Intervenção de Paulo Raimundo, Secretário-Geral do PCP, Sessão Publica «A produção de cereais em Portugal e a soberania alimentar»

A produção de cereais em Portugal e a soberania alimentar

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Quero começar com uma saudação a todos vós, com um sincero agradecimento pelos contributos que aqui nos trouxeram neste tempo que ainda é de Festas, e com o reconhecimento de que, independentemente dos pontos de vista diversos que aqui expuseram, com as visões distintas de cada um e até, eventualmente contraditórias, é possível, assim o queiramos, ouvir-nos uns aos outros, reflectirmos sobre os problemas que afectam o nosso País e particularmente a produção nacional e mesmo apontar caminhos que nos unam.

Uma palavra ainda para as gentes deste belo concelho de Elvas, manifestando-lhes a nossa solidariedade perante os problemas acrescidos que implica a interioridade, com a garantia que lhes deixamos, contem com o PCP para assegurar o equilíbrio e a coesão territorial, este é um desígnio da política patriótica e de esquerda que propomos ao povo português.

Abordámos hoje uma matéria que tem estado no centro da preocupação de tantos portugueses nem sempre pelas melhores razões.

Abordámos primeiro, com a visita ao Pólo de Inovação de Elvas – Estação Nacional de Melhoramento de Plantas e agora com esta animada nossa conversa, a questão central da produção de cereais no nosso País.

Abordar a questão da produção de cereais é também abordar a questão da soberania e não só da soberania alimentar.

Sabemos como chegámos aqui, temo-lo denunciado, mas é necessário voltar a essa questão.

Como sabemos os cereais constituem uma importante base da alimentação do povo português e também sabemos que o País tem capacidade para os produzir. 

Não temos a ilusão de que estamos em condições de, amanhã, concretizar uma capacidade produtiva que nos torne totalmente independentes, mas a questão é, como sempre foi, qual o caminho, qual a opção que se tem seguido e se segue? 

O nosso País tem uma dependência externa alarmante, particularmente grave no trigo, onde a produção nacional não chega para os primeiros 15 dias do ano, mas que é igualmente preocupante na cevada e na aveia, que cresce para apenas pouco mais de 30% no caso do milho e para cerca de 60% no caso do arroz.

Esta dependência é tanto mais grave, quanto ela afecta não apenas a alimentação humana, mas também a alimentação animal, outro importante pilar da dieta nacional.

O elemento de dependência externa é ainda mais preocupante, quando os últimos anos mostram, com toda a clareza, a vulnerabilidade do comércio externo, sujeito aos humores de um vulcão na Islândia que paralisa os céus da Europa, de um navio que se atravessa no Canal do Suez impedindo, durante semanas, o tráfego marítimo, de uma pandemia que bloqueia grande parte das trocas comerciais, das guerras que impedem sementeiras e colheitas e condicionam o negócio, das sanções sob os mais variados pretextos, ou dos bloqueios, sem qualquer pretexto.

Uma dependência que se soma a outras em áreas tão estratégicas quanto a batata ou a carne de bovino, que se traduz, no seu conjunto, numa balança alimentar externa negativa em mais de 3,8 mil milhões de euros, anuais.

Uma dependência intolerável e insustentável  que põe em causa, não apenas a soberania alimentar mas até a própria segurança nacional. 

Não o dizemos agora pela primeira vez. 

Não queremos espalhar o medo ou o pânico. 

Mas não podemos ficar calados perante um rumo que, a cada novo anúncio de planos, medidas e apoios, se agrava ainda mais. 

Já em 2011, a então ministra Assunção Cristas se dizia preocupada com a maior redução da produção de sempre (na altura) de cereais. 

Em 2013 dizia que o regadio era uma oportunidade para os cereais. Em 2014 dizia que a cultura do milho era um caso de sucesso.

Em 2017, já com o Governo minoritário do PS, foi criado o Grupo de Trabalho para a promoção da produção nacional de cereais.

Em Janeiro de 2018 foi entregue ao Ministro da Agricultura a Estratégia Nacional para a promoção do desenvolvimento da cultura e produção nacional de cereais.

Definia-se então “um horizonte temporal de cinco anos para a implementação desta estratégia” e estabeleceu-se “um conjunto de metas em termos de aumento do grau de auto-aprovisionamento, com vista a atingir um grau geral de auto-aprovisionamento em cereais de 38%, correspondendo 80% ao arroz, 50% ao milho e 20% aos cereais praganosos.

Com tanto plano, chegámos à campanha de 2022 com a menor área de cereais semeada desde que há registos.  

A verdade é que, ao longo das últimas décadas, a mando de Bruxelas e de certos interesses no País, sucessivos Governos de PS, do PSD e do CDS se dedicaram a implementar uma política agrícola nacional, decalcada da Política Agrícola Comum e indo muitas vezes mais longe do que ela impunha, assente nos valores da competitividade, da produtividade, da escala, da concentração, da produção para o mercado externo e atravessada pela ideia peregrina de que o que fosse produzir mais barato lá fora devia ser abandonado cá dentro. 

Este caminho levou à destruição de mais de 400 mil explorações agrícolas, e ao desaproveitamento de milhares de hectares de terras, que são hoje pastagens permanentes, onde antes havia culturas várias.

Uma Política Agrícola Comum, com as suas sucessivas reformas, que foram sempre o espelho dos compromissos de ferro de PS, PSD e CDS com a integração capitalista na União Europeia, tal a convergência na sua aprovação. Que apenas favoreceram os países do Norte e do Centro da Europa. Quem saiu a ganhar com o desligamento das ajudas decretado e defendido por muitos que hoje mordem a língua, e pedem de volta a ajuda ligada no início desde século? A situação de hoje mostra bem que não foram os portugueses.

Estiveram todos de acordo em pagar para não se produzir, em pagar para se arrancarem vinhas e olivais e continuam hoje a estar de acordo em pagar aos senhores do grande agronegócio sem a obrigação de se produzir alimentos.

Estas opções têm marcadas a ferro quente as suas responsabilidades pela redução da produção de cereais, não apenas aqui no Alentejo, mas em tantas outras regiões do nosso País, hoje pasto para incêndios, cada ano mais brutais.

Durante anos, a cada aviso, a cada chamada de atenção, para não terem que discutir seriamente o problema, acenavam com a campanha do trigo dos tempos do fascismo como se alguém propusesse a repetição dos erros então cometidos. 

Dizem uns que o País não tem condições para a produção de cereais. Dizem outros que as produtividades não são suficientemente atractivas.

Nós queremos lembrar daqui duas verdades. 

A primeira é a de que a experiência dos tempos da Reforma Agrária nos campos do Sul comprova que foi possível, num curto intervalo de tempo, fazer crescer significativamente a produção de cereais, introduzindo novas espécies e técnicas produtivas. 

Experiência não isenta de erros, é certo, mas que foi ceifada pela precoce destruição dessa notável conquista de Abril, também pelo que mostrou do que se pode fazer, havendo vontade e determinação.

A segunda é que quando se trata de alimentar o nosso povo o que primeiro há que medir não são as produtividades e o lucro privado, antes são os interesses nacionais que é preciso garantir.

E é essa exactamente a primeira questão que se coloca quando questionados sobre o que fazer para alargar a produção de cereais em Portugal.

É indispensável garantir que se altera o paradigma de pensar a produção de cereais em função dos interesses particulares deste ou daquele agricultor, ou dos seus lucros imediatos, para se pensar nela em função da necessidade de alimentar o nosso povo, seja em que circunstâncias for.

Isso implica reflexão, estudo, planeamento, apoios e determinação. 

O PCP vem propondo, nos últimos anos, a implementação de uma política assente nesses princípios que tem sido sucessivamente chumbada por PS, PSD e CDS, a que agora se juntam os seus sucedâneos Chega e IL.

Uma política que assegure a reflexão e o estudo sobre os melhores terrenos para a produção de cereais e que assuma um planeamento que impeça que eles continuem a ser ocupados por culturas permanentes que rapidamente esgotarão as terras.

Que assegure o estudo e a reflexão sobre as melhores espécies, as mais adaptadas e capazes de enfrentar novas realidades climatéricas e sobre as novas técnicas de produção que impliquem a utilização do regadio, designadamente nos cereais de inverno. 

Como hoje aqui foi exposto, o recurso a espécies autóctones, experimentadas, resistentes ao clima e adaptadas às condições do solo tem de ser um caminho.

Uma política que assegure apoios compensadores ligados à produção, promovendo e discriminando positivamente a pequena e média agricultura e a agricultura familiar, com estabilidade nos apoios e com a redução da burocracia, o que implica desde logo rever a PAC.

Mas também rever o PEPAC, que ainda mal viu a luz do dia, mas onde desde já são evidentes os problemas como são exemplo a indefinição em que se encontram os agricultores que agora têm de estar a deitar as sementes à terra e não sabem que apoios terão, a complexificação do sistema, a partir dos Ecoregimes, ou a redução dos apoios aos pequenos produtores. 

Permitam-nos que se abra aqui um outro parênteses para repetir a denúncia que temos feito sem descanso do corte que vai ser imposto no Regime da Pequena Agricultura aos mais pequenos dos pequenos agricultores, os que têm até 1 hectare, que até aqui recebiam 1000€ de ajuda e agora vão passar a receber 500€, um corte de 50%, depois de, por insistência do PCP, na nova fase da vida política nacional, ter passado de 500 para 600€ e depois para 1000€.

Quanto aos produtores com até 2 hectares têm um corte de 150€. 

Para os muito grandes, não quiseram impor um plafonamento aos 60 mil euros, como o PCP propôs, mas nos pequenos é indispensável cortar e cortar a direito.

Uma política que assegure os apoios necessários, particularmente neste momento em que os custos dos factores de produção com os seus brutais aumentos especulativos, que chegam aos 300% nos fertilizantes, mas superam os 80% nos combustíveis, se tornam incomportáveis, traduzindo-se numa quebra dos rendimentos dos agricultores de cerca de 12%, segundo o INE. 

Apoios que se deveriam traduzir, como o PCP propôs no Orçamento do Estado para 2023, numa opção de aquisição pelo Estado de factores de produção para distribuição, a preços justos aos produtores, proposta também chumbada.

Uma política que reclama determinação para colocar os interesses nacionais à frente de quaisquer outros, para criar os mecanismos de aprovisionamento, designadamente com a criação, a partir da actual SILOPOR, de uma empresa pública que garantisse um nível de aprovisionamento que ultrapassasse as poucas semanas que se registaram durante toda a pandemia, como registavam os sucessivos relatórios dos Estados de Emergência.

Uma política para cuja concretização é indispensável assegurar estruturas públicas fortes e desde logo um Ministério da Agricultura com capacidade de iniciativa e ligação aos agricultores, com verdadeiros serviços de extensão rural, o que é absolutamente contrário à opção de extinção das Direcções Regionais e da concentração das suas tarefas nas CCDR, que condenamos desde a primeira hora.

No fim deste interessantíssimo debate, queremos ainda afirmar três ideias.

A primeira é a de que não é estranha ao PCP a nova realidade agrícola no Alentejo. 

O PCP acompanha, conhece, estuda as evoluções na produção agrícola nacional e sabe que produzimos muito hoje onde antes não produzíamos tanto, seja no azeite, seja nos frutos secos, seja até em frutos semitropicais. 

Não é o tempo agora de fazer o balanço desses caminhos que nos levariam seguramente muito longe. 

Mas não podemos deixar de assinalar que se a intensificação da produção agrícola foi o que garantiu a alimentação da humanidade crescente, há limites que não podem ser ultrapassados, sob pena de, afogados em azeite, não termos umas côdeas de pão com que fazer a açorda ou não termos as batatas para regar.

Temos um desígnio do qual não desistimos, o que nos leva à segunda ideia, assegurar a soberania alimentar nacional, entendida como o direito de cada povo a produzir o que precisa para se alimentar, e este caminho implica uma ruptura nas políticas que PS, PSD e CDS, à vez, sozinhos ou de braço dado, vêm pondo em prática. 

E uma terceira ideia, que aqui hoje ficou bem vincada. É que para lá da urgente necessidade que temos, também temos a terra, temos a água, mas também temos o conhecimento científico e a vontade e disponibilidade de aprofundar esse mesmo conhecimento, temos as forças e as condições para pôr o País a produzir, para o aumento também na produção de cereais e de abrir o caminho que assegure a soberania alimentar nacional.

Temos tudo e as condições todas para andar para a frente, o desafio é então avançar neste sentido.

Contem connosco para trilhar este rumo, este rumo que serve o Povo e serve o País.

Obrigado

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