Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

Procede à terceira alteração à Lei n.º 1/2005, de 10 de Janeiro, que regula a utilização de câmaras de vídeo pelas forças e serviços de segurança em locais públicos de utilização comum

(proposta de lei n.º 34/XII/1.ª)

Sr.ª Presidente,
Sr. Ministro da Administração Interna,
Srs. Membros do Governo,
Srs. Deputados:
O Sr. Ministro trouxe-nos uma proposta que eu não diria polémica, mas que reúne um razoável consenso contra ela.
Efectivamente, as entidades que se pronunciaram sobre esta proposta de lei — refiro-me à Comissão Nacional de Protecção de Dados, ao Conselho Superior do Ministério Público e à Ordem dos Advogados — têm pareceres contundentemente críticos em relação esta proposta de lei, que só o Governo e a maioria parlamentar defendem.
Sr. Ministro, este debate não é entre os que são a favor da videovigilância e os que são contra. Este debate está a ser feito pelos que pretendem utilizar a videovigilância sem controlo e para qualquer finalidade contra os que consideram — estando em causa, de um lado, a segurança e, do outro lado, a privacidade — que tem de haver uma solução equilibrada.
Ninguém, aqui, é contra a videovigilância — aliás, ela existe e está a ser utilizada —, mas somos contra uma utilização discricionária da videovigilância, que é ao que conduz a proposta de lei do Governo.
De facto, o que está aqui em causa, quais as principais questões?
Como muito bem refere o Conselho Superior do Ministério Público no seu parecer, as vias pelas quais o legislador pode assegurar o equilíbrio entre a privacidade e a segurança tem que ver, por um lado, com a limitação taxativa das finalidades admissíveis para a instalação da videovigilância e, por outro, pela necessidade de parecer vinculativo de uma entidade independente. Portanto, estão aqui colocadas estas duas questões. Ora, o que acontece é que o Governo pretende relegar a Comissão Nacional de Protecção de Dados para um papel de mera assessoria técnica das decisões do Governo.
Isso não tem nada a ver com o estatuto constitucional e legal para a qual foi criada a Comissão Nacional de Protecção de Dados.
Não tem nada a ver! Aliás, é referido no parecer, não no da CNPD, mas no do Conselho Superior do Ministério Público, que a intervenção da Comissão Nacional de Protecção de Dados fundamenta-se na necessidade de fiscalização da actividade administrativa policial por uma entidade independente do Governo e que se trata de um desenho institucional absolutamente crucial (sublinho «absolutamente crucial») para garantir que o juízo de proporcionalidade não fique subalternizado face a critérios de segurança ou policiais.
E diz mais adiante: «Esta partilha de competências, que reflecte, em termos institucionais, a tensão entre os valores da segurança e da privacidade, fica completamente prejudicada com a proposta em análise.»
Este é o parecer do Conselho Superior do Ministério Público, Sr. Ministro, ao qual o senhor devia dar a devida atenção.
Porque, então, pergunta-se: afinal de que se queixa o Governo? Da morosidade das decisões da CNPD?
Sr. Ministro, o parecer da CNPD, que teve como relator o Dr. Luís Durão Barroso, diz o seguinte: «Verifica-se, em algumas situações, a circunstância de a CNPD emitir parecer positivo, mas de os respectivos sistemas estarem por instalar por períodos de tempo superiores ao prazo da própria autorização: veja-se o caso da Ribeira do Porto, onde o sistema esteve por instalar por mais de um ano e ainda, paradigmático, o caso do Bairro Alto — a CNPD emitiu parecer positivo há mais de dois anos e, ainda assim, o sistema encontra-se por instalar.»
A pressa é tanta, a CNPD emperra os processos, não há vigilância por culpa da CNPD, que dá parecer positivo e, ao fim de dois anos o sistema não está instalado.
Tanta era a pressa!
Portanto, o Governo não se queixa da morosidade, quer é decidir.
A segunda questão tem a ver com os valores em presença. Ou seja, para que serve a videovigilância? Serve, evidentemente, para prevenir a criminalidade. Estamos de acordo com isso. O local onde as câmaras são instaladas tem de ser ajustado a essa finalidade. Mas, então, por que razão quer o Governo suprimir a expressão constante da alínea c) do artigo 2.º, que diz: «Protecção da segurança das pessoas e bens, públicos ou privados, e prevenção da prática de crimes em locais em que exista razoável risco da sua ocorrência.»? Portanto, já não há um juízo de adequação.
As câmaras devem estar onde são necessárias, porque naquele local existe razoável risco de ocorrência de crimes, mas o Governo suprime esta disposição.
Como também diz, e bem, o Ministério Público, um crime pode ocorrer em qualquer lugar. Ora, se não há critério relativamente à localização, o Governo pode perfeitamente decidir que podem ser instaladas câmaras de videovigilância seja onde for, desde que considere que é adequado.
O Sr. Ministro perguntava há pouco quem fiscaliza a CNPD. Sr. Ministro, as decisões da CNPD não são irrecorríveis. É uma entidade administrativa independente e, como tal — creio que isto é unânime na nossa doutrina constitucional e administrativa —, dos pareceres, das entidades e das decisões tomadas por entidades públicas e empresas já há recursos para os tribunais.
Não cabe é recurso para o Ministério da Administração Interna, Sr. Ministro. Essa é que é a questão!
O Sr. Ministro fez uma afirmação que considero grave: disse que não aceita ser notário das decisões de uma entidade independente. Sr. Ministro, ninguém lhe pede que seja notário de ninguém. O que se lhe pede é que respeite as decisões das entidades independentes, porque foi para isso que foram criadas.
As entidades são independentes, dotadas de poderes constitucionais ilegais, mas depois o Governo vem dizer que não está para respeitar as decisões dessas entidades. O que o Governo quer é o poder absoluto.
É preciso que os poderes dessas entidades sejam reconhecidos, para que haja, de facto, Estado de direito e para que a democracia possa funcionar, porque não aceitamos que haja poderes absolutos num regime democrático. É para isso, também, que estas entidades são criadas, aliás dentro da boa tradição europeia de incumbir entidades independentes para fiscalizar a aplicação de matérias legais sensíveis como esta, da defesa da privacidade em face do tratamento de dados pessoais.
Sr. Ministro, para nós, PCP, esta proposta de lei é inaceitável, mas esperamos que se a maioria a aprovar na generalidade tenha em devida atenção os pareceres fundamentados que esta Assembleia recebeu e que apontam para inconstitucionalidades graves.
(…)
Sr.ª Presidente,
Quero desfazer o equívoco que o Sr. Deputado Telmo Correia lançou acerca das reais intenções da bancada do PCP neste debate, ao colocar em evidência o facto de que, em Setúbal, os autarcas comunistas, que consideramos que têm uma obra muito meritória, defendem a instalação de sistemas de videovigilância na respectiva cidade. Muito bem! Não contestamos isso. Como disse no início deste debate, não somos contra a videovigilância.
Consideramos que os autarcas têm toda a legitimidade para propor a instalação de sistemas de videovigilância nas suas cidades, nos locais que considerem adequados e sensíveis do ponto de vista da criminalidade. No entanto, consideramos que, nessa matéria, a lei deve ser respeitada, assim como as competências da Comissão Nacional de Protecção de Dados, não devendo ser apenas o Governo a decidir.
Não há aqui qualquer contradição, Sr. Deputado Telmo Correia. A oposição que quis estabelecer entre a posição dos comunistas em Setúbal e a posição dos comunistas aqui, na Assembleia da República, parte da ideia errada de que os comunistas na Assembleia da República são, por princípio, contra a videovigilância e que se opõem sempre que alguma autarquia, ou seja quem for, proponha a instalação de câmaras de videovigilância.
Sr. Deputado, pedi a defesa da honra para corrigir este ponto, porque, para nós, não há qualquer dilema entre a salvaguarda da segurança dos cidadãos e a salvaguarda dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Por outro lado, parece que os senhores têm um dilema quando apresentam uma proposta que faz prevalecer a segurança com sacrifício de direitos fundamentais.

  • Segurança das Populações
  • Assembleia da República
  • Intervenções