Debate sobre a produção nacional
Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
A situação política que vivemos tem uma causa directa e clara, a saber, a crise económica e social, que tem no seu centro o elevadíssimo endividamento externo do País. Endividamento que é o outro lado do défice produtivo acumulado.
É a contrapartida de um persistente e volumoso défice da balança comercial, do desequilíbrio entre o que exportamos e o que importamos. Dívida que os nossos credores, no contexto da crise financeira internacional, isto é, da crise do capitalismo, fizeram agora explodir e, sobretudo, estão a aproveitar.
Este é o nó górdio da economia portuguesa, o défice de produção — o que, aparentemente, é hoje um diagnóstico consensual. Dívida e défice de produção são o evidente resultado acumulado das políticas e dos partidos que dirigiram o País nos últimos 35 anos.
Srs. Deputados, a situação em que o País hoje se encontra não é fruto do acaso, de qualquer fatalidade ou fado, de qualquer pobreza congénita do País ou resultado da idiossincrasia dos portugueses, como alguns insistem em afirmar.
A liquidação dos sectores produtivos em Portugal ao longo dos últimos 35 anos, desde o início da recuperação capitalista e latifundiária, desenvolveu-se com um enorme e mistificatório arsenal de argumentos e teses, tendo por objectivo a justificação das opções e decisões políticas estratégicas (e medidas de política) de sucessivos governos do PSD, do PS e do CDS-PP.
Tratou-se de justificar privatizações e liberalizações, a adesão à CEE/União Europeia e à União Económica e Monetária/moeda única, em particular o apoio a políticas comuns, como a Política Agrícola Comum, a Política Comum de Pescas, o Pacto de Estabilidade e Crescimento, etc., e as suas diversas revisões.
Uma tese, hoje submergida face aos picos de preços atingidos por produtos alimentares estratégicos, como foi o caso dos cereais, em 2008 e nos dias que correm, era a de que não faria sentido, por razões dos nossos elevados custos de produção e dimensão do nosso mercado interno, produzi-los em Portugal, podendo ser importados a preços mais baixos da Europa, acabando por se pôr causa a necessidade de o País ter reservas estratégicas de alimentos e a defesa da própria soberania alimentar!
Foi posto em causa o paradigma de «fileira produtiva».
Não se defendeu a integridade de fileiras verticais, como no sector têxtil, com a liquidação de inúmeras unidades de fiação e tecelagem, enquanto se expandiram os subsectores de baixo valor acrescentado, com a confecção e o vestuário.
Multiplicaram-se, com forte apoio estatal, as unidades de multinacionais especializadas em segmentos curtos da cadeia de valor, como é o caso paradigmático da electrónica e, muito em particular, das cablagens, altamente sensíveis à instabilidade de preços no mercado mundial e às estratégias das «casas-mães» e às deslocalizações.
É caso de estudo, exemplar, a Qimonda, nascida como um investimento da Siemens, onde foram despejados milhões de euros de fundos públicos e que deixou como «herança» centenas de desempregados à custa da segurança social!
Por outro lado, as políticas de integração europeia do PS, do PSD e do CDS-PP sempre olharam para o mercado «único» europeu, fortemente «oleado» com a criação da moeda única a partir de 2001, como susceptível de produzir uma «divisão europeia do trabalho», equilibrada e solidária, capaz de produzir uma convergência das economias reais.
Nem a brutal argumentação desenvolvida pela Comissão Europeia em defesa da criação do euro, esclarecendo que a moeda única iria dividir os europeus entre «picassos», produtores de alto valor acrescentado, e «pintores da construção civil», de baixo valor acrescentado e mão-de-obra barata, os fez acordar do sonho federalista…
O euro foi um golpe brutal na competitividade interna e externa de muita da nossa produção.
Hoje, enfrentamos o desastre da nossa agricultura e das nossas pescas, decorrentes da PAC e da Política Comum de Pescas, e das respectivas reformas.
Enfrentamos a ruína das explorações agrícolas familiares, desertificando aldeias e o mundo rural, forte contributo para os dramáticos incêndios florestais que, ano após ano, devoraram um terço da floresta portuguesa. Sofremos a liquidação da produção de beterraba sacarina em Portugal e, mesmo, o fim da produção de tabaco. E é dos governos PS e PSD/CDS o acordo dado, na União Europeia, à liquidação do sistema de quotas leiteiras.
Também no golpear da estrutura produtiva portuguesa têm um lugar de destaque os grupos monopolistas, que se desenvolveram cavalgando as privatizações e que seriam, no dizer de um primeiro-ministro do PS, «os elementos racionalizadores das transformações económicas do País, da modernização e de um novo modelo de especialização»!
A lógica dos novos grupos reconstituídos foi — e é — investir dominantemente em sectores de elevada rendibilidade, de rápido retorno e de reduzida ou nula concorrência, actuando sobretudo no mercado interno, abrigados da concorrência externa, isto é, na produção de bens e serviços ditos não transaccionáveis.
Simultaneamente, desembaraçaram-se, com poucas excepções, de empresas industriais e sectores produtivos, que lhes foram parar à mão pelas privatizações, quer liquidando-as, pura e simplesmente — como na construção naval, na química de base, na metalomecânica pesada —, quer vendendo-as ao capital estrangeiro.
Srs. Deputados, depois de tudo isto, não deixa assim de ser risível que só quando uma profunda crise do sistema capitalista internacional revela, põe a nu os brutais desequilíbrios e défices da economia nacional alguns tenham descoberto os défices produtivos. Os mesmos que foram e são responsáveis pelas políticas que conduziram o País à situação de descalabro em que se encontra.
Todavia, percebemos bem a enorme vantagem política de tal visão: anulam-se os responsáveis e a responsabilidade política — dos partidos, dos governos, dos seus ministros e Deputados — e, perante ou após cada eleição, surge uma alternância partidária, limpa de pecados originais, como se passada fosse por pia baptismal, destinada a lavar e a absolver as responsabilidades passadas, pronta a salvar a Pátria!
Neste debate, tem ainda toda a utilidade lembrar que as políticas dos PEC 1, 2 e 3, propostas pelo Governo do PS e suportadas pelo PSD, deram total continuidade às políticas que, ao longo dos últimos anos, sempre privilegiaram a atenção ao défice orçamental, para maior prejuízo do défice produtivo e do emprego.
Como a política inscrita no PEC 4, anteontem recusada por esta Assembleia, a ser concretizada, constituiria uma nova e brutal agressão ao já debilitado tecido produtivo nacional, pelas suas propostas de privatização e liberalização, por mais cortes no investimento público, pelo agravamento de impostos como o IVA, a par de muitas outras malfeitorias económicas e sociais.
Srs. Deputados, será também oportuno sublinhar que não bastará mudar os gestores do PEC sob a batuta de Bruxelas. É absolutamente estranho que o Presidente do PSD, do partido que anteontem abjurou do PEC nesta Assembleia, já ontem tenha estado em Bruxelas a jurar cumprir e fazer cumprir o PEC, pedindo as bênçãos da Sr.ª Merkel, do BCE, etc.
Percebemos agora melhor por que razão o PSD não apresentou as alternativas ao PEC do Governo PS. Elas são as do Governo.
Para estes partidos nada conta. É irrelevante a vontade dos representantes do povo português votada nesta Assembleia. Tais comportamentos são completamente inaceitáveis, manifestação de uma insuportável subserviência e, fundamentalmente, uma ofensa à dignidade de um País independente e soberano.
Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
A alternativa que se coloca ao País não é o PEC, qualquer que ele seja, nem o FMI. A alternativa que se tem de colocar é entre as políticas de desastre nacional que nos conduziram à actual situação e uma ruptura e mudança que abra caminho a uma política patriótica de esquerda que dê resposta aos problemas dos trabalhadores, do povo e do País.
É urgente a ruptura porque é urgente uma nova política para Portugal e para os portugueses, com a recuperação, pelo Estado democrático, do comando político do desenvolvimento, com a afirmação da propriedade social e do papel do Estado no quadro de uma economia mista, com a decidida valorização do trabalho e dos trabalhadores, com a dinamização dos sectores produtivos — agricultura, pescas, indústria — reduzindo o papel predador do sector financeiro, com o combate à gravosa e estrutural dependência externa do País.
(…)
Sr. Presidente,
Sr. Deputado Almeida Henriques,
Obrigado pelas muitas questões colocadas.
Sr. Deputado, gostaria de começar por dizer que não se trata de acreditar ou não no mercado. O problema é que todas as políticas conduzidas ao longo dos 35 anos, inclusive, por muitos governos do PSD, a que o Sr. Deputado pertence, conduziram a uma situação de uma economia completamente dominada por um conjunto de grupos monopolistas que controlam, dominam, guiam as políticas dos sucessivos governos, entre os quais o presente, como guiou a dos anteriores.
O Sr. Deputado está preocupado com a recessão da economia em 2011, porque atinge inevitavelmente a produção nacional. Mais uma vez, ela é um reflexo de mais um golpe na própria produção nacional. Mas, Sr. Deputado, a bancada do PSD viabilizou não só o PEC 1 e o PEC 2 como o PEC 3, que suportou um Orçamento que conduziu à recessão em que nos encontramos, mais uma vez.
Ao viabilizar o Orçamento do Estado, os senhores não tinham qualquer dúvida que a situação hoje, em 2011, ia ser de nova recessão económica, de nova redução da produção nacional, de mais desemprego, de novos cortes e agravamento dos problemas da generalidade do povo português.
O Sr. Deputado pergunta-me que fazer para revertermos esta situação, para revertermos políticas que consecutivamente conduziram o País a este brutal e enorme défice de produção, bem reflectido no saldo do nosso endividamento externo, já hoje superior ao PIB, ao total do valor da produção da riqueza nacional num ano. Sr. Deputado, o que gostaria de saber é o que os senhores propõem, porque nós, ainda ontem, apresentámos, nesta Assembleia, um projecto de resolução visando um conjunto de propostas alternativas para travar esse processo e inverter a situação.
Anteontem, os senhores não apresentaram qualquer solução. Ontem, ficámos a saber que afinal perfilham as opções do Governo, as opções do Partido Socialista, portanto, do PEC 4, que, inevitavelmente, conduzirá o País a um novo e mais profundo agravamento do seu défice de produção e de agravamento de todas as condições de vida do nosso povo.
(…)
Sr. Presidente,
Sr. Secretário de Estado das Pescas e Agricultura,
O Governo tem uma estranha, para não dizer «vesga», visão da produção nacional, reduzida à agricultura e às pescas, a que se acrescenta, naturalmente, a evidência da pouca importância que dão a este problema.
No entanto, valorizo a presença do Sr. Secretário de Estado das Pescas e Agricultura, Luís Vieira, porque, pela sua longa permanência nos ministérios da Agricultura, é a imagem da continuidade da política de direita do Partido Socialista no Governo e na política agrícola e da responsabilização do PS por algumas das mais graves decisões comunitárias contra a agricultura portuguesa.
Lembro-lhe, por exemplo, que foi num governo em que Capoulas Santos era ministro, no qual o senhor era também secretário de Estado, que foi aprovado, na Agenda 2000, o início do processo de desligamento das ajudas, ou seja, um instrumento de liquidação da produção nacional, que é hoje uma evidência.
Foi com esta Agenda 2000 que se iniciou o processo de liquidação das quotas leiteiras — outro grave problema que hoje enfrenta a agricultura nacional.
O Sr. Secretário de Estado fez depois parte, na anterior Legislatura, com o ministro Jaime Silva, do que poderíamos chamar uma verdadeira «equipa de emergência» para liquidar o que restava da agricultura portuguesa.
Não posso deixar de lembrar que foram os senhores que aceitaram a decisão de «aterragem suave» das quotas leiteiras, com o finalizar do processo das quotas leiteiras em 2015.
Foram os senhores que aceitaram a reforma da OCM (Organização Comum do Mercado) do vinho e a liberalização do plantio da vinha, que, a partir da data em que se consumar, significará a liquidação das melhores produções deste País.
Foram os senhores que aceitaram a liquidação total da produção de beterraba sacarina neste País, pondo em causa um vultuoso investimento do Estado, de mais de 50 milhões de euros, em Coruche.
Hoje, como sempre, o Sr. Secretário de Estado aparece ligado a uma política que nada resolveu e a defender o indefensável.
Sr. Secretário de Estado, quero colocar-lhe algumas questões muito concretas.
A Comissão de Agricultura visitou, no princípio desta semana, a região de Trás-os-Montes e Alto Douro, mais concretamente o Barroso e a Terra Quente Transmontana. Estivemos com produtores de raças autóctones, com produtores de vinho, em Valpaços, com os representantes de Trás-os-Montes ao nível do olival tradicional. O Sr. Secretário de Estado acredita que nem os Deputados do Partido Socialista foram capazes de defender a política do Governo, visto que apoiaram e aprovaram tudo o que foi dito contra a política do Governo em prejuízo desses sectores?
O Sr. Secretário de Estado falou da importância da produção de vinho no presente momento. É, sem dúvida nenhuma, um sector estratégico. No entanto, provavelmente, confunde os interesses de sete grandes empresas de vinhos deste País — que, aliás, estão a deslocalizar a sua produção para a Nova Zelândia, para a Austrália e para a América Latina — com a situação de milhares de viticultores deste País que vivem dias muito amargos, concretamente na região do Douro, com preços absolutamente de ruína, ou em Valpaços, como assistimos durante a visita da Comissão de Agricultura.