Projecto de Resolução N.º 1267/XII/4.ª

Pelo apuramento dos beneficiários finais das transações financeiras que lesaram o BES e o Estado Português

Pelo apuramento dos beneficiários finais das transações financeiras que lesaram o BES e o Estado Português

O Grupo Espírito Santo, um dos grupos económicos privados com maior dimensão na economia portuguesa, atingiu uma proporção que, por si só, representava uma ameaça para a estabilidade financeira e económica. Um só grupo detinha importante atividade em diversas áreas, desde as financeiras às produtivas e serviços, concentrando sob o comando de um grupo monopolista vastos e determinantes sectores da economia, com ramificações e influência em outros grupos económicos, bem como com manifesta capacidade de intervenção junto do poder político, ao longo do mandato de sucessivos Governos, quer de PS, quer de PSD, com ou sem o CDS.

Depois do colapso do Banco Espírito Santo e da aplicação da medida de resolução pelo Banco de Portugal e pelo Governo PSD/CDS, o Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português apresentou a proposta de constituição de uma comissão parlamentar de inquérito sobre a gestão do Banco, do Grupo, sobre a medida de resolução e sobre os seus desenvolvimentos. A Comissão, que à altura da apresentação do presente Projeto de Resolução ainda desenvolve os seus trabalhos, tem aprofundado de forma muito significativa o conhecimento sobre o funcionamento do BES, sobre os mecanismos de circularização do financiamento entre o ramo financeiro e o não financeiro, sobre a forma de utilização dos processos de emissão e recompra de dívida própria, sobre a predação de outras empresas nacionais, particularmente da área não financeira, pelo grupo.

Ao mesmo tempo, muitas têm sido as informações sobre a forma como a arquitetura de um grupo económico é determinada pela chamada "otimização fiscal" e como todos os circuitos e fluxos financeiros são desenhados para minimizar "perdas fiscais", utilizando uma malha complexa de empresas, holdings e veículos de propósitos especiais, muitas vezes sedeados em paraísos fiscais ou jurisdições não cooperantes. Ao mesmo tempo, a Comissão tem informações que permitem ter a perceção de como são concebidos mecanismos de triangulação de financiamento, com recurso a filiais, como é o caso do BES Angola e de como é possível criar um sistema de financiamento com recurso a crédito que, não só passe despercebido aos reguladores e supervisores, como ignore as barreiras de defesa do próprio banco.

O que se passou com o BES e o GES representa um desfecho natural para um grupo monopolista com a forma de conglomerado misto, na medida em que a predação do sector não financeiro pelo sector financeiro, em última instância, se revelou autofágica. Ou seja, pode dizer-se que, de certa forma, o grupo provou do seu próprio veneno. Tal como sucede com muitas empresas, particularmente com as pequenas e médias empresas, a acumulação de crédito e de juros, vieram a provocar uma situação insustentável. O Grupo fez proliferar empresas, muitas delas sem capitais próprios, mas permitindo-lhes um endividamento absolutamente acima de qualquer limite imposto por uma avaliação de risco minimamente objetiva e isso fez com que, particularmente após o surgimento da crise económica e financeira do capitalismo, o passivo da componente não financeira do Grupo o tivesse conduzido a uma situação de não pagamento da dívida.

Os pequenos e médios empresários, contudo, sabem bem a dificuldade que representa aceder ao crédito. Ou seja, o BES facilitava o acesso ao crédito para as empresas do GES, mas isso não fez desaparecer a dívida do ramo não financeiro e, em última análise, teve implicações muito importantes no volume do passivo da holding de topo, a ES Internacional S.A., sedeada no Luxemburgo. A concentração de risco nas empresas do próprio grupo foi letal para o GES, independentemente da ocultação de passivo da ESI pensada pela administração do Grupo como forma de ir permitindo o prolongamento da situação, muitas vezes permitindo mesmo que a exposição do BES ao GES fosse aumentando.

Todavia, o total de 6,3 mil milhões de passivo detetado não tem origem apenas na dinâmica de concessão de crédito e acumulação de juros no GES. Outros processos terão contribuído para que o passivo ascendesse a tais valores, o equivalente a cerca de 4,5% do Produto Interno Bruto Português. Entre esses processos encontram-se mecanismos de concessão de crédito sem garantias, nomeadamente a empresas sedeadas em off-shore, bem como outros fluxos de pagamentos cuja justificação e destino a Comissão de Inquérito, pela sua natureza e pelos meios e capacidades de que dispõe, não pode apurar integralmente.

PSD e CDS, mas também o PS, têm contribuído para criar a ilusão de que estamos perante um caso que se resume a má gestão de um grupo privado e de um ramo financeiro que o constitui. Todavia, e apesar de ser manifesta a existência da má-gestão, estamos perante um caso cuja origem vai bem além de actos danosos de gestão.

O colapso do BES tem também relações com a ineficácia e incapacidade matricial do sistema de supervisão, bem como com a relação que o grupo estabeleceu ao longo dos anos com o poder político, permitindo-lhe o conhecido gigantismo e o crescimento que veio a perigar a própria estabilidade do sistema e cujo impacto ainda não se pode dizer inteiramente conhecido. Todavia, e apesar de estarmos perante consequências diretas do funcionamento do sistema financeiro no contexto do capitalismo, não é menos verdade que a República foi lesada em muitos milhões de euros, tal como foram lesadas milhares de micro, pequenas e médias empresas e famílias que viram o acesso ao crédito dificultado por ser desviado para empresas do GES ou com quem o GES mantinha "relações estratégicas".

Todos aqueles que alimentam ilusões em torno do funcionamento do sistema financeiro no quadro do sistema capitalista tentam circunscrever a origem do colapso ao facto de terem sido manipuladas as contas da ESI S.A.. Todavia, o problema da exposição demasiada e da concentração de risco na ESI e na ES Resources é conhecido desde, pelo menos, 2001, muito antes de se ter iniciado - em 2008 - o processo de ocultação do passivo.

O Estado não pode permitir que fique por conhecer o destino de cada um dos 6,3 mil milhões de euros que consolidam como passivo nas contas da ESI e que vieram a representar a principal causa da implosão do BES. Independentemente dos processos que o Ministério Público decida promover com a informação de que dispõe e com informações que a Comissão de Inquérito também possa reunir, é fundamental que o próprio principal lesado, o Estado, mobilize esforços para apurar todos os elementos e informações que permitam compreender, para os efeitos que se tenham por necessários, os mecanismos, os responsáveis e os beneficiários últimos de cada um dos processos de desvio de crédito, pagamentos não justificados, extração de mais-valias ou de outras atividades lesivas do interesse comum.

O PCP requereu, no âmbito da Comissão de Inquérito, as contas da ES Internacional, atualmente apreendidas pelas autoridades judiciais suíças. Sem pretender interferir com qualquer investigação judicial, a obtenção de tais documentos permitiria à Assembleia da República traçar um quadro geral das transferências e dos fluxos financeiros que originaram o passivo colossal da empresa e ajudariam nas Conclusões desta Comissão.

A criação de uma Unidade Técnica, como agora o Grupo Parlamentar do PCP propõe, pode vir a constituir um importante passo para o apuramento dos destinos concretos de cada euro que veio a impor-se como prejuízo e a justificar a intervenção no BES decidida pelo Governo e o Banco de Portugal. Para isso, além dos documentos que contenham os fluxos financeiros da ESI, será ainda necessário realizar os atos necessários para identificar os destinatários dos vários créditos concedidos pelo BES e filiais e mais tarde vencidos gerando provisões por imparidades na ordem dos 100%. A atividade do Bank ES de Miami, da ESFIL, do ES Bank Panama e do BES Angola, particularmente no que toca a concessão de crédito, deve ser alvo de um escrutínio técnico meticuloso e possibilitar a identificação dos beneficiários finais desses créditos.

Assim, tendo em consideração o acima exposto e ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do Artigo 4.º do Regimento, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP propõem o seguinte

Projecto de Resolução

Nos termos do n.º 5 do Artigo 166.º da Constituição, a Assembleia da República recomenda ao Governo:

1. Que se proceda ao apuramento dos beneficiários finais de todos os fluxos financeiros que originaram o passivo da Espírito Santo Internacional S.A. desde a sua fundação até ao resultado final de 6,3 mil milhões de euros bem como do crédito vencido atribuído pelo BES, pelo BESA e outras filiais, através da criação de uma Unidade Técnica composta por especialistas em direito fiscal e financeiro, a constituir junto do Fundo de Resolução.

2. Que a Unidade Técnica seja constituída no prazo de três meses após a aprovação da presente Resolução, reportando ao Fundo de Resolução, ao Governo e à Assembleia da República, com a apresentação de relatórios periódicos.

3. Que sejam adotadas as medidas legislativas, administrativas e regulamentares necessárias para que a Unidade Técnica possa efetuar as diligências e os contactos considerados pertinentes para a cabal efetivação do seu mandato.

4. Que a Unidade Técnica, respeitando os deveres de sigilo legalmente estabelecidos, seja mandatada pelas autoridades competentes para que lhe seja conferido o acesso às informações necessárias junto de cada entidade bancária ou jurisdição estrangeira considerada relevante, exclusivamente no âmbito dos seus objetivos.

5. Que a Unidade Técnica, findas as diligências que considere necessárias, elabore um relatório final no prazo máximo de dois anos após a sua constituição, a ser apresentado à Assembleia da República e ao Governo.

Assembleia da República, em 17 de fevereiro de 2015

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