Intervenção de

Privatização da água

 

 

Declaração política salientando o papel da água como um elemento essencial à vida, à saúde e a todos os sectores produtivos, e condenando o Governo pela sua intenção de privatização daquele bem público

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

A luta pela água pública, pela água como um direito, como um elemento essencial à vida, à saúde e a todos os sectores produtivos, tem assumido um papel determinante em todo o mundo, muitas vezes em ambiente de grandes convulsões após privatizações.

Para o Governo português, no entanto, a produção energética, a distribuição e o abastecimento de água, o saneamento de águas residuais, os próprios rios e praias não são factores estruturais da economia, da soberania ou dos direitos das populações, são «oportunidades de negócio», são grandes mercados.

Para o Governo do Partido Socialista, bem mandado pelos grupos económicos do sector, a água é apenas mais uma mercadoria a ser vendida e revendida a quem a puder pagar, gerando lucros assombrosos para os concessionários do negócio, à custa de todas as pessoas que dela não podem prescindir.

Com as Leis da Água e da Titularidade dos Recursos Hídricos, que PS, PSD e CDS aprovaram nesta Assembleia em 2005, foi instituída a base legal para a privatização de toda a água do território nacional e o mercado da água da natureza, a completa mercantilização.

O projecto de lei que, na altura, o PCP contrapôs àqueles baseava-se nos direitos de todas as pessoas à fruição dos benefícios da água, na responsabilização do Estado perante as funções sociais, ecológicas e económicas da água, no reforço do imprescindível papel das autarquias locais na administração da água e dos serviços de água às populações, na gestão democrática e participada dos recursos hídricos, na sua utilização, protecção e preservação rigorosa, como recurso estratégico e como factor estruturante do ambiente e do território.

Denunciámos, na altura, os objectivos das leis aprovadas nesta Assembleia e as consequências que trariam.

O Governo negou veementemente para, depois, fazer, no concreto, exactamente o que o PCP vinha denunciando.

O Governo começou por afirmar que «não privatizaria uma gota de água» para, alguns meses depois, vir anunciar, afinal, que a sua estratégia é a da «privatização de baixo para cima», assim denunciando claramente a orientação do seu Plano Estratégico de Abastecimento de Água e Saneamento de Águas Residuais (PEAASAR II) quando estabelece como prioridade a privatização e a empresarialização dos sistemas de abastecimento e a aglomeração dos sistemas de captação e distribuição sob a Águas de Portugal (AdP).

A Águas de Portugal é uma empresa de capitais públicos cuja entrega a privados o Governo já iniciou, com a privatização da Aquapor. A Águas de Portugal será, portanto, o embrulho atractivo de um pacote que o Governo quer entregar a privados. E dentro desse embrulho está toda a distribuição e abastecimento de água do País.

E às autarquias que tentam resistir a esta estratégia, que faz o Governo?

Simples: não viabiliza o financiamento para os respectivos projectos. Ou os municípios abdicam da competência de servir os cidadãos ou o Governo boicota-lhes o investimento nas infra-estruturas necessárias, como tem sido o caso dos sistemas intermunicipais do Alentejo, boicotados pelo Governo.

Isto significa, objectivamente, que as autarquias são forçadas a integrar os sistemas multimunicipais concessionados à Águas de Portugal e a cobrar aos munícipes a escalada de aumentos de tarifários exigidos para assegurar a engorda da AdP.

Essa tarifa é imediatamente repercutida na factura do cidadão, das famílias, das empresas. Como se tal não bastasse, o Governo faz aplicar, através do regime económico-financeiro da água, uma taxa de recursos hídricos que penaliza o cidadão, aumenta a factura mensal com o consumo de água e que, afinal, se afirma apenas como mais um imposto sobre o acesso à água. A privatização da água já empurrou países inteiros para a ruptura social, colocou populações em perigo e já se provou a pior das opções. Mas também se revelou bastante lucrativa.

É grave que o Governo português oriente a sua política de recursos hídricos pelos interesses dos grandes grupos económicos que favorece e não pelos interesses das pessoas, não pelos interesses do País, da sua economia, da sua produção e da sua soberania.

Nenhuma das taxas e tarifas que hoje incidem sobre o preço da água na factura cobrada às populações está relacionada com a qualidade do serviço prestado.

Pelo contrário, associada ao aumento dos preços está exactamente a privatização dos sistemas e, como tal, a degradação da qualidade.

Também nesta matéria, como de resto em todas as outras, o Governo mostra uma vez mais de que lado está. Basta ler o PEAASAR II para perceber que o objectivo é o de montar uma máquina de lucros que se sobrepõe totalmente à qualidade do serviço e às necessidades do País.

Por isso mesmo, as facturas da água têm subido surpreendentemente; por isso mesmo, hoje, os grupos económicos por todo o País se sentem na liberdade de vedar o acesso a ribeiros, a rios, a praias; por isso mesmo, as autarquias são confrontadas com a imposição de uma política de autêntica extorsão - que o digam muitas das autarquias que aderiram aos sistemas da Águas de Portugal e que o digam, principalmente, os cidadãos desses municípios; por isso mesmo, as barragens são atribuídas a grupos económicos que detêm sobre elas todos os direitos, como se deles fossem os rios; por isso mesmo, a gestão da água obedece ao critério de obtenção do lucro máximo e não a critérios políticos, sociais e ambientais.

Ao Sr. Primeiro-Ministro e seu falso arrependimento sobre o Estado mínimo, dizemos: inverta a política de destruição do sector público da água e da sua gestão democrática; ponha fim à privatização da água e devolva a água às populações; devolva-nos as praias, os rios e as albufeiras e permita às autarquias a gestão do abastecimento e distribuição.

O PCP continua, e continuará, firme na luta contra a privatização encapotada que o Governo tenta fazer pela calada.

E, numa altura de crise económica, de ruptura do sistema financeiro e do próprio capitalismo, mais se exige que não se ande a fazer da água apenas mais uma mercadoria e mais um mercado.

Antes que seja tarde e que se cumpram os desígnios de destruição dos grupos que na água, em vez de vida, apenas vêem lucro.

Dizia José Saramago: «Privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos.

E, finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo...».

Já agora, dizemos nós, após esta ironia, que bem sabemos ser essa a vontade do Governo e que, por isso mesmo, a denunciamos.

(...)

Sr. Deputado Marcos Sá,

Muito obrigado pelas questões que colocou.

Julgo que essa tentativa de simplificação não ajuda a uma discussão que deve ser mais séria do que aquilo a que a tentou reduzir.

E também apelo a que o Sr. Deputado faça um exercício de honestidade em torno da directiva comunitária que disse que esta Lei da Água transpõe. E se, de facto, esta Lei da Água foi apresentada como o elemento estrutural da transposição da directiva, é bem verdade que ela introduziu mais algumas coisas «a cavalo» da directiva.

Uma directiva que certamente tinha alguns aspectos com os quais o PCP não concordava - e teve ocasião de deixar isso bem claro quando apresentou uma lei da água alternativa à

do Governo, do PSD e do CDS -, mas que era, convenhamos, bastante mais limitada do que aquilo que o Governo introduziu.

Por exemplo, não era exigência da directiva privatizar a água.

Não era exigência da directiva empresarializar o mercado, o sector; e não era imposição daquela directiva o que consta do PEAASAR, apresentado e estabelecido por este Governo como a sua grande estratégia para a água, que é - e uso palavras do Ministro do Ambiente e do PEAASAR - a criação do grande mercado da água.

Não era isto que constava da directiva comunitária, muito embora não esteja aqui a fazer a defesa a 100% dessa directiva.

Sr. Deputado, muito brevemente, quero ainda dizer-lhe o seguinte: a sustentabilidade económica e o lucro das empresas que este Governo tem vindo a proteger e a assegurar no âmbito do sector da água é muito diferente da sustentabilidade do ciclo da água.

A sustentabilidade ambiental é muito diferente da sustentabilidade do lucro. E os senhores estão a confundir deliberadamente estes dois conceitos.

Não é necessário haver uma empresa que suga os lucros através das tarifas às pessoas, através do consumo, e que ganha mais quanto mais água consumirmos.

Isto é bastante diferente de garantir a qualidade da água, garantindo a defesa da natureza e dos recursos hídricos nacionais.

O PS quer a água apenas como um meio, uma mercadoria, para que essas empresas «engordem». Antes gratuita que isso, Sr. Deputado!

(...)

Sr. Presidente,
Sr. Deputado António Carlos Monteiro,

Disse o Sr. Deputado que todos estamos de acordo com o facto de a água ser um bem público. Sr. Deputado, custa-me subscrever essa frase depois de tudo o que o ouvi dizer logo a seguir.

É que a água não é só um bem público, é também um serviço e um direito. É muito mais do que um bem público que podemos concessionar para outras empresas virem explorar. É essencial à vida de todos e a todos os processos produtivos que dinamizam as economias.

Sabemos perfeitamente que o CDS tem tido essa batalha da regulação do sector, da transparência nos preços e da livre concorrência. Portanto, o CDS preconiza um sistema um pouco idílico (perdoe-me a expressão), tendo em conta que sabemos perfeitamente que o que está a ser preparado é a entrega do «bolo» total a grandes empresas e que não há essa visão de pequenas empresas que concorrem entre si e em relação às quais o Estado só tem de fiscalizar se a transparência dos preços está a ser respeitada e se há uma efectiva concorrência.

E deixe-me dizer-lhe que mesmo este regime, além de ser impossível, porque obviamente a concentração gerará apenas uma grande empresa nacional ou uma grande empresa que detém todos os sistemas nacionais, ainda que talvez com uma ou outra excepção, mesmo este regime, repito, também não será aquele que, na nossa óptica, se aplica.

É que nós concebemos a água como um direito e como um serviço - deve ser encarada politicamente como um direito acessível a todos e gerida como um serviço público - e, como tal, Sr. Deputado, não deve obedecer a essas regras do mercado, ou seja, às sagradas regras da concorrência, da transparência na fixação dos preços e da regulação.

A água, Sr. Deputado, não é, e não deve ser, um mercado.

Muito embora este Governo tudo faça para transformar a água no «grande mercado da água». Sobre a questão de a privatização estar ou não em cima da mesa, Sr. Deputado, não é o PCP que o diz, é o próprio Governo, é a Águas de Portugal, quando diz que, a partir de 2009, a Águas de Portugal entrará na Bolsa e abrirá o seu capital a todos os grupos privados que assim entendam. O próprio presidente da Águas de Portugal já afirmou que a sua tarefa é preparar a Águas de Portugal para estar pronta a ser privatizada, a partir de 2009. Não é o PCP que o diz!

Se isto não é a privatização da água estar em cima da mesa, talvez então seja a concessão das barragens a privados, os rios e as praias vedados às pessoas.

É que se isto não é água privatizada, então, Sr. Deputado, há-de explicar-me o que é.

(...)

Sr. Presidente,
Sr. Deputado Francisco Madeira Lopes,

Agradeço as questões que colocou.

Há uma disparidade na afirmação deste Governo, de que está condenada a doutrina do Estado mínimo. Um Primeiro-Ministro que afirma ser agora um forte crítico dessa doutrina do Estado mínimo vai ser, afinal, um bom aluno do desmantelamento do Estado e, inclusivamente, da retirada do domínio público e da sua entrega às empresas privadas.

De facto, Sr. Deputado, a água não pode ser encarada como uma mercadoria pelo simples facto de ela não poder ser trocada.

Não posso trocar a água por outra coisa qualquer, porque, pura e simplesmente, não posso beber um livro, não posso beber dinheiro, uma mesa ou uma cadeira. Portanto, a água não pode ser uma mercadoria.

Mas este Governo ignora essas características, que são muito próprias da água e de um reduzido conjunto de recursos naturais, e passa por cima, porque vê na água a oportunidade de entregar um bom punhado de lucros a um pequeno punhado de grandes empresas que vão enriquecer à custa das populações, que, por motivos óbvios, são obrigadas a consumir a água. Sobre a disparidade dos critérios e dos argumentos, nada mais ilustrativo do que a taxa dos recursos hídricos que referi durante a intervenção que fiz.

O Grupo Parlamentar do PCP já confrontou o Governo com esta matéria e, de facto, basta dizer o seguinte: o Governo cobra uma taxa às pessoas - que, pelos vistos, o Sr. Ministro do Ambiente diz que tem orgulho em pagar -, de acordo com a utilização da água.

Uma taxa que representa, mais ou menos, um aumento do custo em 5% a 7% do metro cúbico que é cobrado ao consumidor, e essa taxa é tanto mais elevada quanto menor for o tratamento dado à água que é rejeitada por essa pessoa.

Parece, até, bem engendrado!

A questão é muito simples. Obviamente que uma empresa passa directamente esse custo ao cidadão e o cidadão vai pagar tanto mais quanto menor for o tratamento daquela água. O cidadão paga tanto mais do seu bolso quanto menores forem as responsabilidades que o Estado e os sistemas assumirem no tratamento da água.

O Estado e as empresas poluem, o cidadão paga!

 

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