Intervenção de

Prescrição médica de cannabis<br />Intervenção de Bruno Dias

Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Deputados,Ninguém nesta Assembleia pretenderá certamente (ou, pelo menos, não de forma assumida) impedir ou evitar que um investigador científico ou um profissional de saúde tenha, enquanto cidadão, enquanto trabalhador, as suas próprias opções, tome partido, defenda causas e valores. E ninguém defenderá por princípio que essas causas e valores sejam abandonadas, ou que delas se abdique.Sabemos que a ciência não é “neutra”, nem esperamos que o seja. Tal como não queremos que sejam “neutros” aqueles que a ela se dedicam, ou sobre ela intervêm.É com esta indispensável consideração prévia que partimos para este debate, começando por dizer que uma das mais perigosas situações que pode acontecer na condução de uma política de saúde é precisamente a tentação do uso táctico e instrumental de objectivos, práticas e princípios deontológicos da ciência ou da medicina, procurando dar cobertura a causas e combates políticos – sejam eles quais forem! – através de argumentação de base (supostamente) técnica e científica.O que pretendemos com isto sublinhar é desde logo e tão-somente que o preconceito é perigoso – e mais ainda se ele aparece em discussões (como esta) sobre saúde e práticas terapêuticas.Daí que para nós tenha sido de estranhar – e porventura de lamentar – este clima de fervorosa exaltação que tem vindo a envolver o debate que agora fazemos. Porque não queremos de boa fé acreditar que o debate que agora fazemos tenha alguma coisa a ver com qualquer tentativa de combater (ou sequer questionar) o que está legalmente consagrado em matéria de consumo de drogas.Se tal acontecesse, seria naturalmente grave – desde logo, porque seria política e intelectualmente desonesto – e contaria com a nossa mais veemente oposição. Até porque nem estaríamos nem estamos disponíveis para manobras de diversão que sirvam para apoiar em abstracto o consumo e o uso recreativo de substâncias em concreto (e como um fim em si mesmo), à boleia de discussões sobre a sua aplicação específica em procedimentos médicos.Se nada disto se coloca, então a questão que se coloca neste debate é específica e rigorosamente a utilização terapêutica da cannabis, enquanto substância passível de prescrição médica para determinados casos. Ou seja, a cannabis não enquanto droga, mas enquanto medicamento.Trata-se no fundo de legislar, ou não, no sentido de a cannabis passar a ser receitada em casos de doença terminal, cancro, HIV/SIDA, epilepsia ou formas extremas de artrite. E é nesta aspecto que registamos a nossa estranheza.É que, no nosso entender, esta é uma questão essencialmente técnica e científica – e não uma questão essencialmente política. No nosso entender, estamos perante uma decisão que deve depender fundamentalmente da comunidade dos investigadores e dos profissionais de saúde – e não das maiorias que conjunturalmente se constituam nesta Assembleia.Colocar-se-ia a necessidade de avaliar até que ponto, e em que condições, este sistema abre a porta a um acesso mais facilitado à substância, em determinados círculos e com uma nova figura de protecção legal. Mas isso seria matéria para a especialidade.Pela nossa parte, o PCP naturalmente não coloca objecções de princípio quanto ao alargamento das respostas terapêuticas às situações concretas que as possam exigir. Mas é para nós desconcertante que a razão que leva o subscritor deste diploma a defender a proposta seja a mesmíssima razão que leva a maioria de direita a recusá-la – ou seja, o facto de estarmos a falar de cannabis!Entretanto, não podemos deixar de registar que o próprio preâmbulo do Projecto de Lei em apreço traz referências, por um lado, à matéria concreta do uso terapêutico da cannabis e, por outro, à afirmação genérica de juízos de valor sobre o seu consumo – o que acaba por não resolver em definitivo a tal confusão que todos afirmamos querer evitar…Já no tocante ao uso terapêutico da substância em causa, subsiste quanto a nós a necessidade de esclarecer esta questão da utilização dos seus componentes.Ou seja, se por um lado se afirma que a cannabis enquanto substância é constituída por cerca de quinhentos componentes químicos, por outro lado fala-se em dois ou três desses componentes como aqueles que poderão proporcionar os efeitos terapêuticos desejados – o preâmbulo do diploma refere dois: o tetrahydrocannabinol (THC) e o cannabidiol (CBD).Agora, estabelecida e clarificada que esteja a utilidade terapêutica desses dois ou três componentes, a questão que se coloca tem a ver com os efeitos dos outros…497. É nesses que está a diferença para o paciente? São prejudiciais e perigosos? São benéficos? São inócuos?É este aspecto que interessará esclarecer, no tocante à eficácia do medicamento. Até lá, naturalmente, não nos parece que possa haver grandes opiniões.Entretanto, nada disto é para nós razão para qualquer objecção de fundo nesta matéria – pela simples razão de, nos termos do decreto-lei 15/93 (mais conhecido por Lei da Droga), a definição das substâncias sujeitas ao regime de controlo incluir a cannabis da mesma forma como inclui, por exemplo, a codeína ou a morfina. Falamos designadamente da Tabela I anexa ao decreto-lei.Ora, a codeína e a morfina (substâncias relativamente às quais presumimos que ninguém fará campanhas) são há muito tempo administradas como medicamentos, apesar de serem substâncias cuja venda livre é proibida. A prescrição da morfina, aliás, normalmente até se destina aos casos de doença terminal mencionados neste projecto de lei.De resto, o preâmbulo refere nos Estados Unidos «a prescrição de dronabinol, um dos derivados da cannabis, aos doentes infectados com HIV». Ao que sabemos, no nosso país já hoje está autorizado para uso terapêutico (pelo menos) um outro canabinóide, designado Marinol.E é aqui que voltamos a entrar nos terrenos do desconcertante.Há duas semanas, a 29 de Janeiro, discutimos nesta Câmara a proposta de lei n.º 92/IX, que veio aditar novas substâncias às tais tabelas anexas da Lei da Droga. Uma dessas substâncias é a GHB (normalmente designada por ecstasy líquido e também conhecida por easy date), que está associada a relatos impressionantes de neutralização do sistema nervoso e estado de coma, a vários casos de morte, etc., etc..Então vejamos: a GHB apresenta todo esse terrível cortejo de consequências; já chegou a ser citada como uma das substâncias potencialmente mais problemáticas no futuro próximo em Portugal; já motivou uma nova actualização da lei. E esta mesma substância é ao mesmo tempo administrada – em condições específicas e determinadas – a doentes em tratamento de saúde mental.Por isso é com espanto que vemos um debate sobre o uso terapêutico da cannabis provocar tantas e tão fortes paixões, quando o próprio uso terapêutico da codeína, da morfina, ou mesmo da GHB, passou por um normal processo de decisão em sede do Infarmed – como aliás seria de esperar – sem chamar a atenção de ninguém.E Senhor Presidente, Senhores Deputados, a menos que nos esteja a falhar aqui alguma informação, tudo isto se tem passado sem que tenha sido necessário a Assembleia da República aprovar leis para o uso terapêutico destas ou doutras substâncias. Aí, de facto, não nos parece que o critério seja político.Mas fica o testemunho da nossa plena disponibilidade e do nosso empenho em continuar a acompanhar e a participar, de forma séria e construtiva, no necessário debate que, pelos vistos, terá de continuar de modo aprofundado, participado, abrangente e, acima de tudo, responsável e sem preconceitos.

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