Intervenção de

Pessoal de investigação científica - Intervenção de Miguel Tiago na AR

Estatuto do pessoal de investigação científica em formação

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

Neste momento em que falamos, cerca de 10 000 trabalhadores, técnicos, investigadores, técnicos administrativos, desempenham as suas funções sob o Estatuto de Bolseiro de Investigação Científica. Isto significa que uma parte muito significativa da investigação e do trabalho de apoio à investigação em Portugal é desempenhada por trabalhadores qualificados, mas a quem são recusados os mais elementares direitos dos trabalhadores, exactamente porque a sua relação com as instituições em que levam a cabo as suas funções se baseia no Estatuto do Bolseiro e não num contrato de trabalho.

A política de contenção orçamental e de congelamento de novas contratações conduz a uma situação de manifesto abuso de recrutamento de bolseiros.

Na prática, o Estatuto do Bolseiro tem servido como a fórmula legal para a contratação de mão-de-obra altamente qualificada, mas sem quaisquer direitos assegurados no plano laboral. Subsídios de férias, de Natal, segurança social, protecção na doença, na maternidade e paternidade são direitos que estes trabalhadores científicos não conhecem.

O Partido Comunista Português defende uma política laboral radicalmente diferente para a  investigação e desenvolvimento. Defendemos uma verdadeira estratégia nacional que faça da ciência e tecnologia um instrumento essencial para o desenvolvimento social e económico do País.

Essa política estratégica assentará, necessariamente, na dinamização do sector da investigação e desenvolvimento, em estreita ligação com as necessidades do sistema produtivo, particularmente da indústria, mas também no alargamento da base de trabalhadores qualificados e na dignificação do trabalho que desenvolvem no seio das instituições e unidades de investigação.

Em Portugal, a política da ciência tem consistido numa prática diametralmente oposta: uma inexistente preocupação na qualificação superior da população, um desequilíbrio proporcional entre técnicos e investigadores no Sistema Científico e Tecnológico Nacional e um subfinanciamento aliados a uma política de desmembramento do potencial científico e tecnológico nacional. A conjunção destas opções também se reflecte necessariamente na política de recursos humanos.

É esta política de contenção e de subalternização da ciência e tecnologia, enquanto elemento estrutural do desenvolvimento e do progresso, que cria a situação que se verifica junto dos trabalhadores da ciência, que em muitos casos desempenham funções ao abrigo do Estatuto do Bolseiro, mesmo que satisfazendo necessidades permanentes da instituição em que trabalham.

Quer desempenhem funções de investigadores, de apoio à investigação, de assistentes administrativos, quer sejam doutores ou levem a cabo a investigação num programa de doutoramento, a grande parte destes é recrutada por via do Estatuto do Bolseiro, o que significa que o Estado não entende, para todos os efeitos, estes investigadores, técnicos e docentes, como trabalhadores, sendo que lhes nega os direitos mais elementares como tal.

O Partido Comunista Português entende que todo este contingente intelectual produz, de facto, trabalho, ainda que inserido num plano ou programa de doutoramento ou num plano de iniciação à carreira de investigação.

O projecto de lei do PCP (projecto de lei nº 398/X) visa enquadrar exclusivamente a parte destes trabalhadores científicos que se insere na categoria proposta de investigador em formação, cumprindo assim as orientações contidas na Carta Europeia do Investigador. Ou seja, o PCP não propõe a criação de um estatuto para enquadrar aqueles que hoje estão injustamente classificados como bolseiros.

Que fique claro: os técnicos administrativos, técnicos superiores, o pessoal de apoio à investigação, os investigadores que já concluíram os seus percursos de doutoramento ou aqueles que são já docentes devem ser encaminhados para as respectivas carreiras, no âmbito das relações laborais, âmbito no qual desde sempre deveriam ter estado inseridos.

O PCP não propõe, portanto, um estatuto para perpetuar a situação deste vasto número de homens e mulheres como bolseiros, ou qualquer outra classificação que não implique a realização de um contrato de trabalho. Ou seja, o projecto de lei do PCP propõe claramente que, relativamente a todos os que hoje seja indevidamente aplicado o estatuto, devam ingressar na respectiva carreira profissional; para aqueles a quem se aplica o estatuto devidamente, o PCP propõe o reforço dos seus direitos, garantindo que a consideração de investigador em formação é temporária e transitória, como sempre deveria ter sido a de bolseiro.

O projecto de lei que o PCP apresenta hoje propõe que a aplicação do estatuto do investigador em formação corresponda apenas ao período temporal da efectiva formação do investigador, do início da sua carreira na investigação científica, ou do programa de obtenção do grau de doutor.

Já não basta defender o cumprimento da legislação em vigor. Primeiro, porque contém insuficiências e porque não responde às necessidades sociais dos próprios bolseiros; segundo, porque é necessário politicamente assumir o passo seguinte, o de admitir que estes efectivos que hoje são recrutados como bolseiros desempenham, de facto, trabalho, material e imaterial, reconhecendo-lhes, portanto, um estatuto legal de natureza jurídico-laboral com todos os direitos que isso implica.

É aqui que reside a proposta mais audaz e mais radical do projecto de lei do PCP: na substituição do actual regime de bolsas por um regime de contratos de trabalho.

Isto significa que o PCP defende que todos aqueles que exerçam a profissão de investigador, independentemente do estádio da carreira em que se encontrem, usufruam dos direitos que resultam da existência de um contrato de trabalho, tal como preconiza a Carta Europeia do Investigador.

O que não podemos continuar a permitir - e esta questão coloca-se hoje com particular exigência ao Grupo Parlamentar do Partido Socialista - é que as injustiças resultantes da aplicação abusiva do Estatuto do Bolseiro, e as que resultam do próprio Estatuto, continuem a crescer como resultado de uma política de impedimento de novas contratações e tenham um efeito de barreira no acesso às carreiras.

O efeito de supressão das faltas do Sistema Científico e Tecnológico Nacional com base no recrutamento de bolseiros, ao invés de trabalhadores que mantenham com a instituição em que desempenham função um vínculo, não pode continuar a ser aceite. Vínculo esse que deveria ser - e que o PCP propõe que seja -, aliás, o resultado lógico e justo da relação que se estabelece entre a entidade de acolhimento e o investigador em formação: uma plena relação de trabalho.

O que não podemos continuar a permitir é que milhares de investigadores não vejam cumpridos os seus direitos, que dediquem anos das suas vidas à investigação científica e que exercem com empenho o seu trabalho sem saber se tornarão a fazê-lo no ano seguinte, sem direito a subsídios, sem direito a protecção social, sem carreira, com bolsas por vezes insuficientes para fazer frente aos custos exigidos pelas próprias tarefas a que estão obrigados.

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

Durante o princípio de 2007, o Governo comprometeu-se publicamente com a resolução do problema dos bolseiros de investigação científica.

Nessa altura, o Governo comprometeu-se, especificamente, com a apresentação da sua proposta para Abril de 2007.

O Partido Comunista Português acolheu os contributos que os bolseiros propuseram a todos os grupos parlamentares, participou empenhada e solidariamente nas suas preocupações e lutas e apresentou, em Julho de 2007, o seu projecto de lei.

O Governo, por seu lado, continua até hoje embrulhado nos seus compromissos falhados, desprezando as necessidades dos investigadores em formação e de tantos outros trabalhadores do Sistema Científico e Tecnológico Nacional.

O PCP cumpre, uma vez mais, presente na chamada. Após o projecto de lei n.º 415/IX, novamente assumimos o compromisso político - resta agora que outros cumpram os seus.

(...)

Sr. Presidente,
Sr. Deputado Bravo Nico,

Quem o ouvisse certamente pensaria que vivíamos num País em franco desenvolvimento tecnológico e científico, em que as questões hoje aqui trazidas relativas aos problemas laborais e sociais dos bolseiros não existiam.

Independentemente dos números que o Sr. Deputado Bravo Nico aqui veio apontar como sendo verdadeiros, mas que ainda estão por provar, nomeadamente o 1% do PIB em investigação e desenvolvimento, tendo em conta que isto inclui, por exemplo, todos os salários dos docentes do ensino superior - e, como todos sabemos, nem todo o salário (assumidamente, são 50%) conta para a investigação e desenvolvimento -, havendo aqui, portanto, uma tentativa de branqueamento da verdade, a questão central que, infelizmente, ficámos a saber é que o compromisso do Governo de apresentação de um diploma para resolver os problemas dos bolseiros de investigação científica foi hoje cancelado pelo Grupo Parlamentar do Partido Socialista.

Afinal, para o Partido Socialista os bolseiros de investigação científica, independentemente dos projectos de lei hoje aqui apresentados, vivem com todas as condições e o sistema tecnológico e científico vai bem, não importando sequer discutir esses problemas, que foram completamente omitidos na intervenção que o Sr. Deputado fez.

A questão que se coloca é esta: há ou não da parte do Partido Socialista disponibilidade para resolver os problemas, aceitando as propostas aqui hoje trazidas pelos Grupos Parlamentares do PCP e do Bloco de Esquerda, para podermos encetar um processo de correcção das injustiças que se verificam em relação aos bolseiros de investigação científica?

(...)

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

Sobre os compromissos do Partido Socialista, julgo que estamos conversados.

No princípio de 2007, havia o compromisso de apresentação de um projecto para regulamentar esta situação e resolver os problemas dos bolseiros. No entanto, esse compromisso, hoje, desapareceu, apresenta-se um outro difuso, sem objectivos e, a final, até se diz que o problema já não existe. Registamos que o PSD e o CDS, de facto, reconhecem a existência do problema, obviamente divergindo de algumas análises que o PCP faz, mas, ainda assim, gostávamos de deixar algumas notas sobre a acusação feita da funcionalização.

A questão que está em cima da mesa é muito clara, Srs. Deputados: estamos a falar de pessoas, de investigadores, de técnicos, que desempenham trabalho.

Não estamos a falar exclusivamente daqueles que se encontram no período de bolsa ou que se encontram a fazer um doutoramento. Estamos a falar de um contingente enorme de pessoas a quem é aplicado indevidamente um estatuto que está a ser utilizado como a barreira objectiva ao acesso à carreira. E o acesso à carreira, o direito ao trabalho e à contratualização, está a ser chamado aqui, nesta Assembleia, tanto pelo Partido Socialista como por outros partidos de funcionalização. Garantir a estes trabalhadores, a estes investigadores, o acesso a uma carreira que contemple, de facto, aquilo que eles fazem na verdade, ou seja, que ajuste a vertente legal da contemplação destes trabalhadores com aquilo que eles fazem na realidade, está a ser aqui apelidado de funcionalização.

O Governo assumiu para Abril de 2007 a resolução do problema, mas reconheceu a existência de um outro problema: hoje, ficámos todos a saber que o Partido Socialista, pela voz do seu grupo parlamentar, afinal, nega a existência de um problema. Este é, talvez, o aspecto mais grave deste debate: é que destas promessas é mais uma que fica por cumprir, é mais uma que é adiada, é mais uma a juntar às promessas deste Governo, que tantas tem quebrado.

  • Educação e Ciência
  • Assembleia da República
  • Intervenções