Intervenção de

Política de combate à corrupção - Intervenção de António Filipe na AR

Debate de urgência  sobre a política de combate à corrupção

Sr. Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Srs. Deputados:

No final de Maio deste ano, o Grupo de Estados Contra a Corrupção do Conselho da Europa (GRECO) tornou público o seu segundo relatório de avaliação da situação de Portugal em matéria de corrupção e de combate ao crime económico em geral.

Esse relatório é muito severo para com a ausência de medidas eficazes de combate ao crime económico em Portugal. Traça um diagnóstico que a imprensa portuguesa que se lhe referiu qualificou de «arrasador», e o qualificativo não é exagerado.

O Grupo Parlamentar do PCP entendeu que a Assembleia da República não poderia ficar indiferente a este relatório. Tendo em consideração a idoneidade da entidade que o elaborou, a gravidade da situação descrita e a importância do tema para a saúde da economia, do Estado de direito e da democracia portuguesa, entendemos que o Parlamento português não poderia deixar de debater esta matéria de forma aprofundada. E como a maioria reagiu a propósito do relatório do Conselho da Europa sobre os voos secretos da CIA «assobiando para o ar», o Grupo Parlamentar do PCP decidiu utilizar o debate de urgência potestativo de que dispunha na presente sessão legislativa para suscitar o presente debate com a presença do Governo.

Vejamos, em breve síntese, o que se extrai do relatório do Conselho da Europa: desde 2002, as autoridades policiais desencadearam 1521 investigações de casos de corrupção, tendo completado 407. No entanto, o número de apreensões e de somas envolvidas foi mínimo. Em 2005 não se verificou um único caso de confisco de bens ilicitamente obtidos pela prática de crimes de natureza económica ou financeira.

Procurando encontrar explicações para este facto, os relatores concluíram que as investigações sobre este tipo de crimes foram muitas vezes abandonadas por falta de recursos ou atrasadas devido à falta de comunicação adequada entre entidades públicas e privadas.

Apesar dos poderes estabelecidos na lei quanto ao acesso a elementos de natureza bancária e fiscal, estes chegaram muitas vezes demasiado tarde. Por outro lado, a investigação sobre os bens suspeitos de terem sido ilicitamente obtidos não foi feita de forma sistemática, por falta de recursos e por não ser considerada uma prioridade.

Apesar de existir legislação que obriga a participar às autoridades judiciárias as operações financeiras suspeitas, apenas dois casos suspeitos de corrupção foram comunicados em 2005, o que, segundo os relatores, revela a falta de uma relação estruturada entre as instituições que estão obrigadas a comunicar transacções suspeitas e o Ministério Público, a polícia, as autoridades de supervisão financeira e outras entidades reguladoras. Para além de que as entidades sujeitas à obrigação de comunicar operações suspeitas não recebem qualquer indicação ou preparação específica que as ajude a estabelecer conexões entre as operações de que tomam conhecimento e a possível ocorrência de actos de corrupção.

No âmbito da Administração Pública, o relatório refere a ausência de coordenação entre diversas entidades que poderiam e deveriam ter um papel determinante na prevenção do fenómeno da corrupção. Chama a atenção para os perigos de algumas medidas ditas de modernização e de simplificação administrativa e para os riscos de corrupção que tais medidas podem propiciar se não forem devidamente acompanhadas.

Considera que o direito de acesso dos cidadãos aos documentos da Administração nem sempre é garantido na prática, devido à lentidão da resposta dos serviços perante as solicitações dos cidadãos.

Considera que o recrutamento para a Administração Pública é vulnerável à corrupção e nem sempre é conduzido de forma transparente. Refere a insuficiência da fiscalização de conflitos de interesses entre o exercício de cargos públicos e a prossecução de interesses privados e considera insatisfatória a regulação daquilo a que chama a «migração» do sector público para o sector privado. Considera ainda que aqueles que de boa-fé denunciem actos de corrupção não têm garantida a protecção legal adequada contra possíveis actos de retaliação.

Não faltam, infelizmente, na vida pública portuguesa, exemplos muito elucidativos do bem fundado destas preocupações.

É certo, Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados, que estes problemas não são novos.

Em Novembro de 1994, vai para 12 anos, o Grupo Parlamentar do PCP suscitou, nesta mesma Câmara, um debate de urgência precisamente sobre o tema de que hoje nos ocupamos.

Dizia aqui nessa altura o saudoso Deputado Luís Sá que esta é a criminalidade em que a vítima não apresenta queixa, porque a vítima é um povo inteiro, que não dispõe de meios para o fazer, e elencou um conjunto de preocupações fundamentais, que estiveram na base da proposta daquele debate de urgência.

Primeira preocupação: multiplicavam-se situações de corrupção ou referências a ela na comunicação social e na opinião pública, havia um clima de desconfiança e de afirmação de que era generalizado o compadrio, o nepotismo, o clientelismo e o aproveitamento pessoal de cargos públicos, sem que muitas vezes se soubesse qual o seguimento das questões levantadas ao nível do apuramento dos factos e da responsabilização dos infractores.

Segunda preocupação: a corrupção e frequentemente a sua impunidade minam os fundamentos básicos e a credibilidade que deveria merecer o Estado de direito democrático e a sua Administração Pública.

Logo, há quem pretenda generalizar, jogar no descrédito de políticos e da política, esquecendo que essa é a forma utilizada para fazer política por parte de todos os autoritarismos ou dos candidatos a isso.

Este facto, a prazo, pode abrir campo a tentativas extremistas, em nome de uma pseudo-moral, que rapidamente se desmentiria a si própria, após o acesso ao poder. O objectivo é, por toda a parte, pôr em causa as liberdades fundamentais, tentando que se confunda a rede de compadrio, de clientelas e de corrupção, criada por um certo poder, com o próprio regime democrático.

Terceira preocupação: não se verificava uma vontade política forte, determinada e coerente, por parte do governo, de combater a corrupção.

Doze anos e cinco governos depois, estas preocupações são de uma inquietante actualidade.

O fenómeno da corrupção e da criminalidade económica e financeira enche com alguma frequência as manchetes dos jornais. No entanto, muitos processos que envolvem personalidades com notoriedade pública ou os chamados «mega-processos» arrastam-se sem fim à vista, com investigações paradas anos a fio ou conduzidas aos soluços, ou vão de incidente em incidente até à prescrição final, acabando por ficar, como costuma dizer o nosso povo, «em águas de bacalhau».

Em 24 de Janeiro de 2005, o Sr. Deputado João Cravinho, em artigo publicado no Diário de Notícias, considerava imprescindível um pacto contra a corrupção, por considerar, muito justamente, que– e cito com a devida vénia – «uma democracia de qualidade assenta em exigentes princípios de ética, transparência e responsabilização da governação e a nossa vida pública revela a debilidade, mesmo flagrante violação, de aspectos básicos desses princípios». Nesse artigo, o Sr. Deputado João Cravinho apresenta um conjunto muito estimável de propostas destinadas a prevenir a corrupção, desafia os partidos a apresentarem outras e conclui que, «pensando melhor, nem sequer é preciso um pacto de regime. Bastará que o futuro Governo…» — que é o actual — «…assuma, mesmo sozinho, um eficaz programa anticorrupção».

Como vê, Sr. Ministro da Justiça, não lhe falta matéria-prima. Tem as propostas do Sr. Deputado João Cravinho. Tem um conjunto muito importante de 10 recomendações que o Grupo de Estados Contra a Corrupção do Conselho da Europa apresenta ao Estado Português, que passam pela dotação de mais recursos legais, técnicos e humanos para o combate à criminalidade económica e financeira e que devem ser levadas muito a sério e postas em prática, e terá as propostas que o PCP não deixará de apresentar na sequência deste debate, não para agradar ao Conselho da Europa ou a quem quer que seja, mas para corrigir uma situação que viola o princípio da igualdade entre os cidadãos, põe em causa valores fundamentais do Estado de direito democrático e corrói os fundamentos da democracia.

(…)

Sr. Presidente,

Embora esta ronda não seja necessariamente destinada a pedidos de esclarecimentos, como o Sr. Ministro terá oportunidade de falar no final, naturalmente que não deixarei de me dirigir ao Sr. Ministro da Justiça.

Em primeiro lugar, queria referir aquilo que o Sr. Ministro sabe mas que vou repetir, dado o tom das intervenções já aqui realizadas, ou seja, este Relatório não foi feito por qualquer partido da oposição nesta Câmara mas pelo Grupo de Estados Contra a Corrupção, do Conselho da Europa, e é muito importante que o Estado português tenha em conta as suas recomendações.

Creio que não será um bom caminho minimizar o Relatório, dizendo que a situação não é tão má como ele a descreve, porque isso é meio caminho andado para não cumprir, não acatar ou não levar em consideração as recomendações que aí são feitas. Portanto, parece-nos muito importante ter em atenção as 10 recomendações que são formuladas pelo Conselho da Europa.

Aqui, há alguns pontos críticos que são salientados e um deles tem que ver com os meios. Ora, o Sr. Ministro, agora, fez-nos aqui a afirmação de que as instituições com responsabilidades no domínio da investigação criminal, designadamente a Polícia Judiciária, irão ser dotadas de meios. Até agora, o que sabemos foi que houve uma crise de liderança da Polícia Judiciária e uma demissão do Sr. Director Nacional precisamente por falta de meios.

Isto é o que nós sabemos! Se o Sr. Ministro afirma que a situação vai ser corrigida, cá estaremos para ver e, obviamente, para não deixar de fazer o nosso juízo e avaliar o que foi ou não feito, daqui por uns tempos. Vamos dar tempo ao Governo para que essa situação seja corrigida, mas cá estaremos para ver se essa situação vai ou não ser corrigida.

Há um outro ponto crítico que é também salientado e que tem que ver com a coordenação e a eficácia dos mecanismos legais. É dito que o problema nem se deve propriamente a falta de legislação, deve-se precisamente a grandes dificuldades que surgem na operacionalização dos mecanismos concretos de combate à criminalidade económica e à coordenação entre as várias entidades que têm responsabilidades na matéria.

Finalmente, há um último ponto fundamental, que tem que ver com a prevenção, designadamente no âmbito da Administração Pública, havendo uma questão para a qual o Conselho da Europa chama a atenção que se prende com os mecanismos de recrutamento de lugares para a Administração Pública.

Aí, o Governo devia dar o exemplo, e estar a dar exemplos péssimos!

Sr. Ministro, não posso deixar de o confrontar com um exemplo que se tornou do domínio público, que é este: a ex-directora regional adjunta da educação do Algarve — sei que a educação não é uma área que o Sr. Ministro tutele, mas este exemplo deve ser dado, porque é muito elucidativo — foi demitida do seu cargo pelo Sr. Secretário de Estado da Educação. Na sua contestação, esta ex-directora adjunta refere que esteve reunida com o Sr. Governador Civil do Distrito de Faro, a pedido do Governador Civil, no dia 13 de Fevereiro de 2006, onde este a tentou convencer a aceitar de bom grado a exoneração do cargo porque havia que colocar militantes inscritos do Partido Socialista em cargos dirigentes da região.

Esta senhora diz quem é a pessoa em causa, que é um tal Dr. Eduardo Dias, que não conheço nem faço ideia quem seja, mas o facto é que, se formos consultar hoje o site do Ministério, na direcção regional, lá está o Sr. Eduardo Dias no lugar onde esta directora exonerada disse que ele ia ser colocado.

Este é, Sr. Ministro, um péssimo exemplo, e creio que o Governo, que vem aqui falar do seu empenhamento no combate a fenómenos desta natureza, devia não apenas «pregar como frei Tomás» mas, de facto, devia efectivamente dar o exemplo.

Exemplos, como este, são péssimos para a saúde da nossa democracia.

(…)

Sr. Presidente,

O  Sr. Ministro não estava a ir mal, mas, no fim, não resistiu em estragar a sua intervenção.

O Sr. Ministro começou com uma teoria geral, a qual até podemos dizer que compartilhamos.

Não consideramos que somos sempre os piores — nunca dissemos que Portugal era um País
de corruptos, pelo contrário.

Relativamente à identificação dos responsáveis, consideramos que um dos problemas é, em muitas situações, o da ausência de identificação e de punição de responsáveis. Às vezes sabe-se quem eles são, mas, depois, como todos temos conhecimento, há grandes dificuldades na sua condenação.

Por outro lado, combatemos as generalizações. Aliás, gastei algum tempo da minha intervenção inicial precisamente a combater o problema da generalização, pois é isso que corrói o regime democrático.

Um combate à corrupção em concreto é a forma mais eficaz de combater as generalizações abusivas.

Também não defendemos nenhuma espécie de Cruzada, de «Cruzadismo», que foi o quarto defeito que o Sr. Ministro elencou. Isso faz o Governo contra os professores e contra os demais trabalhadores da Administração Pública!

Nós combatemos isso. Nós não alinhamos em «Cruzadismos».

Mas há um quinto defeito que o Sr. Ministro não referiu, que é o de subestimar o problema.

Criou uma
teoria geral para subestimar a gravidade do problema, e isso é algo que também não fazemos.

Entretanto, no final da sua intervenção, o Sr. Ministro não resistiu a fazer um ataque desbragado ao PCP. Devo dizer-lhe que o PCP votou contra a lei-quadro da investigação criminal precisamente porque preza a autonomia do Ministério Público, que considera fundamental para o combate à criminalidade.

Foi por isso que votámos contra. E condenamos a maioria por não ter aceite a nossa proposta de aperfeiçoamento do regime de incompatibilidades e impedimentos relativamente à Assembleia da República.

Sr. Ministro,
Srs. Deputados,

Não baseámos este debate em processos de intenções sobre ninguém. Não viemos aqui acusar ninguém de pactuar com a corrupção. Quisemos, com toda a seriedade, promover um debate sobre um relatório que nos merece muita consideração e que pensamos dever ser levado a sério. Esse relatório regista vulnerabilidades sérias em vários domínios e pensamos que o Governo deve debater isso com a Assembleia da República no sentido de se encontrarem soluções de forma a resolverem-se alguns estrangulamentos que são detectados.

Relativamente aos meios, quanto a questões concretas a que o Governo se referiu sobre acusações que fizemos, registamos a afirmação que o Sr. Ministro fez quanto aos meios da Polícia Judiciária. O que dissemos foi isto: registámos que há uns meses houve uma crise directiva na Polícia Judiciária que foi motivada por isso. Neste momento, registamos a afirmação do Sr. Ministro de que dotou a Polícia Judiciária com mais meios. Vamos ver. O tempo dirá se esses meios foram suficientes ou não.

Não tivemos conhecimento do caso concreto que aqui trouxemos relativamente à Direcção Regional de Educação do Algarve através da comunicação social. Esse caso foi denunciado directamente aos grupos parlamentares. E não se trata de um problema de criminalidade.

O problema é que há um governador civil que chama uma pessoa e diz: «A senhora vai deixar o seu cargo, vai ser demitida, porque o Partido Socialista tem um militante que quer colocar lá».

Foi isto que foi denunciado.

O Secretário de Estado da tutela, agindo em conformidade, demitiu a senhora e nomeou o tal militante, e tudo bateu certo. Foi isto que nós dissemos.

Isto até pode nem ser um crime, mas, pelo menos, é uma vergonha e é um péssimo exemplo!

Há pontos críticos que são elencados no relatório do Conselho da Europa. Aliás, o Sr. Ministro reconheceu um deles, que são os fracos resultados. Há investigações, há uma grande dificuldade em conseguir que as investigações feitas se traduzam em condenações. Por isso, há que melhorar e reflectir sobre esta realidade.

Do nosso ponto de vista, há aqui uma questão essencial, que é a da coordenação entre as várias entidades que podem colaborar para o sucesso dessas investigações. Porque não é só um problema do Ministério Público, nem só da Polícia Judiciária, nem só das entidades de supervisão bancária, nem só de outras entidades de supervisão em outros domínios da vida económica. É um problema que, para ser combatido com eficácia, carece de uma coordenação eficaz, quer a nível da prevenção, quer a nível do aperfeiçoamento de mecanismos de investigação e até de repressão, que tem de envolver essas entidades.

Ora, pensamos que há uma deficiência de coordenação grave, que, aliás, foi reconhecida pelo Partido Socialista na última Legislatura.

Quando o PCP aqui apresentou um projecto de lei, visando, através da criação de um programa nacional de combate à criminalização da economia, criar uma estrutura a funcionar junto do Governo, para poder reunir a contribuição dessas entidades para o aperfeiçoamento desses mecanismos, a maioria da altura, a «maioria de turno», na última Legislatura, votou contra, mas o Partido Socialista considerou a iniciativa meritória e votou-a favoravelmente.

Quero anunciar que, em breve, tencionamos voltar a apresentar essa iniciativa legislativa, para que a mesma seja discutida na próxima sessão legislativa. Esperemos que o Partido Socialista não mude de opinião e que, tal como considerou essa iniciativa meritória quando estava na oposição, continue a considerá- la igualmente meritória, agora que está no Governo, aceitando discuti-la com toda a abertura e com toda a naturalidade.

É este o desafio que aqui deixamos ao Governo e à maioria. Pensamos que não é uma forma negativa de encerrar este debate.

 

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