Intervenção de

Organização e funcionamento das USF - Intervenção de Bernardino Soares na AR

Apreciação do Decreto-Lei n.º 298/2007, de 22 de Agosto, que estabelece o regime jurídico da organização e do funcionamento das unidades de saúde familiar (USF) e do regime de incentivos a atribuir a todos os elementos que as constituem, bem como a remuneração a atribuir aos elementos que integrem as USF de modelo B

 

Sr. Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:

Num momento em que a saúde está no centro das preocupações dos portugueses e em que a política do Governo nesta área sofre uma aguda contestação, este debate (apreciação parlamentar n.º 56/X), agendado pelo PCP, é o primeiro a realizar-se com a nova equipa do Ministério da Saúde - mesmo sendo o Sr. Secretário de Estado um «insubstituível», que transita da equipa anterior. Desta feita, não pôde o PS evitar, como fez em comissão parlamentar, que se discuta a política de saúde.

O certo é que, não vindo à Assembleia da República, por ser cedo demais para o PS, a Ministra já se desdobra em visitas e anúncios pelo País.

Estamos conscientes de que o Governo procurou, com a recente remodelação, criar a ideia de uma mudança na saúde, visando esvaziar a contestação. Mas não basta uma demissão de um alto responsável e meia dúzia de vagas notícias para garantir a mudança necessária na política de saúde. É preciso uma profunda inversão da política que há longos anos, com PS, PSD ou CDS-PP, está a ser seguida.

Quis o destino que a primeira iniciativa de fiscalização da política do Governo após a remodelação fosse na área dos cuidados primários de saúde. Talvez por isso a Ministra da Saúde se tenha afadigado nos últimos dias a anunciar novas medidas nesta área, antes da discussão desta apreciação parlamentar.

Esta é uma área decisiva para o Serviço Nacional de Saúde e onde as populações bem sentem os efeitos nocivos da política de direita. Faltam médicos de família, enfermeiros e outros especialistas, degradam-se as instalações e escasseiam os equipamentos. Desde há 12 anos para cá, a desproporção da distribuição de médicos entre os cuidados primários e os hospitalares passou, de 1 para 2, para 1 para 4.

Ao longo desta legislatura, o Governo apresentou a criação das unidades de saúde familiares (USF) como a solução para todos os problemas e a compensação para todos os males da política do Governo. No discurso do Governo, as USF são uma espécie de «canivete suíço» que resolve todos os problemas criados pela política seguida.

Mas a realidade está muito longe da propaganda. É verdade que os princípios e as orientações de base invocados como fundamentos desta política são positivos e de resto partilhados e propostos pelo PCP desde há muito.

São os princípios da maior autonomia e iniciativa dos profissionais, do incentivo e da responsabilização pela produtividade, da aplicação de soluções de organização que ultrapassem a teia de dificuldades sistematicamente criada pelos governos ao funcionamento mais eficiente dos cuidados primários. São, afinal, muitos dos princípios já presentes na legislação sobre os centros de saúde de 3.ª geração, que está, aliás, em vigor.

Só que esta filosofia e legislação são pervertidas na actual política.

Desde logo pela falta de investimento e pela carência de recursos humanos. Na verdade, ao contrário da legislação de 1999, este decreto-lei que hoje apreciamos está longe de garantir uma melhor distribuição de recursos. Desde logo porque aposta em criar unidades retirando recursos aos centros de saúde do modelo tradicional sem garantir que essas brechas são preenchidas, o que significa que, «com um cobertor curto, se tapamos a cabeça destapamos os pés».

Dissemos na fundamentação desta apreciação parlamentar que esta reforma era parcelar, insuficiente e capciosa. E é verdade.

É parcelar porque neste decreto do governo não se estabelece o objectivo de estender a todo o País e a todos os portugueses o sistema das unidades de saúde familiar. É parcelar porque reduz os cuidados primários de saúde a uma multidisciplinaridade restrita, uma vez que só comporta clínicos gerais, enfermeiros e administrativos, excluindo outras especialidades e profissões.

É parcelar porque, podendo haver carteiras adicionais, assenta num pacote básico de cuidados que não abrange a totalidade das funções dos cuidados primários de saúde. É caso para perguntar quem vai fazer o que não cabe nas unidades de saúde familiar. É parcelar porque abdica da integração com autonomia nos centros de saúde, pondo estas unidades «penduradas» nas ARS e noutros comandos.

Esta reforma é evidentemente insuficiente, porque ela por si não tem os meios para resolver os graves problemas de falta de recursos humanos, de instalações desajustadas e decrépitas, da falta de equipamentos e outros meios.

De resto, está muito longe da propaganda inicial o efeito da diminuição de utentes sem médico de família.

Em Agosto de 2006, o então Ministro da Saúde Correia de Campos anunciava que só esse ano (2006), com a entrada em funcionamento de 100 USF (o que só aconteceu um ano depois), mais 160 000 pessoas teriam médico de família. Disse o Dr. Correia de Campos: «Para 100 unidades, 160 000 pessoas». Já antes, em Fevereiro de 2006, o coordenador da unidade de missão para esta área anunciava que a reforma daria médico de família a mais 225 000 utentes. Esta semana, pela voz da Sr.ª Ministra, o Ministério anunciou que as 105 USF já abertas correspondem afinal apenas a mais cerca de 50 000 utentes sem médico de família.

Com a continuada falta de médicos de família, estas medidas não arantem, como não podiam garantir, nenhum «milagre da multiplicação» dos médicos, mas antes uma maior carga para os que existem, aliás, não acompanhada de evolução de remuneração correspondente.

É também insuficiente esta reforma porque não garante equidade nos regimes de incentivos para os vários profissionais de acordo com as suas funções diferenciadas, mantendo situações de desigualdade pouco compatíveis com a consideração do trabalho em equipa como eixo fundamental dos cuidados de saúde.

Finalmente, esta reforma é capciosa porque esconde a grave questão da privatização dos cuidados primários de saúde, que o Governo não inscreveu no decreto-lei, escondendo-a num despacho normativo deste decreto-lei. O Governo visou o início da privatização dos cuidados primários de saúde, e tem hoje aqui uma oportunidade para corrigir esse pernicioso caminho.

Apresentaremos, por isso, algumas propostas fundamentais para reconduzir as unidades de saúde familiares à sua filosofia original: a eliminação da possibilidade de privatização; a garantia de que a constituição das equipas das USF não se pode fazer à custa dos serviços e utentes por elas não abrangidos; a garantia de princípios idênticos para os incentivos para todos os profissionais; o estabelecimento do objectivo de abranger todo o território com as USF; a possibilidade de incluir outras especialidades e profissões nestas unidades.

É uma boa oportunidade para o Governo mostrar se está interessado na mudança real de políticas de saúde ou se lhe basta a «cosmética» da propaganda.

(...)

Sr. Presidente,
Sr. Deputado José Miguel Gonçalves,

Gostaria de dizer que, de facto, esse é um ponto fundamental.

Esta reforma não pode ser a «gazua» para fazer entrar o capital privado nos cuidados primários de saúde, mas é evidente que o Governo admite na legislação e também no debate político, como tivemos no último Orçamento do Estado, que 2008 seja o ano da entrada do capital privado nos cuidados primários de saúde.

Esta é uma das questões que queremos eliminar neste decreto-lei e que proporemos, para que seja votada, em conformidade com aquilo que consideramos ser a defesa do Serviço Nacional de Saúde.

(...)

Sr. Presidente,
Sr.ª Deputada Maria Antónia Almeida Santos,

A reforma não é gradual, é parcelar, porque em lado algum está escrito que ela tem como objectivo atingir a totalidade da população e do território.

O Decreto-Lei foi negociado e, aliás, quanto a uma parte do que lá está, os sindicatos queixam-se de que não está a ser pago. Portanto, não basta negociar, é preciso, depois, cumprir aquilo que se acorda com os sindicatos, e não é isto que o Governo tem estado a fazer.

Quanto ao número de utentes sem médico de família, mesmo que seja esse que a Sr.ª Deputada refere, ainda está longe do anunciado pelo Governo, quando lançou as unidades de saúde familiar e contradiz aquilo que a Ministra disse, anteontem, numa das suas visitas a estas unidades de saúde familiar.

O que não nos agrada, Sr.ª Deputada, não são os princípios, porque os princípios estão muito bem e defendemo-los, é a prática do Governo e a possibilidade da privatização, questão em relação à qual a Sr.ª Deputada nada disse.

(...)

Sr. Presidente,
Sr. Secretário de Estado Adjunto e da Saúde,

Tenho muito gosto em discutir consigo e sabe muito bem que assim é, que não é esse o problema. Aliás, até é bom que assim seja. E sabe porquê? Porque o Sr. Secretário de Estado é o único membro da equipa que não pode deixar de ser responsabilizado por tanta coisa que se passou nos governos do Partido Socialista na área da saúde, uma vez que já esteve com quatro Ministros...

Bom! Está bem! Foram três Ministros mas houve um que esteve duas vezes.

Portanto, o Sr. Secretário de Estado é o governante do Partido Socialista mais responsável pelas políticas na área da saúde e, por isso, temos muito gosto em tê-lo aqui.

Sr. Secretário de Estado, não se trata de dizer que o lobo vem aí, porque está nas normas. Permita-me dizer, Sr. Secretário de Estado, que fez a «habilidadezinha» de dizer que o modelo C se referia apenas às cooperativas de médicos. Por que é que não referiu as unidades do sector privado, que também estão no modelo C?! É que são estas que queremos eliminar,  assim como a possibilidade de as cooperativas de médicos serem controladas pelo capital financeiro que é preciso ter para começar essas cooperativas e mantê-las em funcionamento. Este é que é o problema!

Sr. Secretário de Estado, se não está a pensar na privatização, então, é simples: aceite a nossa proposta e ela será eliminada. Aliás, como poderá suceder com várias outras propostas, porque, nas apreciações parlamentares, as propostas são apresentadas durante o debate.

Portanto, o Sr. Secretário de Estado terá oportunidade de tomar conhecimento das várias propostas do PCP para melhorar a legislação que estamos a discutir.

Quero ainda fazer-lhe uma pergunta sobre remunerações e incentivos. É ou não verdade, Sr. Secretário de Estado, que as remunerações que já estão no Decreto-Lei, que estamos a apreciar, não estão a ser pagas, apesar de estarem em vigor, como alguns sindicatos têm vindo a dizer?! E, quanto às propostas de incentivos, institucionais e financeiros, apresentadas esta semana aos parceiros pelo Governo, é ou não verdade que mantêm uma diferenciação entre profissionais e que só irão entrar em vigor em Abril e Maio de 2010, segundo a proposta de portaria do Governo?

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