Intervenção de Lino Paulo, Membro da Comissão Nacional de Autarquias do PCP, Seminário «Do papel e política do Estado aos meios necessários – O que falta fazer na Protecção Civil?»

A prevenção das cheias e o ordenamento do território

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Caros amigos.

O tema que me é proposto “a prevenção das cheias e o ordenamento do território”, exige que recordemos cenários recentes do que sucede quando é esquecido o ordenamento do território ou quando este é feito em função da financeirização do solo.

Começo por salientar as consequências da adoção de políticas erróneas de uso do solo recentes acontecimentos na área Metropolitana de Lisboa e na Região Autónoma da Madeira.

Começo pela área Metropolitana de Lisboa. Na noite de 25 para 26 de novembro de 1967, cheias catastróficas provocaram a morte de cerca de 700 pessoas, a destruição de mais de 20.000 casas e de diversos equipamentos e infraestruturas.

Naturalmente que para a catástrofe contribuíram a elevada precipitação, a ultrapassar os 111 mm em apenas 5 horas (dados da Estação Meteorológica de Santo Antão do Tojal) e as áreas reduzidas das bacias hidrográficas da região de Lisboa. A sua trágica dimensão tem, no entanto, outras causas. São elas: a construção ao longo dos cursos de água, ocupando os leitos de cheia; a construção sobre colinas deslizantes; a canalização, com secção diminuta, das linhas de água; a falta de limpeza de rios e ribeiras.

As consequências das cheias de 25 de novembro de 1967 foram o resultado de viver, em condições indignas, em bairros de barracas ou de loteamento ilegal, sem qualquer planeamento urbanístico e, no geral, sem infraestruturas básicas. E no total desconhecimento de qualquer cultura de risco.

O ordenamento do território era pura ficção. A figura de plano centrava-se nos chamados Planos Parciais de Urbanização que, de acordo com a legislação de 1944, serviam essencialmente para desenhar núcleos urbanos centrais, destinados a setores dominantes da sociedade. Os outros, sobretudo aqueles que migravam para fugir à miséria do interior, eram empurrados para as periferias não urbanizadas. A situação foi ainda agravada com a publicação da legislação que veio institucionalizar o chamado loteamento urbano, Decreto-Lei 46673, de 29 de novembro de 1965, visando, sem obedecer a qualquer lógica de plano, criar solo destinado à construção de habitação para setores intermédios da sociedade. E a possibilitar a captura de renda fundiária pelo incipiente capital imobiliário. 

 Esta expansão periférica, em mancha de óleo, decorrente da falta de programação e planeamento é vertida, no início dos anos setenta, para um plano de ordenamento da região de Lisboa que assentando quase exclusivamente nas grandes vias de tráfego e ignorando as questões ambientais, declara como passíveis de urbanização os solos adjacentes a essas grandes vias. Os espaços intersticiais são deixados aos loteadores clandestinos e à implantação de bairros de barracas. O modelo que daqui decorre pode traduzir-se por subúrbio de loteamento legal, densamente ocupado, subequipado e mal infraestruturado, inclusive no que à drenagem de águas pluviais diz respeito. E por subúrbio de génese ilegal, onde infraestruturas e equipamentos, ainda que dos mais básicos, são inexistentes.

Com o 25 de Abril, surgiram importantes medidas legais de ordenamento do território. Foi publicada a primeira Lei de Solos, Decreto-Lei nº 794/76, e surgiu o princípio de criminalização por uso indevido de solo, Decreto-Lei nº 275/76. Mas rapidamente o processo contrarrevolucionário veio, especialmente após a privatização da Banca, colocar, de novo, o solo ao serviço da captação da renda fundiária pelo capital financeiro.

O custo deste desrespeito pela correta ocupação do solo voltou a ser cobrado. A 18 de novembro de 1983 cheias provocaram 10 mortos e o desalojamento de 1800 famílias. De novo, a incorreta ocupação do solo é apontada como a principal causa das gravosas consequências. Cito um exemplo, na Ribeira de Odivelas, entre 1969 e 2000 a percentagem de solo urbanizado relativamente à área da bacia hidrográfica passou de 13% para 65%. Para além do aumento da ocupação urbana acresce o mau dimensionamento dos sistemas de drenagem de águas residuais e pluviais e a falta de limpeza dos canais fluviais.

Entretanto surgem instrumentos de ordenamento do território. A figura de Plano Diretor Municipal, Decreto-Lei nº 208/82, a Reserva Ecológica Nacional, Decreto-Lei nº 321/83, a Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e do Urbanismo, Lei nº 48/1998, substituída pela atual Lei de Bases da Política de Pública de Solos, de Ordenamento do Território e do Urbanismo, Lei 31/2014.  

Apesar desta legislação mantem-se dominante uma visão liberal sobre a atividade de planeamento. Com os PDM de 1ª geração, através do comprometimento de solo em enormes expansões urbanas, procura-se essencialmente a valorização da propriedade imobiliária criada e ainda que expectante. O objetivo não tem nem com políticas de habitação nem, ainda menos terá, com políticas ambientais. Para o capital trata-se, tão-somente, de fazer crescer a renda fundiária absoluta, dando-lhe as características de renda fundiária urbana. Como afirma Marx: «o que faz necessariamente subir a renda, não é só o aumento da população com a crescente necessidade de habitação, mas também o desenvolvimento do capital fixo que se incorpora na terra ou nela cria raízes».

A financeirização do solo e da habitação, mercê de práticas erróneas de ordenamento do território, leva a um aumento da exposição ao risco na área Metropolitana de Lisboa. Apenas quatro exemplos: entre 1995 e 2007 a edificação em áreas inundáveis por cheias progressivas cresceu 51%, a edificação em áreas inundáveis por cheias rápidas cresceu 39%, a edificação na faixa litoral dos 500m cresceu 23% e a edificação em vertentes perigosas cresceu 72%.  

Permitam-me agora um pequeno apontamento sobre a Região Autónoma da Madeira.

A 20 de fevereiro de 2010, um forte temporal, juntando elevada pluviosidade e agitação marítima, abateu-se sobre a ilha da Madeira. A cidade do Funchal foi inundada por água e por os mais diversos materiais arrastados pelas ribeiras que a atravessam. Terão morrido 47 pessoas, o número de feridos ultrapassou os 250 e o de desalojados subiu aos 600. 

O temporal existiu mas a tragédia tem, também, outras causas. De uma forma sucinta recordemos a constante suspensão de PDM para permitir a construção em zonas protegidas, a canalização de ribeiras para ocupação nas suas margens, a não preservação ambiental das zonas declivosas. 

Recorde-se que numa ilha onde as ribeiras, até pela ausência de lagos e verdadeiros rios, constituem importantíssima parte do ecossistema eram, à época, denunciadas pela “Quercus “as seguintes construções em leito de cheia ou área de proteção: uma central térmica responsável por 75% da produção da energia elétrica consumida na ilha, quatro quartéis de bombeiros, duas escolas secundárias.  

Recorde-se, ainda, que a Região Autónoma da Madeira continua sem verter para legislação regional a Reserva Ecológica Nacional.  

Este é o resultado da dominância do capital financeiro sobre o uso do solo. Contra este estado de coisas, o interesse público, onde há vontade política para tal, tem respondido com uma série de ações, no geral em respeito pelas cartas de risco elaboradas a nível municipal e regional. Em paralelo são elaborados os Planos Municipais de Emergência. São medidas que exigem forte investimento público e que devem estar programadas em cartas de investimento claras e precisas.  

A título de exemplo, na área Metropolitana de Lisboa, refiro o programa “Valo Rio” desenvolvido pelo Município de Loures, visando a reabilitação e valorização dos rios e ribeiras do território municipal. Valorização que passa pela criação de espaços de lazer e pela recuperação da estrutura viária de apoio a explorações de agricultura familiar. Programa que, em 2016/7 foi responsável pela limpeza de 28 há de solo junto de linhas de água. Este trabalho decorre em paralelo com a “Monitorização de Pontos Críticos de Inundação” e a elaboração de um “Plano de Emergência Para as Situações de Cheia no Concelho”. A cidade de Sacavém integra o Projeto Internacional “HazRunOff” visando a modelação de cheias urbanas.

Ainda a título de exemplo, os investimentos feitos na área do Município de Sintra, na regularização de diversas ribeiras com a criação de zonas de retenção de cheia e o aumento das secções de vazão dos sistemas de drenagem enterrados. Ligado à reabilitação das ribeiras têm sido criados parques lineares integrados na estrutura verde municipal. Um projeto de maior envergadura, envolvendo os municípios de Sintra e Oeiras, pretende criar uma estrutura verde contínua ao longo de todo o percurso do Rio Jamor.

São apenas dois exemplos. Importante será, e não apenas para a rede fluvial, que a Rede Ecológica Metropolitana, prevista no PR-AML, nunca aprovado, seja implantada. Que o solo que tal “Rede” ocupa não caia na alçada dos interesses do capital financeiro. O que importa é gerir o risco através de normas em instrumentos de gestão do território e proceder aos investimentos que, corrigindo práticas erróneas, possam mitigar o risco. Importante será, ainda, que a legislação portuguesa torne clara a imposição do “dever de prevenir o risco” impondo sanções legais claras e duras para o seu incumprimento.  

Permitam-me ainda um curto apontamento acerca de como o capital se preocupa com o risco a que sujeita a população quando usa o solo como objeto de especulação. Não tem diretamente a ver com ribeiras mas é esclarecedor. 

Como disse antes uma das principais causas das catástrofes provocadas por cheias tinha a ver com a enorme expansão territorial e a ocupação de solos em áreas de cheia. Foi assim durante décadas em que os centros históricos e as zonas antigas das cidades foram abandonados. Mas eis que, também o capital financeiro, face à iminência de rebentar da bolha imobiliária criada pela promoção de urbanizações periféricas, começou a dizer que importava mudar de paradigma, que afinal era importante consolidar as zonas urbanas antigas e apostar na reabilitação urbana.  

Nada contra este novo paradigma. Só que, para além de legislação do arrendamento urbano que levou à expulsão de milhares de famílias que ainda viviam nas zonas antigas, o capital, na sua ânsia de maiores e mais imediatos lucros, mostrou a falta de respeito face ao risco. Fez sair legislação, em 2014, hoje felizmente já revogada, criando o Regime Excecional de Reabilitação Urbana que, “visando a simplificação e a redução de custos com os trabalhos de reabilitação” permitia o incumprimento de normas de segurança de instalações elétricas e de gás e, inclusive, deixou de exigir a garantia de segurança estrutural e sísmica. Isto numa cidade como Lisboa onde o risco sísmico é reconhecido.

Penso que, com este exemplo, fica claro: É ao Estado e ao Poder Local que incumbe a gestão do solo e da cidade. Ao capital financeiro apenas interessa o aumento da renda do terreno.

O solo é um bem finito e imprescindível para o futuro pelo que é urgente procurar o equilíbrio que acautele física e temporalmente o seu uso. Ou, citando Marx: “Toda uma sociedade, toda uma nação, todas as sociedades contemporâneas, não são proprietárias da terra, são apenas suas detentoras, só têm o uso dela, que devem legar às futuras gerações, depois de a terem beneficiado como “bons pais de família”».

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