 

j) A obrigatoriedade de orçamentação de leis, projectos, medidas e programas, assim como dos serviços públicos em função das suas atribuições e plano de actividades, da sua inscrição no Orçamento do Estado e apresentação anual de contas.

k) A interdição da mercantilização da água ou do domínio público hídrico, directa ou indirectamente.

l) O estatuto especial de protecção e promoção das utilizações públicas da água, e muito particularmente das fontes naturais e fontanários.

Nestes termos, ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis os Deputados abaixo assinados, do Grupo Parlamentar do PCP, apresentam o seguinte Projecto de Lei:  

Capítulo I

Objecto e Definições

Artigo 1º

Objecto

Constitui objecto da presente lei a ordenação do direito da água, para garantir as suas funções sociais, ecológicas e económicas.

Artigo 2º

Água circulante

A água circulante é toda a água no estado líquido ou sólido que atravessa as fases do ciclo hidrológico entre a precipitação e a mistura nas águas costeiras, assim como as águas territoriais, designadamente o escoamento superficial e subterrâneo, águas marítimas territoriais, estuários e esteiros, bem como a água que se encontre armazenada em reservatórios naturais ou artificiais intercalados nesse percurso, independentemente do tempo de residência e de recarga e das características físico-químicas da temperatura.

Artigo 3º

Águas contidas

 

Para efeitos da presente lei, são privadas as águas perfeitamente delimitadas em contenção impermeável, sem comunicação mesmo que periódica ou sazonal com a água circulante, e completamente contidas em reservatório ou recipiente de um único proprietário privado.

Artigo 4º

D omínio Público Hídrico

1- É domínio público hídrico toda a água circulante, definida no artigo 2º.

2- Integram-se também no domínio público hídrico as formações naturais ou artificiais, terrenos, infra-estruturas e equipamentos essenciais à circulação, incluindo as que contenham as águas, as que servem de leito, conduta, fundo ou reservatório da água circulante, ou que possam estar submersas com a frequência de pelo menos uma vez em cada dez anos, as margens, os leitos, as ilhas e praias fluviais e marítimas, cais, portos e docas, os terrenos reclamados às águas, os perímetros de protecção de albufeiras públicas, os perímetros de protecção de captações para consumo humano, assim como as formações, infra-estruturas e equipamentos necessários à protecção da qualidade da água ou às utilizações prioritárias e comuns da água.

Artigo 5º

Utilização da água circulante

1- Para efeitos da presente lei considera-se “utilização da água” qualquer actividade específica de interesse público ou privado que exige a aplicação de água circulante, e “utilizador” o sujeito que exerce a actividade ou dela é o beneficiário final.

2- São permitidas utilizações públicas e privadas da água circulante, nos termos previstos na presente lei.

3- A utilização privada da água circulante é objecto de autorização referida ao utilizador e às características específicas da utilização, e respeita obrigatoriamente ao circuito completo de utilização, incluindo o destino final da água utilizada e o conjunto dos efeitos no meio hídrico.

Capítulo II

Princípios gerais

Artigo 6º

Política da água

É dever do Estado assegurar uma política da água com base na solidariedade da unidade do ciclo hidrológico, na harmonia com a dinâmica dos processos naturais e norteada pela defesa do primado do seu carácter público.

Artigo 7º

Gestão da água

A gestão da água é atribuição inalienável do Estado e deve ser exercida através da administração directa, designadamente:

a) O planeamento, administração, licenciamento e fiscalização do uso da água e do domínio público hídrico;

b) O ordenamento da utilização pública e privada da água;

c) O ordenamento do uso do solo e do subsolo necessário à protecção da qualidade da água, ao adequado escoamento da água circulante e à segurança de pessoas, bens e ecossistemas face aos efeitos de cheias, secas e da poluição.

Artigo 8º

Administração

1- A administração da água deve compatibilizar-se com as características de ocorrência da água e do funcionamento hidráulico, bem como com a dinâmica dos fenómenos físicos, químicos e biológicos que nela se processam.

2- A estrutura institucional e os actos administrativos conformar-se-ão, obrigatoriamente, com os seguintes aspectos:

a) A variabilidade hidrológica e os regimes de escoamento superficiais e subterrâneos;

b) A integração da protecção da qualidade da água com o regime de escoamento;

c) Um processo de licenciamento integrado, combinando as normas de descarga com as normas de qualidade do meio hídrico e fazendo depender a autorização de captação das condições adequadas de rejeição das águas e lamas, incluindo a avaliação da poluição difusa, infiltração e drenagem de águas após utilização;

d) A garantia de manutenção de caudais ambientais, da capacidade de depuração do meio hídrico e preservação do um adequado estado trófico, designadamente nas condições sazonais mais desfavoráveis;

e) A consideração do regime de recarga e qualidade dos aquíferos, garantindo que as extracções de água são inferiores à recarga média anual e incorporando a avaliação das emissões e destino final das águas residuais nos processos de autorização do uso da água, de fiscalização e de monitorização;

f) A consideração da continuidade do escoamento, incluindo os percursos superficiais e subterrâneos;

g) A consideração do balanço energético, incluindo energia cinética, energia de posição e consumos energéticos de transporte e tratamento na avaliação do estado da água e eventuais interferências, assim como na comparação de alternativas e análise de projectos;

h) A bacia hidrográfica é a unidade base de planeamento;

i) A consideração de intervenções geotécnicas que possam prejudicar a normal recarga de aquíferos ou outras que possam prejudicar a estabilidade dos normais regimes de transporte de sedimentos nas bacias hidrográficas ou outras que possam agravar factores conducentes a desastres ambientais ou tecnológicos;

j) A obrigatoriedade de clara definição e regulamentação dos procedimentos e articulação de atribuições e competências das entidades com jurisdição relacionada com a ocupação do solo ou ordenamento do território, numa mesma bacia hidrográfica ou em zonas directamente relacionadas com o funcionamento de um sistema aquífero;

k) A informação e participação dos cidadãos no planeamento, na administração, na avaliação de projectos e na elaboração de legislação sobre a água;

l) A responsabilização dos utilizadores por efeitos decorrentes da forma de utilização da água.

Artigo 9º

Princípio da Proporcionalidade

As opções sobre o acesso e uso da água respeitam a hierarquia de utilizações segundo a maior necessidade, a segurança e o princípio da proporcionalidade, nos seguintes termos:

a) A equidade de distribuição dos benefícios da água;

b) As decisões sobre a água são do interesse comum, pelo que os órgãos de consulta e os processos de participação devem ser abrangentes de todos os cidadãos.

Artigo 10º

Direito à água

1- Todos têm direito à água para beber, para confecção de alimentos e higiene com qualidade e tratamento adequados e à descarga das águas residuais domésticas, sobrepondo-se essa garantia a todos os outros critérios e direitos de utilização da água ou do domínio público.

2- O abastecimento próprio por período igual ou superior a um ano, seja directamente de uma origem, seja de um sistema ou equipamento público ou privado, constitui direito que não pode ser alienado, excepto se for proporcionada uma alternativa voluntariamente aceite pelo próprio.

3- As origens de água utilizadas nas condições previstas no número anterior, são obrigatoriamente designadas para produção de água destinada ao consumo humano.

Artigo 11º

Direito à segurança

1-Todos têm direito à segurança de pessoas e bens face, designadamente, a inundações naturais ou provocadas, a outros desastres naturais ou tecnológicos associados aos escoamentos hídricos, efeitos de escassez devida a seca ou a sobreutilização da água, poluição e doenças hídricas.

2- O direito à segurança abrange, ainda, os efeitos de utilizações da água ou outras perturbações do regime de escoamento ou da qualidade da água.

Artigo 12º

Direito ao ambiente

Todos têm direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, nomeadamente a usufruir de ecossistemas equilibrados, paisagem, praias, acesso aos rios e às utilizações públicas da água, salubridade e bom estado das águas, segundo o princípio do uso livre e gratuito, sendo a qualidade desse uso inventariada e a alteração dessa qualidade obrigatoriamente considerada nas avaliações de novas utilizações ou medidas.

Artigo 13º

Utilização da água como factor de produção

Para assegurar o direito ao trabalho, incumbe ao Estado:

a) Impedir o exercício de privilégios especiais sobre a água, relativamente à posse dos meios e factores de produção e quaisquer formas de intermediação na utilização da água como recurso ou factor de produção;

b) Garantir a segurança de rendimentos de trabalho dependentes da água.

Artigo 14º

Direito à compensação

Sem prejuízo da indemnização prevista no Código das Expropriações, todos aqueles que se encontrem em situação de expropriado, deslocado ou prejudicado, sendo ou não proprietário, têm o direito de ser compensados pelos prejuízos directos ou indirectos que os afectem, tendo em consideração a perda do acesso à água e ao domínio público hídrico, e baseando-se esta compensação na substituição do conjunto dos bens ou benefícios equivalentes.

Artigo 15º

Acesso ao direito

1- O Estado assegura a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos em relação à água, incluindo a defesa de interesses comuns e interesses difusos, através de processo judicial acessível, célere, simplificado e gratuito.

2- A lei pode institucionalizar instrumentos e mecanismos simplificados de responsabilização judicial do Estado, designadamente pelo incumprimento de leis ou normas de fiscalização, controlo, monitorização ou informação em matéria de água.

Artigo 16º

Direito de participação

1- Todos têm direito a ser consultados e a sua participação ser tida em conta, nas decisões sobre políticas, programas, projectos, medidas e legislação sobre a água.

2- A participação e a informação devem ser acessíveis em todo o território nacional e designadamente ao nível das freguesias, deve ser gratuita e não pode ser exclusiva, nem assentar em critérios baseados no acesso a tecnologias ou no grau de alfabetização.

Artigo 17º

Direito de informação

Todos têm o direito de ser informados, atempada e regularmente, sobre as matérias e decisões relevantes relativas à água, incluindo:

a) A segurança e riscos a que estejam expostos, designadamente sobre a adequação da qualidade das origens de água para abastecimento, de água distribuída em abastecimento público e das águas balneares, assim como exposição a inundações;

b) O estado e alterações do funcionamento do ciclo da água, incluindo a descrição de efeitos potenciais de políticas, programas, projectos, medidas ou legislação sobre a água;

c) O grau de incerteza e potenciais riscos associados a tomadas de decisão.

Artigo 18º

Direito de associação

Os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações nos termos da lei, com vista, nomeadamente:

a) Ao auto-abastecimento, ou utilização comum da água;

b) À defesa de direitos em relação à água;

c) À protecção da água, dos ecossistemas associados, da solidariedade intergeracional, da protecção das pessoas em relação a riscos associados à água, ou outras questões relacionadas.

Artigo 19º

Responsabilidade

É imputável responsabilidade a quem cause dano, aumento de riscos ou diminuição da qualidade de uso da água a outrem, ou de qualquer forma cause diminuição da qualidade do domínio público hídrico ou das funções dele dependentes, em consequência das acções que exerce ou promove.

Capítulo III

Protecção das pessoas, da água e das funções dela dependentes

Artigo 20º

Princípio geral de protecção da água circulante

É dever do Estado proteger o domínio público hídrico, assegurando o seu adequado funcionamento, a continuidade das funções da água, a prevenção de riscos de redução da disponibilidade para as gerações futuras e a não diminuição da qualidade do seu uso.

Artigo 21º

Funcionamento hidráulico

1- As interferências antropogénicas no circuito das águas e a ocupação do território são condicionadas e limitadas sempre que afectem ou ponham em risco o adequado funcionamento hidráulico da água circulante, em todo o seu percurso superficial e subterrâneo, desde o momento de precipitação, inclusive sob a forma de neve ou granizo, até que evapore ou desague no oceano.

2- São de interesse público e promovidas pelo Estado as intervenções necessárias ao melhoramento e correcção de anomalias e riscos no funcionamento hidráulico das águas circulantes.

3- Para o regular funcionamento hidráulico deverão ser considerados, entre outros, os seguintes factores:

a) O escoamento de águas resultantes de fenómenos extremos de precipitações intensas, cheias e tempestades, e a protecção dos solos em relação à erosão;

b) A alteração da natural permeabilidade dos solos e a recarga de aquíferos;

c) O seccionamento de aquíferos e interferências no escoamento subterrâneo;

d) A desnaturalização dos cursos de água ou redução de meandros;

e) As alterações ao transporte de sólidos afectando os processos de erosão e sedimentação.

4- São obrigatoriamente objecto de estudo hidrológico e análise de riscos induzidos, incluindo riscos para terceiros resultantes da rotura devido a cheia, todas as construções e aterros que atravessem o domínio público hídrico ou constituam obstáculo a linhas de água permanentes ou temporárias, incluindo vias de comunicação em aterro, dotadas ou não de obras de arte.

5- Nos casos referidos no número anterior em que não exista regulamento próprio de segurança hidráulica, serão adoptados para essas construções os critérios do regulamento de segurança de barragens.

Artigo 22º

Qualidade da água – abordagem combinada

1- Incumbe ao Estado assegurar a qualidade adequada da água circulante.

2- É dever de todos os cidadãos preservar a qualidade da água e cooperar na sua melhoria.

3- Para efeitos de regulamentação a qualidade da água é considerada por parcelas fixas e instantâneas intituladas “massas de água” e que são referidas aos reservatórios imóveis entre os quais circula, designadamente, troços de rios, albufeiras, lagos, lagoas, formações que delimitam aquíferos, troços de escoamento subterrâneo ou sub-superficial e outros reservatórios ou condutas naturais ou artificiais que confinam a circulação da água.

4- O Estado delimita as “massas de água” e designa o fim a que cada uma se destina.

5- Cada “massa de água” deve ter a qualidade adequada às utilizações a que se destina e às suas funções ecológicas, conformando-se à grelha de parâmetros físicos, químicos e micro-biológicos regulamentares para essas funções e utilizações.

6- O Estado promove as acções e medidas necessárias para monitorizar e impedir a degradação da qualidade da água e para recuperar a qualidade das massas de água degradadas.

7- Para efeitos de autorização de utilização da água, o critério de qualidade do meio hídrico sobrepõe-se à regulamentação geral de autorização de cada utilização poluente, sempre que seja mais restritivo.

8- A variabilidade hidrológica e a variabilidade climática são consideradas explicitamente na avaliação da capacidade do meio hídrico, e serão descritas no título de autorização as condições mais desfavoráveis de caudal e temperatura para além das quais a emissão terá de ser interrompida.

9- São publicados anualmente os resultados da monitorização da qualidade de cada massa de água, referentes ao ano findo, e comparadas com a grelha regulamentar correspondente.

10- A regulamentação de cada tipo de utilização da água e qualquer título de autorização estipula obrigatoriamente as substâncias que se admite possam estar dissolvidas nas águas usadas, e as condições e local de rejeição, assente numa perspectiva de contenção da poluição pontual e difusa.

Artigo 23º

Funções Protegidas

1. No âmbito das funções sociais, ecológicas e económicas da água, são funções protegidas:

a) As funções da água circulante relevantes para o adequado funcionamento dos ciclos bio-geo-químicos da natureza, com ênfase para os processos biológicos, os ciclos do oxigénio, do fósforo, do azoto e do carbono, assim como a manutenção dos teores de humidade do solo e a capacidade de depuração do meio hídrico, garantindo como primeira prioridade a sanidade ambiental e a segurança sanitária da utilização humana da água e em segunda as condições adequadas aos ecossistemas aquáticos e associados;

b) As funções essenciais à vida e saúde humana, com ênfase para o abastecimento de água em quantidade e qualidade adequada ao consumo humano e higiene pessoal, a disponibilização de fontes públicas, fontanários e chafarizes, os sistemas de abastecimento público, de drenagem e tratamento de águas residuais e de águas pluviais;

c) As reservas estratégicas de água doce, com ênfase para a qualidade da água nos sistemas aquíferos e para a qualidade e adequado funcionamento da rede fluvial, dos percursos de escoamento e dos reservatórios naturais e artificiais;

d) Os ecossistemas aquáticos e associados, com ênfase para a recuperação das condições adequadas ao repovoamento pelas espécies piscícolas mais sensíveis e espécies migratórias, para a sua diversidade e valorização;

e) As fontes e nascentes naturais de água própria para consumo humano, assim como as instalações de acesso público a essas águas, incluindo servidões e fontanários;

f) Os sistemas aquíferos, ou parte de sistema, produtores de água que, pelas suas características químicas sejam reconhecidos como recurso hidromineral ou pela sua temperatura, como recurso geotérmico;

g) As funções directamente relacionadas com o direito ao trabalho, e designadamente o direito dos trabalhadores à utilização gratuita da água como recurso de produção;

h) As utilizações públicas da água e do domínio público hídrico;

i) As funções da água como recurso económico estruturante, e designadamente a segurança da continuidade de utilização adequada a longo prazo;

j) A utilização da água na produção de bens materiais por processos produtivos harmoniosos com os processos naturais, particularmente a agricultura biológica, as práticas agrícolas ambientalmente sãs e outras actividades produtivas, tradicionais ou inovadoras, que contribuam para um uso adequado da água e do solo na produção e para o combate à desertificação.

Artigo 24º

Protecção em relação aos efeitos de fenómenos extremos

e outros riscos relacionados com a água

 

1- É tarefa fundamental do Estado assegurar a protecção de pessoas, dos bens, do território e dos ecossistemas face, designadamente, a inundações naturais ou provocadas, a outros desastres naturais ou tecnológicos associados à água circulante, a efeitos de escassez devida a seca ou à sobreutilização da água, poluição e doenças hídricas.

2- A Assembleia da República aprovará, num prazo não superior a dois anos após a publicação do presente diploma, a lei de enquadramento e regulamentação desta função, incluindo, designadamente, as condicionantes à utilização da água e ocupação do território, as atribuições, competências e articulação dos vários órgãos intervenientes nesta matéria, as formas de participação pública e publicitação, os mecanismos de controlo e fiscalização e os regulamentos sectoriais pertinentes.

3- A Assembleia da República aprovará, num prazo não superior a um ano após a publicação deste diploma, a lei de protecção face a inundações e violência das águas, que deverá abranger a avaliação e comunicação de riscos e a segurança activa e passiva em relação aos efeitos de cheias, fenómenos de precipitação intensa, maremotos, rotura de barragens e outros fenómenos naturais ou antrópicos de inundação ou variação brusca de corrente das águas.

Capítulo IV

Domínio Público Hídrico

Artigo 25º

Dos bens que integram o Domínio Público Hídrico

1- Mantêm-se do domínio público os bens que integravam o domínio público hídrico anteriormente à presente lei, e que incluem:

a) As águas territoriais com os seus leitos, as águas marítimas interiores com os seus leitos e margens e a plataforma continental;

b) As águas salgadas das costas, enseadas, baías, portos artificiais, docas, fozes, rias, esteiros e seus respectivos leitos, cais e praias, até onde alcançar o colo da máxima preia-mar de águas vivas;

c) Os lagos, lagoas, canais, valas e correntes de água de regime permanente, assim como aqueles que, não sendo permanentes, sejam sazonalmente navegáveis ou flutuáveis, com seus respectivos leitos, margens, ilhas e praias e, bem assim, os que por lei forem reconhecidos como aproveitáveis para produção de energia eléctrica ou para irrigação;

d) As valas abertas pelo Estado e as barragens de utilidade pública;

e) As nascentes de águas mineromedicinais e os recursos geotérmicos;

f) As grandes barragens, respectivas albufeiras e órgãos de exploração associados;

g) Os aproveitamentos de fins múltiplos e todos aqueles que sirvam mais do que um particular;

h) As valas, leitos de barrancos e correntes de água sazonais nos troços em que atravessarem terrenos públicos;

i) Os leitos e margens das águas do mar e de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, sempre que tais leitos e margens lhe pertençam, e bem assim os leitos e margens das águas não navegáveis nem flutuáveis que atravessem terrenos públicos do Estado;

j) Os lagos, lagoas e pântanos formados pela natureza nesses terrenos e os circundados por diferentes prédios particulares;

k) As águas nativas que brotarem em terrenos públicos, municipais ou de freguesia, as águas pluviais que neles caírem, as que por eles correrem abandonadas, e as águas subterrâneas que nos mesmos terrenos existam;

l) As águas das fontes públicas e as dos poços e reservatórios construídos à custa dos concelhos e freguesias;

m) As águas que nascerem em algum prédio particular, do Estado ou dos corpos administrativos, e as pluviais que neles caírem, logo que umas e outras transponham, abandonadas, os limites dos respectivos prédios, se forem lançar-se no mar ou em outras águas do domínio público;

n) As infra-estruturas de sistemas públicos de abastecimento de água e águas residuais, assim como todas as infra-estruturas associadas à água que tenham sido declaradas de interesse público, ou financiadas por fundos públicos;

o) Os terrenos ocupados por essas infra-estruturas e os terrenos adjacentes que tenham sido adquiridos ou expropriados no âmbito dos empreendimentos referidos;

p) As captações para abastecimento público, assim como os terrenos abrangidos pelos perímetros de protecção dessas captações.

2- Com a entrada em vigor da presente lei integra-se no domínio público toda a água circulante, e, bem assim todos os bens referidos no artigo 4º e as zonas adjacentes que sejam nessa data propriedade privada do Estado, de entidade pública ou de entidade privada de capitais maioritariamente públicos.

3- Os bens que se enquadrem no nº 2 do artigo 4.º e sejam propriedade privada de particulares deverão ser integrados no domínio público hídrico num período até dez anos após a aprovação da presente lei.

4- As beneficiações posteriores à aprovação da presente lei, exceptuando a manutenção e conservação corrente, não serão consideradas para efeito de compensações ou indemnização dos proprietários.

5- A integração de bens privados no domínio público hídrico nos termos da presente lei é de interesse público.

6- A integração de bens privados no domínio público hídrico será regulamentada de acordo com as disposições transitórias da presente lei, fazendo parte do processo de integração a emissão de autorização das utilizações da água ou de ocupação do domínio hídrico a que houver lugar e sendo outras eventuais compensações calculadas com base no global das vantagens e prejuízos para o proprietário e para o utilizador efectivo e considerando a situação das utilizações instaladas face ao disposto na lei em vigor.

7- Por requerimento do proprietário no âmbito do processo referido no nº 3 do presente artigo, poderá considerar-se a manutenção da propriedade privada de particulares sobre terrenos do domínio público hídrico referidos no nº 2 do artigo 4º, ficando os mesmos terrenos sujeitos ao regime geral do domínio público hídrico, mas ficando interdita a autorização a terceiros da sua utilização privada.

Artigo 26º

Propriedade e administração

1- A água circulante pertence ao Estado e os terrenos e infra-estruturas e equipamentos do domínio público hídrico poderão ser património da Administração Central, da Administração Regional ou das Autarquias Locais.

2- A administração, gestão, fiscalização e autorização de utilização do domínio público hídrico é exercida por órgãos de administração pública directa.

3- A ocupação do domínio público hídrico com infra-estruturas permanentes, sejam de iniciativa pública ou privada, é objecto de título de autorização específico sujeito a processo público de Avaliação de Impacte Ambiental.

4- Os terrenos do domínio público hídrico, com excepção dos fundos marítimos para além dos estuários, estão obrigatoriamente integrados, sob o ponto de vista de jurisdição administrativa, numa freguesia e num concelho, e são considerados, para todos os efeitos, no cálculo da superfície dessas divisões administrativas.

Artigo 27º

Recuo e avanço das águas

1- Os leitos dominiais que forem abandonados pelas águas, ou lhes forem conquistados, assim como os terrenos reclamados às águas, não acrescem às parcelas privadas que porventura lhes sejam contíguas, continuando integrados no domínio público.

2- As alterações ao curso das águas, a corrosão ou submersão de terrenos, alterações à linha de costa ou à configuração das formações geológicas delimitantes das águas subterrâneas, implicam a redefinição dos limites do domínio público hídrico, considerando-se automaticamente integradas no domínio público hídrico as parcelas privadas afectadas, nas seguintes condições:

a) Se estas alterações forem lentas, e devidas à evolução natural ao curso das águas, designadamente alterações de linha de costa, formação de meandros de rios, erosão e sedimentação decorrentes do regime natural das águas, não há lugar a indemnização ao proprietário pela sua integração no domínio público hídrico;

b) Se as alterações forem efeito directo ou indirecto de intervenção humana, ou houver lugar a forte presunção que o sejam, o Estado expropriará os bens integrados no domínio público e pagará as indemnizações por prejuízos a que houver lugar instaurando, obrigatoriamente, um processo de averiguação de responsabilidades.

3- As obras hidráulicas, marítimas ou outras que alterem a morfologia, a permeabilidade ou outras características hidráulicas do solo, o percurso do escoamento superficial ou subterrâneo, a linha de marés ou as áreas inundáveis por cheias, ou as zonas adjacentes, tenham sido ou não objecto de autorização de utilização da água ou do domínio público hídrico, dão lugar a compensação de todos os sujeitos prejudicados pela alteração dos limites do domínio público, da alteração do regime, do curso ou da qualidade das águas e/ou das áreas inundáveis.

4- A compensação prevista no número anterior contempla, para além da indemnização devida pela expropriação dos proprietários a que houver lugar, a compensação a todas as pessoas afectadas, designadamente nos direitos referidos no artigo 9º e seguintes, no direito à habitação ou outros direitos constitucionais, baseando-se esta compensação, quando não houver legislação específica, na substituição dos bens afectados por bens idênticos ou equivalentes.

5- Qualquer projecto, construção ou instalação de equipamentos que induza alteração à delimitação dos terrenos do domínio público hídrico ou das áreas inundáveis é obrigatoriamente objecto de processo de consulta pública, de duração superior a três meses, devidamente publicitada em todos os concelhos abrangidos total ou parcialmente pela alteração e nos concelhos contíguos a esses.

Artigo 28º

Delimitação do domínio público hídrico

1- Todos os cidadãos têm o direito de conhecer a delimitação do domínio público hídrico.

2- O domínio público hídrico é objecto de inventariação clara e inequívoca no inventário de património do Estado e é explicitado à escala adequada nos instrumentos de planeamento com incidência territorial, incluindo obrigatoriamente os planos de recursos hídricos, o plano nacional da água e os planos directores municipais.

Artigo 29º

Alteração aos bens do domínio público hídrico

1- Os bens do domínio público hídrico só podem transitar para o regime de propriedade privada caso deixem de se verificar, com carácter definitivo e permanente, todas e cada uma das condições referidas nos artigos 4º e 25º e se verifique pelo menos uma das seguintes situações:

a) O recuo das águas, provando-se que é definitivo e permanente, poderá dar origem à exclusão do domínio público hídrico de terrenos que se situem para além da nova definição das áreas inundáveis;

b) O abandono, destruição ou cessação de utilidade de infra-estruturas do domínio público hídrico poderá dar origem à desintegração dessas infra-estruturas e eventualmente de terrenos associados do domínio público.

2- O processo de alienação de bens do domínio público hídrico é obrigatoriamente precedido dos estudos técnico-científicos adequados e de uma consulta pública em todos os concelhos abrangidos e limítrofes e é objecto de deliberação da Assembleia da República.

3- Os bens excluídos do domínio público passam a estar na esfera dos municípios ou das freguesias em que se situam.

Artigo 30º

Regime geral do domínio público hídrico

1- Todos os cidadãos podem usar livremente o domínio público hídrico nas formas que não o alterem, não degradem a água e não prejudiquem o uso por outros, ou retirar água para uso próprio com vasilhame.

2- O regime de administração, protecção, acautelamento e utilização do domínio público hídrico e o regime de restrições ao uso do território serão objecto de regulamentação.

3- O desvio de águas dos seus leitos naturais, captação por meio de equipamentos mecânicos, represamento das águas, perfuração das camadas geológicas enquadrantes dos aquíferos, descarga de águas utilizadas, drenagem ou infiltração de águas são objecto de regulamentação das utilizações da água.

4- Será também elaborado o regulamento de segurança, incluindo a segurança em relação a cheias, para projecto, construção, regime de condicionantes, manutenção e exploração de obras e equipamentos potencialmente interferentes no regime de escoamento ou armazenamento de água, no funcionamento hidráulico das cheias ou na qualidade da água, englobando barragens e exploração de albufeiras, estradas em aterro, valas e condutas, obras de regularização, seccionamento de aquíferos, fundações, túneis ou obras subterrâneas interferentes no escoamento, obras de drenagem e estações de tratamento de águas.

Artigo 31º

Leitos

1- Para os efeitos da presente lei entende-se por “leito” todo o terreno coberto pelas águas, quando não influenciadas por cheias, inundações ou tempestades de probabilidade de ocorrência inferior a uma vez em dois anos, e compreende os mouchões, lodeiros e areais nele formados por deposição aluvial.

2- O leito das águas do mar, bem como das demais águas sujeitas à influência das marés, é limitado pela linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais, definida para cada local, em função do espraiamento das vagas, em condições médias de agitação do mar, no primeiro caso, e em condições de cheias médias, no segundo caso.

3- O leito das restantes águas é limitado pela linha que corresponder à extrema dos terrenos que as águas cobrem em condições de cheias com probabilidade de ocorrência de uma vez em dois anos, sem transbordar para o solo natural, habitualmente enxuto, definida, conforme os casos, pela aresta ou crista superior do talude marginal ou pelo alinhamento da aresta ou crista do talude molhado das motas, cômoros, valados, tapadas ou muros marginais.

4- Os leitos são domínio público hídrico nos termos do nº 2 do artigo 4º.

Artigo 32º

Margens

1- Para efeitos da presente lei entende-se por “margem” uma faixa de terreno contígua ao leito ou sobranceira à linha que limita o leito das águas.

2- A margem das águas do mar, bem como a das águas navegáveis ou flutuáveis até ao limite de influência das marés, tem a largura de 50 metros .

3- A margem das restantes águas navegáveis ou flutuáveis tem a largura de 30 metros .

4- A margem das águas não navegáveis nem flutuáveis, nomeadamente torrentes, barrancos e córregos de caudal descontínuo, tem a largura de 10 metros .

5- Nos casos em que exista natureza de praia e esta se estenda por uma faixa de largura superior à estabelecida para cada caso, a margem estende-se até onde o terreno apresentar tal natureza.

6- Nos casos em que a área inundável com probabilidade de, pelo menos, uma vez em dez anos se estenda por uma faixa de largura superior à estabelecida para cada caso, a margem estende-se até ao limite da área inundável.

7- As margens são domínio público hídrico nos termos do nº 2 do artigo 4º.

Artigo 33º

Zonas adjacentes – áreas inundáveis

1- Para os efeitos da presente lei entende-se por “zona adjacente” a área contígua à margem que como tal seja classificada por diploma legal, por se encontrar ameaçada pelo mar ou pelas cheias, e estende-se desde o limite exterior da margem até uma linha convencional definida, para cada caso, no diploma de classificação.

2- A utilização das zonas adjacentes está sujeita a condicionantes de ocupação semelhantes ao regime de protecção do domínio público hídrico e definidas por lei.

3- O critério de classificação e o regime das zonas adjacentes são definidos em lei.

Artigo 34º

Outras zonas condicionadas

1- Poderão ser estabelecidas condicionantes permanentes ou temporárias à utilização de terrenos privados, para protecção das águas, designadamente em zonas húmidas, zonas vulneráveis, zonas sensíveis, zonas de protecção de ecossistemas aquáticos e associados, ou outras zonas definidas para segurança das funções da água, das pessoas e bens.

2- Sempre que ocorra lesão da utilização efectiva do terreno ou da utilização da água, o utilizador tem direito a compensação adequada.

Artigo 35º

Servidões administrativas

É condicionado o uso da propriedade privada nas zonas sujeitas às servidões administrativas e legais, designadamente no interesse geral de acesso ao domínio público hídrico e às utilizações públicas da água.  

Artigo 36º

Restrições e condicionantes com expressão territorial

As condicionantes e restrições com expressão territorial serão mapeadas e explícitas à escala adequada nos instrumentos de planeamento territorial, designadamente nos planos directores municipais.

Capítulo V

Das utilizações da água e da ocupação do domínio público hídrico

Artigo 37º

Utilização da água

1- A “utilização da água” compreende o conjunto completo de acções necessárias ao exercício da actividade, considerando a globalidade dos efeitos dessa actividade no estado físico, químico, biológico e energético da água circulante e as alterações aos balanços de massas e energia, e inclui, nomeadamente, a captação e a rejeição de águas, a ocupação do domínio público hídrico, assim como a exploração de infra-estruturas e equipamentos hidráulicos ou de tratamento de águas.

2- Cada “utilização da água” está necessariamente associada a um sujeito “utilizador”, podendo este ser uma pessoa singular ou colectiva, de direito público ou privado.

Artigo 38º

Principio geral

1- A utilização da água é objecto de título de autorização emitido a favor do utilizador por entidade pública de administração directa do Estado com atribuições próprias.

2- O título de autorização tem as seguintes características:

a) Refere-se a uma determinada utilização da água globalmente e à totalidade dos seus efeitos no meio hídrico, devidamente quantificados e descritos os intervalos de variação admissíveis para cada parâmetro pertinente;

b) Especifica o processo de monitorização e controlo, cujos encargos são suportados pelo utilizador.

3- O título é emitido para um prazo limitado e para intervalos de condições hidrológicas e de estado do meio hídrico especificadas, podendo também limitar a utilização a determinados períodos do dia ou do ano.

4- Tratando-se de actividades que estejam sujeitas a licença ambiental, esta será incluída no título de autorização de utilização da água.

5- O título de autorização não isenta o utilizador de responsabilidade civil por danos causados a terceiros ou danos ambientais decorrentes da utilização.

6- As utilizações definidas na lei como utilizações livres estão isentas de autorização, podendo, no entanto, existir áreas em que estas utilizações sejam vedadas ou condicionadas.

Artigo 39º

Utilizadores

1- Nos termos do nº 1 do artigo 5º entende-se por utilizador, uma pessoa singular ou colectiva, que directamente beneficia de determinada utilização da água, e cujo interesse é invocado na justificação da mesma, sendo que cada utilização corresponde inequivocamente a um utilizador, e só existe em função dele.

2- O utilizador é titular da autorização de utilização da água, se a ela houver lugar, e é responsável por danos a terceiros e por danos ambientais directa ou indirectamente resultantes do seu exercício.

3- No caso de utilizações múltiplas agregadas, e não havendo associação ou cooperativa específica dos utilizadores, podem os órgãos das autarquias locais, das Regiões Autónomas ou da administração central actuar como representantes de grupos de utilizadores no âmbito das suas atribuições e área de jurisdição.

4- No caso de pessoas jurídicas diversas utilizarem sucessiva ou simultaneamente o mesmo fluxo de água, não servindo a captação e a rejeição uma única entidade, deverão obrigatoriamente constituir-se em associação, cooperativa ou sociedade com personalidade jurídica que se assuma como utilizador e requeira a autorização de utilização.

 Artigo 40º

Utilizações públicas

1- São utilizações públicas da água do domínio público hídrico aquelas que estão acessíveis e podem ser simultaneamente usufruídas por muitos utilizadores, sem que haja conflito de uso nem perturbação significativa no estado do meio nem na qualidade de outras utilizações, e que incluem, designadamente, a extinção de incêndios, o consumo, a colecta de água em vasilha, para uso próprio, a higiene, a fruição da paisagem, das margens, das ilhas e das praias, a fruição de fontes públicas, lagos e jardins públicos, a flutuação e navegação sem motor e a pesca à linha, e ainda as utilizações públicas definidas no artigo seguinte e as utilizações comuns nos baldios.

2- As utilizações previstas no número anterior não necessitam de autorização e são gratuitas, podendo, no entanto, ser condicionadas ou interditas em determinados locais devidamente assinalados, ou por períodos temporariamente determinados, por critérios definidos por lei e em razão da segurança do utilizador e da protecção da qualidade da água ou dos ecossistemas.

Artigo 41º

Utilizações públicas em equipamentos públicos

1- São utilizações públicas da água em equipamentos públicos as utilizações públicas dependentes de equipamentos ou serviços, cujo acesso seja gratuito e não exclusivo e que incluem:

a) O abastecimento em fontes públicas;

b) O abastecimento em fontanários e chafarizes públicos;

c) Utilizações comuns em baldios, com infra-estruturas próprias;

d) A fruição de piscinas, lagos e lagoas de acesso público;

e) A rega de jardins públicos;

f) A utilização de bebedouros públicos;

g) A utilização de bocas – de - incêndio;

h) A utilização em lavadouros públicos;

i) O abeberamento de gado em instalações públicas;

j) A utilização em hospitais e centros de saúde pública;

k) A utilização em escolas e estabelecimentos de ensino públicos;

l) Outras utilizações em espaço público onde seja proporcionado acesso público e gratuito à água.

2- Incumbe ao Estado assegurar a efectiva fruição do direito à água providenciando e protegendo equipamentos e serviços que garantam as utilizações públicas.

3- As utilizações públicas em equipamentos públicos são de interesse público e sobrepõem-se, para todos os efeitos, às utilizações privadas da água.

4- Todos os actos de eliminação, vandalismo ou deterioração de equipamentos públicos de utilização da água, ou qualquer acção que diminua a disponibilidade ou qualidade das utilizações é crime contra o interesse público, nos termos a definir por lei.

5- A obrigatoriedade de disponibilização de utilizações públicas em equipamentos públicos, e especialmente a disponibilização do acesso à água potável será objecto de regulamentação.

Artigo 42º

Utilizações privadas

1- São utilizações privadas da água as que implicam que um troço do circulação da água seja exclusivo a um utilizador, ou que perturbem de alguma forma o funcionamento ou a qualidade do meio hídrico ou as funções protegidas da água, ou ainda que impliquem a ocupação dos terrenos do domínio público hídrico.

2- A utilização privada da água exige título de autorização emitido por entidade pública de administração directa do Estado nominalmente ao utilizador.

3- Os critérios de autorização são regulamentados de acordo com a presente lei e incidem sobre todo o conjunto de acções, construções e instalações necessárias ao seu desempenho, incluindo obrigatoriamente o destino final das águas utilizadas, e obrigam à pré-avaliação dos conjunto dos efeitos previsíveis no domínio público hídrico, nas utilizações da água e nas funções protegidas, sendo obrigatoriamente analisadas, quanto pertinente, soluções alternativas de origem de água, de drenagem, de tratamento e destino final de águas residuais e lamas.

4- O título de autorização menciona explicitamente os limites da utilização referenciados às condições hidrológicas e de qualidade físico-quimica, biológica e ecológica do meio aquático, e o sistema de monitorização e controlo, cujos custos serão suportados pelo utilizador.

5- A regulamentação diferenciará os critérios e processos de autorização, bem como do processo de adaptação para actividades instaladas, para as seguintes utilizações: uso pessoal e domiciliário; abeberamento e criação de gado não estabulado, diferenciando produção familiar e industrial; rega de jardins privados e outros usos de lazer em propriedade privada; pecuária industrial, diferenciada segundo o tipo de amimais, a dimensão, tipo de produtos manuseados, utilização da água e tratamento; agricultura regada familiar tradicional; agricultura regada biológica; agricultura regada com utilização de fertilizantes e ou pesticidas; agricultura regada industrial; campos de golfe e outras instalações turísticas com campos ou jardins regados; produção hidroeléctrica; produção termoeléctrica; indústrias alimentares tradicionais, incluindo produção de vinho, produção de azeite e lacticínios; artesanato e artes, incluindo olaria e estatuária; indústria transformadora com utilização de água no processo de fabrico, diferenciada segundo o tipo de indústria, a dimensão, tipo de produtos manuseados, e produção; processamento alimentar; culturas biogenéticas, diferenciadas por espécie e por produtos utilizados e potencialmente incorporados na água: indústria extractiva, diferenciada segundo o tipo, a dimensão e o processo; produção florestal com rega; actividade hoteleira ou de restauração; laboratórios; actividades hospitalares e clínicas veterinárias; actividades que impliquem transporte ou manuseamento intensivo de óleos e ou hidrocarbonetos, incluindo oficinas, bombas de gasolina e as que incluam transporte de hidrocarbonetos por oleodutos; actividades portuárias; exploração de docas ou marinas navegação motorizada, de transporte de passageiros ou de mercadorias; pesca com utilização de artes de pesca ou processos mecanizados actividades que incluam depósito de resíduos ou produção de lamas químicas; todas as actividades que exijam licença ambiental, processo de avaliação de impacto ambiental, ou manuseiem substâncias eventualmente perigosas para a água.

6- Os critérios, processo e condições de autorização, assim como os métodos de cálculo e valores de referência dos parâmetros relevantes e o regime de monitorização e fiscalização são regulamentados de forma explícita.

7- A lista de todos os parâmetros e variáveis de referência, incluindo os limites de emissão de substâncias poluentes para cada tipologia de utilização e as condicionantes próprias de cada massa de água, será publicada anualmente para todo o território nacional.

Artigo 43º

Utilizações privadas em equipamentos públicos

1- Existindo várias utilizações privadas da água ligadas total ou parcialmente a um mesmo equipamento, cada uma é objecto de autorização de utilização da água, sendo o equipamento público gerido por administração directa do Estado.

2- Cada equipamento público é objecto de diploma regulamentar, publicado em Diário da República , no qual se estipulam os objectivos, regras de exploração e funcionamento, entidade gestora, responsabilidades e quadro afecto.

3- Os equipamentos públicos são sujeitos a processo de autorização, incluindo as avaliações e processos de participação pública semelhantes aos estipulados para utilizações privadas.

4- O serviço público gestor do equipamento poderá contratar ou delegar a operação corrente, monitorização ou manutenção e conservação do equipamento, não podendo a delegação ou contrato exceder quatro anos, findos os quais caduca automaticamente.

Artigo 44º

Outras utilizações ou ocupações do domínio público hídrico

1- Sendo a figura de domínio público hídrico e a sua delimitação baseada na garantia da funcionalidade da fase líquida do ciclo hidrológico e das funções da água, a sua ocupação ou qualquer tipo de utilização só é admissível se, pelas suas características próprias e tipologia não for exequível fora do domínio público, ficando sujeita à verificação de que não são perturbadas essas condições de funcionalidade, ou que são respostas de forma equivalente ou melhor que a anterior.

2- As ocupações ou utilizações dos terrenos do domínio público hídrico no âmbito de uma utilização da água serão objecto do processo único de autorização da utilização, caso contrário serão objecto de autorização específica de utilização do domínio hídrico.

3- Quando cessa o objecto da ocupação ou utilização dos terrenos do domínio público hídrico que consta da autorização, esta caduca, sendo ao mesmo tempo repostas as condições iniciais, sendo interdita a reconversão de construções ou equipamentos instalados para actividades que possam ser exercidas noutros terrenos.

4- Os critérios de avaliação e de autorização da ocupação do domínio público hídrico serão objecto de regulamentação.

Artigo 45º

Hierarquia

1- Os critérios de autorização de utilização da água e as condicionantes impostas, designadamente em função da situação hidrológica e do estado de qualidade do meio receptor, assim como restrições temporárias ou permanentes de utilização da água ou dos terrenos do domínio público hídrico, terão em conta a seguinte hierarquia:

a) A segurança de pessoas e bens face a desastres de causas naturais ou antrópicas, incluindo a extinção de incêndios, a segurança em relação a inundações, arrastamento pelas águas, erosão e acidentes de poluição;

b) A utilização domiciliária de água com qualidade adequada e a disponibilidade de água potável em fontes, fontanários e chafarizes públicos;

c) A saúde pública;

d) A segurança de rendimentos de trabalho dependentes do acesso à água;

e) A sobrevivência de animais de criação doméstica e em vida selvagem assim como de árvores e outras plantas com períodos longos de substituição;

f) A segurança relativamente a contaminação ou sobre-exploração de aquíferos e à eutrofização ou degradação da qualidade das albufeiras;

g) A capacidade de depuração do meio hídrico e a qualidade física, química e biológica da água e a manutenção de caudais ecológicos;

h) A manutenção de reservas que assegurem estas funções durante o período de estiagem e em caso de seca prolongada.

2- As funções protegidas da água têm prioridade sobre outras funções ou utilizações.

3- Os critérios de hierarquização de autorização de outras utilizações da água poderão ter variações espaciais, e serão submetidos à aprovação da Assembleia da República para cada região hidrográfica.

Artigo 46º

Obras Hidráulicas, Tratamentos e Instalações especiais

1- Os princípios e regras definidos para o domínio público hídrico são extensivos a todas as obras hidráulicas, tratamentos e instalações especiais que interfiram significativamente no funcionamento hidráulico ou na qualidade da água circulante, e que incluem: barragens; albufeiras; entubamento ou rectificação de cursos de água superficiais ou subterrâneos; sistemas de rega; transferências de água entre bacias hidrográficas; instalações de tratamento de águas; sistemas de distribuição de água; sistemas de colecta e drenagem; instalações de tratamento de águas residuais; recarga de aquíferos; estações de bombagem; diques, lagoas de dissipação e outras instalações de protecção de cheias; sistemas de dessalinização; enxugo de terras; portos, docas e marinas; extracção de inertes do domínio público hídrico e turbinas.

2- O projecto, instalação e exploração desses empreendimentos carecem de programa prévio de exploração, operação e segurança e são sujeitos a processo de consulta pública e de análise de riscos, e exigem monitorização de efeitos directos e indirectos.

3- É obrigatória a existência de regulamentação de segurança para cada tipologia de instalação, incluindo a segurança de exploração e operação em relação a efeitos no funcionamento hidráulico e qualidade da água circulante e riscos directos e indirectos para pessoas, bens e ecossistemas.

4- Num período de dez anos após a entrada em vigor da presente lei, a instalação ou exploração dessas instalações será condicionada por aprovação prévia em planos de gestão de bacia hidrográfica e planos directores municipais.

5- Exceptuam-se instalações para as quais, pela reduzida dimensão ou características especiais, a regulamentação de segurança preconize explicitamente uma simplificação de processo.

Capítulo VI

Administração e Planeamento

Artigo 47º

Entidades de Administração da Água

1- A administração do domínio público hídrico e a execução das atribuições do Estado no cumprimento da presente lei é assegurada pela Administração Geral da Água, pelas Administrações Regionais da Água e pelas Administrações de Recursos Hídricos de Bacia Hidrográfica, adiante designadas, respectivamente por AGA, ARA e ARH.

2- A AGA, as ARA e as ARH são serviços públicos de administração directa do Estado, dotados de quadro de pessoal próprio, meios e orçamento necessários e suficientes ao cumprimento cabal das suas atribuições e competências.

3- A AGA, as ARA e as ARH deverão garantir, no âmbito das respectivas áreas de jurisdição, a articulação com todas as entidades com atribuições relevantes para a administração da água, na saúde, no ordenamento do território, nos sectores utilizadores da água e do domínio público hídrico, assim como a integração do planeamento da água no planeamento local, regional e nacional.

4- A AGA, as ARA e as ARH têm ainda, nas áreas de jurisdição correspondentes, atribuições de recolha, compilação e publicitação de informação sobre o estado da água e do domínio hídrico, a sua utilização e o direito da água, promoção da participação pública nas decisões, divulgação, sensibilização, promoção do conhecimento e da cultura científica neste âmbito, além disso, cooperarão com outras entidades, especialmente órgãos do poder local, estabelecimentos de ensino e de investigação, centros de saúde, cooperativas, sindicatos, associações e outras organizações cívicas, para o exercício dessas atribuições.

Artigo 48º

Bacias hidrográficas e sistemas aquíferos

Para efeitos de gestão e planeamento da água será publicado, no prazo de um ano, legislação própria definindo as bacias hidrográficas e os aquíferos que lhe estão associados, assim como as zonas de água costeira a integrar na mesma unidade de gestão e planeamento.

Artigo 49º

Gestão integrada por bacia hidrográfica e sistemas aquíferos

A gestão integrada por bacia hidrográfica e sistemas aquíferos é feita mediante os seguintes princípios:

a) As unidades de gestão são as bacias hidrográficas;

b) A administração do domínio público hídrico, incluindo a autorização de uso da água, a fiscalização e a monitorização, serão atribuição de serviços públicos de administração directa do Estado, denominadas Administrações de Recursos Hídricos, adiante designadas por ARH, com jurisdição sobre uma ou mais bacias hidrográficas e sistemas aquíferos;

c) Serão no mínimo de oito as ARH, com atribuições e competências de administração do domínio público hídrico, incluindo a costa, estuários e águas marinhas, sendo que cada bacia hidrográfica e cada sistema aquífero insere-se na jurisdição de uma única ARH;

d) A administração das águas subterrâneas não incluídas em sistemas aquíferos identificados é afecta à ARH com competência sobre a bacia hidrográfica ou sistema aquífero mais próximo;

e) As pequenas bacias hidrográficas são agregadas a bacias hidrográficas adjacentes;

f) As áreas costeiras e o domínio público marítimo são administrados pelas ARH;

g) Poderão existir ARH cujos limites de jurisdição sobre o domínio público hídrico referente às águas superficiais não coincidam, em planta, com os limites de jurisdição sobre as águas subterrâneas e as formações que as contém;

h) O regulamento de cada ARH especificará a jurisdição e as formas de articulação com as ARH limítrofes para garantir a integração da gestão das ligações e transferências de água, naturais ou artificiais, entre bacias hidrográficas e sistemas aquíferos, assim como a coordenação de actuação nas zonas em que águas superficiais e subterrâneas são geridas por ARH diversas.

Artigo 50º

Administrações Regionais da Água

1- Em cada Região Autónoma e em cada Região Administrativa , quando forem constituídas, haverá uma Administração Regional da Água (ARA), dependente, respectivamente, do Governo Regional e dos órgãos próprios da administração regional.

2- A ARA tem jurisdição sobre o domínio público hídrico da Região, articulando-se com a AGA e as ARH nos moldes definidos pelos respectivos regulamentos.

3- São atribuições específicas das ARA, para além de outras que possam ser definidas no regulamento:

a) A gestão e publicitação da informação regional sobre a água;

b) A edição de anuários regionais e de relatórios de caracterização e diagnóstico de suporte aos vários níveis de planeamento na região;

c) A instrução e elaboração dos Planos Regionais da Água, condução dos respectivos processos de participação pública;

d) A cooperação com a AGA e a prestação de toda a colaboração necessária ao exercício das atribuições da AGA a nível nacional, incluindo a elaboração do Plano Nacional da Água e dos relatórios nacionais.

3- Durante os primeiros seis anos após a respectiva criação, as ARA da Região Autónoma dos Açores e da Região Autónoma da Madeira substituir-se-ão às ARH nessas Regiões, podendo, posteriormente, criar-se ARH correspondendo a cada ilha ou agrupamento de ilhas.

4- Quando forem criadas as Regiões Administrativas são automaticamente criadas as ARA respectivas e obrigatoriamente revistos os regulamentos da AGA e das ARH para adequação à nova organização administrativa. 

Artigo 51º

Administração Geral da Água

1- A Administração Geral da Água depende do Governo através do Ministério de tutela, e tem jurisdição sobre o Domínio Público Hídrico de Portugal Continental em articulação com as ARA que venham a ser criadas e ARH correspondentes e, nos moldes definidos pelos respectivos regulamentos.

2- Sem prejuízo de atribuições decorrentes de regulamento, são atribuições específicas da AGA as seguintes:

a) A garantia da monitorização hidrológica, de qualidade da água, dos usos da água, dos planos e programas e de outras informações definidas na legislação nacional ou resultantes de acordos, convénios, tratados, ou outras obrigações contraídas com países terceiros;

b) A demarcação do domínio público hídrico e das áreas inundáveis e o respectivo mapeamento;

c) A delimitação das “massas de água” referidas no artigo 22º, a designação dos fins a que se destinam, promoção e controlo dos programas de preservação ou recuperação da qualidade adequada;

d) A publicação quadrienal de relatórios de caracterização e diagnóstico, incluindo os estudos e análises de suporte aos vários níveis de planeamento no Continente;

e) A instrução da elaboração do Plano Nacional da Água, e demais planos e programas a nível nacional, e condução do respectivo processo de participação pública;

f) A coordenação e promoção da elaboração dos Planos de Gestão de Recursos Hídricos no Continente;

g) A gestão dos equipamentos públicos e albufeiras;

h) A segurança de barragens;

i) A gestão e publicitação da informação nacional sobre a água;

j) A edição de anuários nacionais com toda a informação de publicitação obrigatória sobre o estado e uso do domínio público hídrico e do grau de cumprimento de planos e programas no domínio da água.

Capítulo VII

Planeamento

Artigo 52º

Do processo de planeamento e dos planos

 

1- A administração da água baseia-se no planeamento, como processo de decisão antecipada e participada pelos cidadãos e pelas suas organizações representativas.

2- O processo de planeamento é contínuo e fundamentado no conhecimento da água, das suas utilizações e funções, sendo obrigação do Estado promover e divulgar esse conhecimento.

3- As decisões resultantes do processo de planeamento da água, designadamente planos, programas e planos de contingência, só têm efeito quando aprovadas por diploma legal.

4- Os planos e programas contêm exclusivamente as decisões, devendo a informação, análise e outros estudos de instrução e suporte à decisão, ser publicitados separadamente e não incluídos no diploma legal que os aprova.

5- As decisões traduzidas em condicionantes de expressão territorial são obrigatoriamente vertidas nos Planos Directores Municipais.

6- Todos os planos e programas são sujeitos a um processo de participação pública antes da aprovação, com excepção dos programas de emergência.

7- A Assembleia da República publicará a lei do planeamento da água num prazo não superior a um ano após a aprovação da presente lei.

Artigo 53º

Inventário do Domínio Público Hídrico e Zonas Condicionadas

1- O Governo apresentará num período não superior a dois anos após a aprovação da presente lei, a proposta de inventário dos terrenos, infra-estruturas e equipamentos do domínio público hídrico, a delimitação das zonas adjacentes e de outras zonas de ocupação condicionada para protecção da água, das suas funções ecológicas e sociais ou para protecção de pessoas e bens em relação a cheias, assim como as propostas de condicionantes.

2- Será apensa a proposta de programa, orçamento e forma de financiamento das medidas e compensações eventualmente necessárias à regularização de situações anteriores à presente lei.

3- O processo será sujeito a consulta pública por período de um ano, sendo obrigatoriamente ouvidos os Governos Regionais e os órgãos do poder local, após o qual a Assembleia da República deliberará.

4- As cartas de condicionantes, identificação do domínio público hídrico assim como a identificação das entidades envolvidas na autorização da utilização do domínio público hídrico e aplicação de outras condicionantes, respectivas atribuições e regulamentação especializada serão vertidos nos planos directores municipais, nos planos de gestão de recursos hídricos e no Plano Nacional da Água.

5- As actualizações do processo, decorrentes da aplicação da legislação ou de aperfeiçoamento do conhecimento e análise, são da competência da Assembleia da República, podendo a proposta ser apresentada pelo Governo, pela Assembleia da República ou pelos órgãos do poder local, dando origem à revisão pontual dos planos afectados.

Artigo 54º

Anuário da Água

1- O Governo publica, até ao mês de Dezembro de cada ano, o “Anuário da Água”, compilando os dados de monitorização e fiscalização do estado da água e suas utilizações relativos ao ano hidrológico findo no mês de Setembro do mesmo ano.

2- O anuário inclui todos os dados de recolha obrigatória pela legislação nacional, assim como os que são fornecidos a Espanha no âmbito de acordos bilaterais, e bem como os dados de suporte à verificação de outros acordos, normas, programas e planos de âmbito nacional ou internacional, incluindo os relatórios para a União Europeia, e ainda o controlo das origens de água para consumo humano, das praias fluviais e marítimas e da qualidade da água para abastecimento público desagregados por sistema e por concelho.

Artigo 55º

Lista de entidades

1- O Governo publica, em cada biénio, a “Lista de entidades” que manuseiam substâncias definidas como prioritárias para controlo da qualidade da água, com indicação explícita das substâncias associadas, localização e identificação do destino final das águas residuais e dos resíduos sólidos, dos títulos de autorização de uso da água e respectivo titular, assim como outras licenças ambientais pertinentes, a menção do processo de tratamento associado, a identificação e endereço das entidades responsáveis pela emissão dos títulos, fiscalização e inspecção.

2- Sempre que o destino final das águas residuais ou dos resíduos sólidos seja assegurado por entidade diferente, deverão ser ambas mencionadas.

Artigo 56º

Caracterização e diagnóstico do estado e utilização da água

O Governo publica, em cada quadriénio, o “Relatório de caracterização e diagnóstico do estado e utilização da água”, incorporando a informação, estudos, cartografia e outros elementos necessários à instrução do processo de planeamento da água aos diversos níveis e âmbitos geográficos, incluindo a descrição e cartografia da ocupação do domínio público hídrico e das zonas adjacentes, assim como a avaliação física e financeira do cumprimento e resultados de planos, programas e medidas relativos à água e o relatório de cumprimento da legislação de protecção da água e suas utilizações.

Artigo 57º

Inventário de sistemas de abastecimento de água e águas residuais

O Governo publica, em cada quadriénio e intercalado com o “Relatório de caracterização e diagnóstico do estado e utilização da água”, o “Inventário de sistemas de abastecimento de água e águas residuais” incorporando o inventário das infra-estruturas, níveis de atendimento, origens e meio receptor, e mais informação, estudos e outros elementos necessários á caracterização e diagnóstico do estado abastecimento de água urbano e doméstico, assim como da recolha, tratamento e destino final de águas residuais e lamas.

Artigo 58º

Publicações

1- O “Anuário da Água”, o “Relatório de caracterização e diagnóstico do estado e utilizações da água”, o “Inventário de sistemas de abastecimento de água e águas residuais” e a “Lista de entidades” são públicos e deverão ser acessíveis fácil e gratuitamente por qualquer cidadão.

2- Será facultada cópia a qualquer pessoa ou entidade que o requeira, por preço não superior ao duplo do suporte material da cópia, acrescido dos custos de porte.

3- É atribuição da Administração Geral da Água (AGA) a elaboração e publicação dos “Anuários da Água” e dos “Relatórios de caracterização e diagnóstico do estado e utilizações da água”, dos “Inventários de sistemas de abastecimento de água e águas residuais” e da “Lista de entidades”, sendo as entidades públicas ou privadas detentoras de informação pertinente obrigadas a disponibilizá-la atempadamente e nos formatos adequados. 

Artigo 59º

Plano Nacional da Água e Planos de Bacia Hidrográfica

1- Os principais planos são o Plano Nacional da Água e os Planos de Região Hidrográfica, cuja proposta é atribuição do Governo e são aprovados por lei da Assembleia da República.

2- O Plano Nacional da Água e os Planos de Região Hidrográfica são vinculativos para a administração central e definem, nomeadamente, as medidas de iniciativa pública assim como as limitações à autorização de utilização da água e de ocupação do domínio público hídrico durante o período em que o plano se encontra em vigor.

3- O Plano Nacional da Água tem expressão explícita no Orçamento do Estado e nas Grandes Opções do Plano.

4- Os Planos de Bacia Hidrográfica incluem obrigatoriamente o planeamento da autorização de utilização da água e do domínio público hídrico.

5- São objecto dos Planos de Bacia Hidrográfica e só nessa sede podem ser decididas, as medidas com efeitos de perturbação do domínio público hídrico significativos e prolongados no tempo, incluindo obrigatoriamente transferências de água entre bacias hidrográficas, construção de grandes barragens e autorizações com períodos de vigência superiores a doze anos, de utilização da água ou de ocupação do domínio público hídrico.

6- O Estado deverá promover no âmbito das relações internacionais as acções necessárias para assegurar a consistência de planeamento nos Planos de Bacia Hidrográfica respeitantes a bacias hidrográficas partilhadas com Espanha, incluindo sistemas aquíferos partilhados.

7- Os conteúdos, vigência, horizonte, processos de elaboração, aprovação, alteração e revisão intercalar dos Planos são determinados em lei própria.

Capítulo VIII

Regime Económico e Financeiro

Artigo 60º

Princípio geral da economia da água

1- A água, sendo um recurso estratégico com papel estruturante no sistema produtivo nacional, é essencial e insubstituível à vida e à produção material de bens indispensáveis, à satisfação das necessidades humanas, é finita e vulnerável e o seu potencial de utilização está estritamente associado ao uso energético e é limitado no espaço e no tempo.

2- Incumbe ao Estado gerir as intervenções e utilizações da água na precaução de que se torne causa de estrangulamentos ao sistema produtivo, seja por indisponibilidade do recurso ou por requisitos energéticos insustentáveis de transporte ou purificação.

3- A política da água, as decisões de administração e gestão da água, e a escolha entre utilizações e soluções alternativas são instruídas com análise macro-económica dos fluxos materiais e fileiras produtivas, considerando obrigatoriamente o médio e longo prazo, devendo maximizar a eficiência de uso dos recursos hídricos e energéticos na produção dos bens socialmente mais necessários, sem pôr em causa a sua produção futura.

4- A análise económica da água inclui a análise económica da aplicação de leis e normas antes da aprovação.

Artigo 61º

Utilização privada do Domínio Público Hídrico

1- É interdito o comércio da água circulante, assim como quaisquer formas directas ou indirectas de transacção, e não lhe podendo ser atribuído preço.

2- É interdito ao Estado e aos particulares qualquer tipo de comércio, transacção, mercado ou negócio de cotas de poluição, ou de permissão de qualquer outra forma de degradação do domínio público hídrico.

3- A autorização de utilização privada da água circulante destina-se exclusivamente a possibilitar actividades com relevância sócio-económica e cuja viabilidade implica efeitos negativos nas funções da água circulante, não conferindo direito de propriedade ao utilizador a quem é concedida, assim como não lhe confere quaisquer “direitos de poluição” ou de qualquer outra forma de perturbação do domínio público hídrico.

4- Cabe ao utilizador reduzir os efeitos negativos da utilização e é tarefa do Estado incentivar essa minimização, podendo nesse sentido aplicar taxas, como medida excepcional indutora de comportamentos de utilizadores da água, exigindo análise prévia dos efeitos macroeconómicos.

5- As taxas referidas no número anterior são objecto de regulamentação específica para cada tipologia de utilização e incidirão sobre a incorporação no meio hídrico de determinadas substâncias cuja eliminação na água tenha sido estipulada por lei como prioritária, dentro dos valores estipulados no título de autorização de utilização.

6- A Assembleia da República poderá determinar em casos especiais o alargamento do regime de taxas aplicáveis a outros efeitos particularmente gravosos nas funções protegidas da água.

7- A autorização, devidamente regulamentada, de utilizações da água ou autorização da ocupação do domínio hídrico para actividades lucrativas, cujo rendimento não resulte exclusiva ou maioritariamente do trabalho do utilizador, poderá determinar a obrigação de disponibilização de funções protegidas, a comparticipação em investimentos de interesse público no domínio da água, ou a outra forma de compensação que deverá traduzir-se numa melhoria material do domínio público hídrico.

8- Em caso algum as verbas resultantes das taxas previstas nos números anteriores podem ser fonte de receita de entidades intervenientes nos processos de autorização ou fiscalização da utilização do domínio hídrico, nem, de qualquer forma, poderão constituir incentivos à menor preservação do domínio público hídrico ou das funções protegidas da água. 

Artigo 62º

Orçamentação

1- Todos os instrumentos de gestão, planeamento e administração da água têm correspondência no Orçamento do Estado.

2- O orçamento e os quadros de pessoal das entidades da administração da água, são dimensionados de acordo com as suas atribuições e competências. 

Capítulo IX

Participação, Informação e Responsabilização

Secção I

Participação, Informação e Responsabilização  

Artigo 63º

Participação

1- As decisões sobre a água são do interesse comum, pelo que os órgãos de consulta e os processos de participação devem ser abrangentes de todos os cidadãos e devem conformar-se ao respeito pelo princípio da proporcionalidade na divulgação da informação, na orientação das consultas e na ponderação das contribuições, tendo em conta:

a) A participação atempada dos cidadãos na preparação, alteração ou revisão dos planos e programas que definam as políticas de utilização e protecção da água;

b) A informação sobre quaisquer propostas de planos ou programas, ou da sua alteração ou revisão e que informação sobre tais propostas seja colocada à sua disposição, incluindo, nomeadamente, a informação sobre o direito de participar nas tomadas de decisão e sobre as autoridades competentes a quem podem ser enviadas observações;

c) O direito de manifestar as suas observações antes da tomada de decisões sobre planos e programas;

d) A informação sobre as decisões tomadas e as razões em que se baseiam essas decisões, incluindo a informação sobre o processo de participação do pública.

2- A participação pública obedece aos princípios da publicidade, da transparência, da igualdade, da justiça e da imparcialidade.

Artigo 64º

Responsabilidade

1- Aquele que prejudicar, causando danos, aumento de riscos ou diminuição da qualidade de uso da água por terceiros em consequência das acções que exerce ou promove de alteração do estado de qualidade, no regime hidráulico ou hidrológico deve custear integralmente as medidas necessárias à recomposição da condição que existiria caso a actividade lesiva não se tivesse verificado, ou a correspondente indemnização, no caso de tal se tornar impossível, sem prejuízo da responsabilidade civil e criminal.

2- Exceptuam-se do número anterior os danos provocados a terceiros claramente descritos no documento de autorização da utilização, ou que tenham previamente sido objecto de uma compensação pelo dano ou aumento de exposição ao risco.

Artigo 65º

Responsabilidade do utilizador

1- A autorização de utilização da água não isenta de responsabilidade civil e criminal os utilizadores, excepto quanto às consequências detalhadamente explicitas no processo de autorização de utilização, desde que com designação dos sujeitos afectados.

2- No âmbito de averiguações quanto à responsabilidade prevista no número anterior é desencadeado um processo paralelo de inquérito de responsabilidade do Estado.

Artigo 66º

Responsabilidade no exercício de actividades de suporte

à administração da água ou de prestação de serviços hídricos

1- O exercício de actividades privadas de suporte à administração da água ou de prestação de serviços no âmbito do objecto da presente lei é feita mediante a concessão de alvará, emitido pelas entidades competentes, que será automaticamente revogado em caso de prevaricação ou condenação em processo de crime ambiental, contra a saúde pública, indução de riscos ou prejuízo de terceiros, corrupção activa ou passiva, ou outro crime relacionado com o exercício da actividade.

2- Incluem-se nas actividades sujeitas a alvará: a exploração de laboratórios de análises de água; estudos hidrológicos; avaliação de cheias e de áreas inundáveis; projecto de barragens; construção de barragens; projecto, construção ou exploração de ETA, de ETAR e de ETARI; estudos de impacte ambiental, designadamente impactes relacionados com a água; monitorização da quantidade e qualidade da água; exploração, utilização, projecto ou comercialização de produtos e equipamentos para tratamento, armazenamento e transporte de água; exploração de empreendimentos: abrangidos por legislação de processo de impacte ambiental ou manuseamento de “substâncias perigosas”; actividades estipuladas em legislação sobre substâncias prioritárias; comercialização de fertilizantes, pesticidas ou de outras substâncias perigosas; todas as actividades que contribuam directa e significativamente para a prestação de serviços de água.

3- O desaparecimento de condições para obtenção de alvará, nos termos do nº 1, é abrangente de todas as filiais, sucursais ou outras ramificações do mesmo grupo económico da empresa prevaricadora actuando no domínio da água.

Artigo 67º

Legislação Complementar

A participação, informação e responsabilização dos cidadãos são objecto de legislação complementar, incluindo, nomeadamente os processos de consulta pública, as iniciativas de participação, a protecção dos interesses difusos, a actuação dos cidadãos na defesa do ambiente, a garantia do acesso ao direito e dos direitos de utilização da água, e os processos de fiscalização da Administração do domínio público hídrico.

Secção II

Alta Autoridade da Água

Artigo 68º

Alta Autoridade da Água

A Alta Autoridade da Água, adiante designada por AAA, é um órgão independente que funciona junto da Assembleia da República, dotado de autonomia administrativa.

Artigo 69º

Atribuições

Incumbe à AAA:

a) Garantir o direito à água;

b) Assessorar a Assembleia da República na fiscalização da administração da água;

c) Assegurar o exercício do direito à informação das matérias relevantes que digam respeito à água;

d) Providenciar pela isenção e pelo rigor da informação;

e) Zelar pela independência de todos os órgãos e entidades envolvidas perante os poderes económicos;

f) Assegurar a isenção dos processos de licenciamentos a emitir pela Administração;

g) Assegurar a observância dos fins genéricos e específicos da gestão da água;

h) Assumir um papel de concertação nos vários interesses em causa;

i) Fiscalizar e controlo dos processos de participação pública nas matérias relativas à água;

j) Publicitar informações que relevem para o cidadão, incluindo a qualidade de água para o abastecimento;

k) Divulgar informações, no âmbito da cooperação e de acordos internacionais, que directa ou indirectamente tenham impacto nacional;

l) Fiscalizar o cumprimento da legislação em vigor e dos normativos de monitorização.

Artigo 70º

Competências

 Compete à AAA, para prossecução das suas atribuições:

a) Garantir a participação activa de todas as partes interessadas na execução da Directiva 2000/60/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Outubro de 2000, que “Estabelece um quadro de acção comunitária no domínio da política da água”;

b) Garantir em relação a cada região hidrográfica e plano de gestão de bacia hidrográfica, que sejam publicados e facultados ao público, incluindo utilizadores, para eventual apresentação de observações os seguintes elementos:

-Um calendário e um programa de trabalhos para a elaboração do plano, incluindo uma lista das medidas de consulta a tomar, pelo menos três anos antes do início do período a que se refere o plano de gestão;

-Uma síntese intercalar das questões significativas relativas à gestão da água detectadas na bacia hidrográfica, pelo menos dois anos antes do início do período a que se refere o plano de gestão;

-Projectos do plano de gestão de bacia hidrográfica, pelo menos um ano antes do início do período a que se refere o plano de gestão.

c) Garantir um período mínimo de seis meses para a presentação de observações escritas sobre os documentos referidos na alínea anterior, a fim de possibilitar a participação activa e a consulta;

d) Arbitrar os conflitos suscitados entre titulares de direitos relativos à água;

e) Pronunciar-se sobre as iniciativas legislativas que tratem de matéria relacionada com as suas atribuições;

f) Sugerir à Assembleia da República ou ao Governo as medidas legislativas ou regulamentares que refute necessárias à observância do principio constitucional de que incumbe ao Estado adoptar uma politica nacional da água, com aproveitamento, planeamento e gestão racional dos recursos hídricos;

g) Emitir pareceres por iniciativa própria ou por solicitação sobre quaisquer matérias no âmbito das sus atribuições;

h) Emitir parecer vinculativo relativo ao estabelecimento e regulação de taxas de utilização da água e infra-estruturas;

i) Exercer as funções relativas à publicitação de informação relevante no âmbito das suas atribuições;

j) Apreciar mediante iniciativa própria, ou mediante participação e no âmbito das suas atribuições, os comportamentos susceptíveis de configurar violação das normas e dos princípios constitucionais e legais aplicáveis, podendo patrocinar acção judicial;

k) Promover as acções de estudo, pesquisa, divulgação e formação que considere necessárias ou indispensáveis ao cumprimento das suas obrigações.

Artigo 71º

Composição

1- A Alta Autoridade da Água é constituída por:

a) Uma personalidade de integridade e mérito reconhecidos e de reconhecida competência na matéria, eleito pela Assembleia da República, que preside;

b) Cidadãos de reconhecido mérito, a designar pela Assembleia da República, integrados em lista e propostos um por cada grupo parlamentar;

c) Três membros designados pelo Governo;

d) Um membro designado pelo Governo Regional dos Açores;

e) Um membro designado pelo Governo Regional da Madeira;

f) Três membros designados pela Associação Nacional dos Municípios Portugueses;

g) Três membros designados pela Associação Nacional de Freguesias;

h) Dois membros designados por cada Conselho da Região.

2- A Alta Autoridade da Água consulta obrigatoriamente interessados em função das matérias em análise, designadamente as seguintes entidades:

a) Associações, cooperativas ou grupos de cidadãos que representem os utilizadores;

b) Movimentos de utentes dos serviços públicos;

c) Associações de defesa do ambiente;

d) Associações de defesa da água;

e) Estruturas sindicais representantes dos trabalhadores;

f) Liga dos Bombeiros Portugueses;

g) Serviço Nacional de Protecção Civil.

Artigo 72º

Incapacidades e incompatibilidades

1- Não podem ser membros da AAA os cidadãos que não se encontrem em pleno gozo dos seus direitos civis e políticos.

2- Os membros da AAA ficam sujeitos ao regime de incompatibilidades legalmente estabelecido para os titulares de altos cargos públicos.

Artigo 73º

Dever de colaboração

É dever de todas as entidades públicas, designadamente do Ministério do Ambiente, através do INAG e das ARH e entidades privadas, dispensar toda a colaboração à AAA para o cabal exercício das suas funções.

Artigo 74º

Conselhos Consultivos

O Conselho Nacional da Água, os Conselhos de Bacia Hidrográfica e a Comissão de Gestão de Albufeiras mantêm as suas funções em estreita colaboração com a AAA, até que seja reestruturado o seu funcionamento.

Artigo 75º

Posse

Os membros da AAA tomam posse perante o Presidente da Assembleia da República, no decurso dos 10 dias seguintes ao da publicação da respectiva designação na 2ª Série do Diário da República.

Artigo 76º

Duração do mandato

O mandato dos membros da AAA tem a duração de quatro anos.

Artigo 77º

Regulamentação

A Alta Autoridade da Água será objecto de lei própria definidora do seu funcionamento e do estatuto dos seus membros.

Capitulo X

Do contexto legislativo, das infracções e sanções

e da competência dos tribunais

Artigo 78º

Acções constitutivas de infracção

O regime especial de contra-ordenações, embargos administrativos e sanções acessórias pelas infracções às normas à presente lei e dos diplomas nela previstos é definido em diploma complementar.

Artigo 79º

Infracções

1- As infracções classificam-se em leves, graves ou muito graves, atendendo ao grau de violação da lei e normas, à sua repercussão no estado e funções da água circulante, e especialmente nas funções protegidas, à sua repercussão no que respeita à segurança das pessoas e bens e ao prejuízo no gozo dos seus direitos, à sua repercussão nas utilizações da água, aos danos causados no domínio público hídrico, ao grau de reparação e duração da permanência dos efeitos, à previsibilidade dos efeitos, à sua responsabilidade, negligência ou má fé, participação e benefício ou vantagem obtida.

2- A fixação da coima é determinada em função dos critérios definidos no número anterior, atendendo ainda a que deverá ser fortemente dissuasiva do incumprimento do normativo de protecção da água e das funções dela dependentes.

3- Podem ser definidas no diploma complementar sanções pecuniárias compulsórias, sem prejuízo da responsabilidade criminal.

4- Para garantir a eficácia das medidas tomadas pode adoptar-se, com carácter provisório, procedimentos cautelares considerados necessários para evitar a continuação da actividade infractora.

5- Se o resultado da infracção cometida se estender a outra entidade numa área de jurisdição distinta daquela onde foi cometida, deverá ser dado conhecimento à entidade competente para a instrução do respectivo processo.

Artigo 80º

Tribunal competente

Pertence à jurisdição de contencioso administrativo o conhecimento destas infracções tendo em conta a área em que é cometida.

Capítulo XI

Disposições finais e transitórias

Artigo 81º

Alta Autoridade da Água

1- A Assembleia da República aprovará, no prazo de 90 dias após a publicação da presente lei, a regulamentação necessária ao funcionamento da Alta Autoridade da Água.

2- A AAA assumirá funções nos 60 dias seguintes à publicação do Regulamento referido no número anterior.

Artigo 82º

Código da Água

1- A Alta Autoridade da Água, coadjuvada por especialistas designados pela Assembleia da República, elabora um projecto de Código da Água a apresentar no prazo de dois anos após a sua constituição, que procede à unificação, sintetização e harmonização da legislação sobre o direito da água.

2- O Código da Água é aprovado pela Assembleia da República, após um período não inferior a seis meses de consulta pública.

Artigo 83º

Regime transitório

As alterações institucionais, legislativas, normativas e regulamentares necessárias à aplicação plena da lei, deverão completar-se num período não superior a quatro anos após a publicação da presente lei, durante o qual vigorará um regime transitório de adaptação do edifício legislativo.

Artigo 84º

Regime transitório de utilização da água do domínio público hídrico e áreas adjacentes

1- Durante o regime transitório mantém-se em vigor as licenças e concessões de utilização do domínio hídrico emitidas em conformidade com o Decreto-Lei nº46/94 de 22 de Fevereiro, que tiverem sido emitidas em data anterior à publicação da presente lei.

2- O período de validade de renovações ou novos títulos de autorização de utilização do domínio hídrico emitidos durante o regime transitório, não pode ser superior a cinco anos.

Artigo 85º

Regime transitório dos instrumentos do planeamento

Até à aprovação de novos planos mantêm-se os que estão actualmente em vigor, em tudo o que não contrarie a presente lei, designadamente, o Plano Nacional da Água, os Planos Regionais e os Planos de Bacia Hidrográfica. 

Artigo 86º

Alterações

1- O Governo apresentará à Assembleia da República num prazo não superior a 60 dias após a publicação da presente lei, devidamente revistos em conformidade com o nela estipulado, os diplomas cuja alteração seja urgente incluindo, designadamente:

a) O Decreto-Lei nº 478/71, de 5 de Novembro, que revê, actualiza e unifica o regime jurídico dos terrenos do domínio público hídrico, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto-Lei nº 53/74 de 15 de Fevereiro, pelo Decreto-Lei nº 89/87 de 26 de Fevereiro e pela Lei nº16/2003 de 4 de Junho;

b) O Decreto-Lei nº 45/94, de 22 de Fevereiro, sobre o “Planeamento dos recursos hídricos”;

c) O Decreto-Lei nº 46/94 de 22 de Fevereiro, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 234/98 de 22 de Junho, sobre o “Regime de utilização do domínio hídrico”;

d) O Decreto-Lei nº 236/98, de 1 de Agosto, que “ Estabelece normas, critérios e objectivos de qualidade com a finalidade de proteger o meio aquático e melhorar a qualidade das águas em função dos seus principais usos”.

2- Esta revisão deverá simultaneamente assegurar a transposição completa da Directiva nº 2000/60/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Outubro de 2000, que “Estabelece um quadro de acção comunitária no domínio da política da água”.

Artigo 87º

Alterações ao direito vigente

De acordo com as disposições da presente lei, proceder-se-á à revisão das normas estipuladas pelo Código Civil, pelo Código Penal e no âmbito do Direito Administrativo, assim como de outras disposições normativas e regulamentares, por forma à harmonização e aplicação efectiva de toda a legislação sobre o direito da água.

Artigo 88º

Norma revogatória

1- São revogados os seguintes diplomas:

a) Decreto nº 5787 – IIII, de 10 de Maio de 1919 –“Lei da Água”;

b) Os artigos 1385º a 1402º do Código Civil –“Propriedade das águas”;

c) O Decreto - Lei nº 47/94, de 22 de Fevereiro –“Regime económico-financeiro”.

2- São revogadas as disposições que contrariem a presente lei, nomeadamente sobre a delimitação do domínio público hídrico e o regime de utilização da água e do domínio público hídrico.  

Artigo 89º

Legislação complementar

A presente lei é regulada por legislação complementar prevista na presente lei, no prazo de seis meses, quando outro prazo não esteja indicado.

Artigo 90º

Entrada em vigor

A presente lei entra em vigor com a aprovação do Orçamento do Estado subsequente à sua aprovação.

 

Assembleia da República, em 23 de Junho de 2005

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