Hoje mais do que nunca, em que se começa a tornar claro perante parte significativa da opinião pública, o criminoso assalto às estratégicas empresas do sector energético EDP e Galpenergia, é importante recordar que tudo começou lá atrás com o início da sua privatização, processo contra os interesses nacionais, que a partir de determinado momento desemboca ou pode desembocar na própria desnacionalização.
De facto, o processo das privatizações, iniciado no nosso país em 1989 e que graças à luta do povo português, passados que são quase dezassete anos, ainda não está completamente concluído, constitui um pilar fundamental do processo de reconstituição monopolista e numa fase mais avançada, constitui a base objectiva para a sua ulterior entrega, em muitos casos ao capital estrangeiro.
A integração de Portugal nas Comunidades Europeias em 1986, não constituindo a razão determinante que explica e justifica o processo das privatizações em Portugal, constitui contudo um elemento deveras importante, assim como que o ambiente, o «chapéu-de-chuva», a moda, o suporte ideológico, que também permitiu aos ideólogos e fautores da política de direita, transpor para o plano nacional, as linhas orientadoras do neo-liberalismo nascente e triunfante a partir dos inícios dos anos 90.
Sob um ponto de vista estritamente jurídico-formal, nenhum dos pilares institucionais que suportam as Comunidades Europeias e depois a União Europeia, declara a proibição da existência de empresas públicas, ou exige ou sequer propõe a sua privatização, no caso destas existirem.
De facto, o Tratado de Roma, chega mesmo a declarar no seu artigo 222.º (que o Tratado de Maastricht não alterou) que «…o presente Tratado não prejudica em nada o regime de propriedade dos Estados-membros…».
Da análise atenta do articulado dos tratados de Paris (CECA – 1951), de Roma (CEE e CEEA-1957), do Acto Único (1986), de Maastricht (criação da União Europeia – 1990) e da proposta de tratado que estabelece (ou melhor pretendia estabelecer) uma constituição para a Europa (2004), não se encontra de facto nenhuma directriz formalmente clara nesse sentido. Bem ao contrário, encontramos o referido artigo 222.º do Tratado de Roma.
Contudo, e bem em sentido contrário, encontram-se de forma repetida, exaustiva e quase obsessiva as referências constantes sobre a magna importância do mercado, da iniciativa privada e da concorrência, e nunca por nunca ser, quaisquer referências à importância do papel do Estado na economia enquanto directo gestor de activos, designadamente em domínios estratégicos para os respectivos países.
Sem qualquer pretensão de exaustão, entendemos de interesse apresentar aqui, ipsis leteris, alguns dos artigos ou parte de artigos, dos diversos tratados, onde as questões do mercado, da iniciativa privada e da concorrência aparecem referidos.
Assim, do Tratado de Roma, rubricado em 1957 e que institui a Comunidade Económica Europeia (CEE) e a Comunidade Europeia de Energia Atómica (CEEA), destacamos os aspectos seguintes, a saber: no artigo 2.º refere-se que «…A comunidade terá por missão, promover, pelo estabelecimento de um mercado comum [….] um desenvolvimento harmonioso das actividades económicas…» e no artigo 92.º ponto 1. É também referido que «…são incompatíveis com o mercado comum, na medida em que afectem trocas comerciais entre os Estados-membros, os auxílios concedidos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais [….] que falseiem ou ameacem falsear a concorrência…».
Por outro lado, da componente CEE, «modernizada» em sede do Tratado de Maastricht, em 1990, é referido no artigo 86.º, que «…É incompatível com o mercado comum e proibido, na medida em que tal seja susceptível de afectar o comércio entre os Estados-membros, o facto de uma ou mais empresas explorarem de forma abusiva uma posição dominante no mercado comum ou numa parte substancial deste…». Assim como é referido no artigo 90.º que “…1.
No que respeita às empresas públicas e às empresas a que concedam direitos especiais ou exclusivos, os Estados-membros não tomarão nem manterão qualquer medida contrária ao disposto no presente tratado, designadamente o disposto nos artigos 7.º e 85.º a 94º, inclusive. As empresas encarregadas da gestão de serviços de interesse económico geral ou que tenham a natureza de monopólio fiscal ficam submetidas ao disposto no presente Tratado, designadamente às regras de concorrência…”, para além do referido no artigo 93.º “…2. Se a Comissão […….] verificar que o auxílio concedido por um Estado ou provenientes de recursos estatais não é compatível com o mercado comum…”, e para além do artigo 102-A em que se refere, que “…a Comunidade actuarão de acordo com o princípio de uma economia de mercado aberta e de livre concorrência…”.
Será de interesse recordar aqui, que foi com base nestes preceitos comunitários, que foram liquidadas as empresas estatais do sector agro-alimentar e de cereais EPAC e SOLIPOR, e isto independentemente das dificuldades objectivas criadas no plano nacional.
Por outro lado, o Tratado que Estabelece uma Constituição para a Europa (ou como já vimos atrás pretendia estabelecer), refere que os Estados-membros da União Europeia «…actuam de acordo com a economia de mercado aberta e de livre concorrência …» (artigo III-179).
Julgamos que os poucos exemplos apresentados são por demais evidentes quanto à orientação ideológica de tudo ao mercado e à iniciativa privada.
Contudo, é fundamentalmente no plano ideológico-instrumental, no discurso político, na legislação comunitária avulsa, nas decisões administrativas onde tudo se reforça para dar abertura crescente ao primado da iniciativa privada em desfavor do papel do Estado na economia.
Os processos de privatizações em cada país da União Europeia decorreram e decorrem com uma dinâmica resultante das tendências políticas conjunturalmente dominantes no espaço comunitário, assim como das singularidades próprias de cada país.
Todavia, naturalmente que a dinâmica dos processos de privatização em cada país, decorre dominantemente das orientações políticas das forças que em cada momento ocupam o poder, embora naturalmente marcadas pelas condicionantes políticas e económicas.
Assim também é em Portugal. Isto é, o processo de privatizações é dominantemente dominado pelas forças internas, embora, em termos da sua justificação sejam também condicionados pela envolvente, particularmente a envolvente União Europeia.
No quadro dos impactos ideológicos da CEE sobre a política do nosso país nomeadamente na sua vertente económica, julgamos de todo o interesse realçar as concatenações que se foram estabelecendo em termos temporais, entre o processo de adesão às Comunidades Europeias (pedido de adesão, período negocial, assinatura do tratado de adesão e entrada formal nas Comunidades) e o processo de privatizações em Portugal, isto é, o processo de privatizações seguiu sempre a par e passo o processo de adesão, embora com um ligeiro atraso.
O pedido de adesão de Portugal às Comunidades Europeias teve lugar em 1976, pela mão do PS/ Mário Soares, a assinatura do Tratado de adesão teve lugar em 12 de Junho de 1985 (eram Presidente da República Ramalho Eanes e Primeiro-Ministro Mário Soares) e a entrada formal teve lugar a 1 de Janeiro de 1986, faz portanto agora vinte anos.
No que respeita ao calendário dos momentos jurídicos em que foi alicerçado o processo de privatizações em Portugal, ou, melhor dizendo, o processo de passagem para o domínio privado de quase todas as actividades estratégicas do país, actividades desde 1975 nas mãos do Estado português, esta começa com a 1.ª revisão constitucional em 1982 (Presidente da República Ramalho Eanes e Primeiro-Ministro Pinto Balsemão) e com a Lei de Delimitação dos Sectores, através do decreto-lei n.º406/83, que abriram à iniciativa privada os sectores bancário, segurador, adubeiro e cimenteiro. É de recordar que, obviamente o grande capital de então, ainda em processo de recuperação e reconstituição, só pegou nas grandes alavancas que são os bancos (com a criação do primeiro banco privado o BCP, a par da banca nacionalizada então ainda existente).
A Lei n.º 84/88 que viria possibilitar a transformação das empresas públicas, ainda que nacionalizadas, mediante decreto-lei, em sociedades de capitais públicos foi a primeira porta que se abriu para dar passagem às privatizações.
Efectivamente, foi com base nesta lei, que se iniciaram as primeiras privatizações no ano de 1989 (UNICER, Banco Totta & Açores e companhias de seguros Aliança e Tranquilidade).
Ainda em 1989, teve lugar a 2.ª revisão constitucional (negociada fora do Parlamento entre Cavaco Silva e Vítor Constâncio), revisão que veio derrogar o importante princípio constitucional da irreversibilidade das nacionalizações.
Tratou-se então, do mais importante passo, no quadro do complexo processo da reconstituição monopolista em Portugal, passo que viria a trazer incalculáveis benefícios para o grande capital e prejuízos profundos para os trabalhadores e o país, conforme a História recente veio demonstrar.
A Lei n.º 11/90 de 5 de Abril (Lei das Privatizações) veio finalmente dar o enquadramento legal de detalhe, para a privatização do amplo e diversificado universo de empresas públicas e participadas de todo o sector nacionalizado.
Por outro lado, a alteração da Lei de Delimitação dos Sectores em 1997 (Lei 88-A/97 de 25 de Julho) veio permitir alargar profundamente o leque de actividades onde a iniciativa privada poderia começar a actuar.
São estes importantes e fundamentais passos institucionais, dados pelos governos de então, na aplicação consequente da política de direita nas suas diferentes variantes, passos que também se inserem na sequência lógica da adesão de Portugal às Comunidades Europeias, isto é, o corpo legal que possibilitou todo o ulterior processo de privatizações, estava já concluído passados que eram quatro anos sobre a adesão.
Em meados da década de 80 do século passado, antes de se iniciarem as primeiras privatizações, o sector público empresarial, para além de estar presente em quase todos os sectores estratégicos da economia (sistema financeiro, energia, transportes, telecomunicações para além de diversos sectores industriais de base), correspondia em termos quantitativos a cerca de 17 % do PIB, a cerca de 5% do emprego e a cerca de 19 % da FBCF(1). Actualmente o seu peso é quase residual.
Acerca das especificidades e dinâmicas próprias dos processos de privatização nos vários países da CEE/UE, convirá aqui recordar que durante as décadas de 80 e 90, a taxa média de privatizações (medida em termos de redução do peso do sector público na economia, face a alguns indicadores como o produto e o emprego) foi em Portugal cerca de quatro vezes superior à média da UE.
Está aqui claramente um dos factores responsáveis por muitas das actuais debilidades estruturais da economia portuguesa, isto é, em vez de política económica, tivemos fundamentalmente uma política de privatizações, política vendida aos portugueses como que fazendo parte de directrizes comunitárias.
Embora não fazendo parte do escopo do presente texto, não deixa de ser interessante constatar hoje, que dos objectivos colocados para as privatizações (artigo 3.º da Lei Quadro das Privatizações referendada por Cavaco Silva e promulgada por Mário Soares, aqui e nesta época designadas de reprivatizações), a saber:
– Modernizar as actividades económicas e aumentar a sua competitividade.
– Reforçar a capacidade empresarial nacional
– Promover a redução do peso do Estado na economia
– Contribuir para o desenvolvimento do mercado de capitais
– Possibilitar uma ampla participação dos cidadãos portugueses na titularidade do capital das empresas
– Preservar a redução do peso da dívida pública na economia.
De entre estes objectivos, somente a redução do peso do Estado na economia foi alcançado. E assim foi, por este ser o verdadeiro e único objectivo das forças políticas que promoveram as privatizações.
É aqui também, mais uma vez evidente a diferença entre a aparência e a essência dos fenómenos políticos.
Desde o pedido de adesão de Portugal às Comunidades Europeias, apresentado pelo governo português em 1976, que o PCP alertou para o facto de tal adesão, ser no fundamental, uma grande operação política que não económica, com vista à destruição das conquistas políticas, económicas e sociais saídas da Revolução de 25 de ABRIL.
A prova da vida veio a confirmar esta tese.
(1) Nota do editor: Formação Bruta de Capital Fixo (investimento)