Intervenção de

Orçamento do Estado para 2001 ( 2ª alteração ) - Intervenção de Lino de Carvalho

Senhor Presidente,
Senhor Primeiro-ministro e membros do Governo,
Senhores deputados,

A apresentação pelos Governos de propostas de alterações orçamentais (os Orçamentos rectificativos na gíria parlamentar) não é, só por si, motivo de escândalo. A evolução das situações económicas e da própria execução orçamental pode, naturalmente, obrigar a esse exercício rectificativo, sem que daí venha mal ao mundo (antes pelo contrário). A questão não é, pois, a existência de Orçamentos rectificativos mas as razões para a sua apresentação e o seu conteúdo.

O PCP posiciona-se, pois, não pela apresentação em si e em abstracto de uma proposta de alterações orçamentais - mesmo sendo a segunda em relação ao mesmo Orçamento - mas pelo seu conteúdo material.

E, convenhamos, o conteúdo material deste segundo Orçamento rectificativo tem muita matéria para legítimas, profundas e preocupadas críticas.

Não tanto sequer pela sua justificação. Mas, sobretudo, pelas razões escondidas atrás da justificação.

E, desde logo porque os valores apresentados pelo Governo configuram uma deliberada intenção de enganar a Assembleia da República. O Governo começou por se recusar a apresentar o Mapa alterado das receitas fiscais. Percebe-se agora porquê.

A quebra de receita que nos é apresentada é de 349 milhões de contos. Na ausência de alterações nas despesas, como o Governo tem argumentado (o que, aliás, não é verdade como demonstraremos mais à frente), aquele deveria ser o valor que corresponde ao aumento do défice e, portanto, à necessidade de aumento do nível de endividamento com vista ao seu financiamento. Mas o Governo propõe-nos um aumento do nível de endividamento em mais cerca de 100 milhões de contos. Em vez dos 841 milhões de contos necessários para cobrir a quebra de receita o Governo propõe 940 milhões de contos. A que se deve este mistério ? É simples. É sabido que o Governo já ultrapassou (basta ver a execução de Outubro) o nível de despesas correntes autorizado pela Assembleia. Teria, por isso, obrigatoriamente, neste rectificativo, de propor uma alteração aos mapas da despesa seja por via do seu aumento seja pela autorização que necessita para poder, eventualmente, transferir verbas das Despesas de Capital para as Despesas Correntes. Não o faz propositadamente. E não o faz porque o Governo não quer assumir esse facto, tem medo das críticas à sua direita e quer manter o défice aparente dentro dos limites do bom aluno, não questionando frontalmente a irracionalidade, sobretudo em fase de abrandamento da economia, dos critérios decorrentes do Pacto de Estabilidade. E, por isso, prefere, "martelar" o Orçamento de Estado e enganar as instituições. Constituirão estes 100 milhões de contos a margem de segurança de que falava o Ministro das Finanças na Comissão de Economia? Mas, senhor Ministro, a sua margem de segurança ou é resolvida através do aumento da dotação provisional ou então tem mesmo de alterar os mapas da despesa. Nem vemos onde está o problema. Dentro obviamente de limites razoáveis, o aumento da despesa não é nenhum drama, designadamente quando tal tem a ver com a necessidade de aumentar o investimento público e as despesas sociais. Problema e drama é o que nos é apresentado: uma mentira orçamental, que só desprestigia as instituições e o País.

Acresce ainda, senhor Ministro e senhor Primeiro-ministro, que o total das receitas que o Governo apresenta no novo Mapa I (8,968 mil milhões de contos), e que é igual ao do primeiro Orçamento rectificativo, está "errado" também em quase 100 milhões de contos, mais precisamente 96,7 milhões de contos. Deviam ser 9,065 mil milhões de contos. Porquê ? Trata-se de um mero erro de soma ? Ou, face à coincidência dos números, tal quererá dizer que o Governo, propositadamente, introduziu um número errado na soma total das receitas para melhor poder escamotear a necessidade de alterar o mapa das despesas sabendo-se como se sabe que à luz da Lei do Enquadramento o valor global das receitas mais os passivos financeiros (o nível de endividamento) tem de ser igual ao valor das despesas ? No mínimo, é a mais total falta de rigor.

Suspeitamos, senhores deputados, que alguns membros do Governo, acreditaram demasiado nos disparates do livro do ex-Ministro do PS Marçal Grilo, pensando que, aqui, na Assembleia somos todos "uns tontos" e que quaisquer números orçamentais servem para enganar o parlamento e o País. Enganam-se redondamente, como vários episódios do debate orçamental já o provaram amplamente e, por isso, depois fazem tristes figuras e têm de dar o dito por não dito.

Tudo isto constitui, senhores deputados, um facto sem precedentes que deve merecer o mais severo julgamento desta Assembleia. E o mais severo julgamento é mandar este rectificativo para trás, chumbando-o.

Mas, como se não fosse suficiente, há mais razões para recusarmos este segundo Orçamento rectificativo.

O Governo apresenta-nos uma quebra de receita fiscal da ordem dos 200 milhões de contos. Deste valor, 40% deve-se ao IRC que acusa uma quebra de cerca de 76,7 milhões de contos.

Será isto, como o Governo justifica, unicamente o resultado de um abrandamento do "dinamismo económico nacional e internacional" ? Em parte, é possível que sim e só esta questão deveria ser alvo de uma profunda reflexão para, de uma vez por todas, se perceber as razões porque é que a nossa estrutura produtiva é aquela que, em toda a União Europeia, mais profundamente sofre os efeitos dos ciclos de crises e menos está preparada para lhes responder. A isto não são estranhas seguramente as políticas económicas que têm sido seguidas e que têm vindo a destruir progressivamente o nosso tecido produtivo, sem capacidade competitiva, assente cada vez mais nos voláteis mercados financeiros e em meia dúzia de grandes grupos económicos, excessivamente dependente da procura externa.

Mas a crise económica não explica tudo. A quebra na cobrança da receita fiscal em relação ao projectado tem três grandes explicações: sobreavaliação das receitas a arrecadar no Orçamento de Estado para 2001 que criou um cenário de ficção, para procurar esconder o défice real por causa do Pacto de Estabilidade e, desta forma, poder acomodar as despesas necessárias. O Governo constrói assim Orçamentos de ficção que, mais tarde ou mais cedo, acabam por rebentar criando ainda mais dificuldades à expectativa dos agentes económicos, das autarquias e dos trabalhadores bem como à credibilidade das previsões económicas e do País. O OE para 2002 sofre claramente da mesma megalomania orçamental. E, apesar de a meio da sua discussão o Governo já ter apresentado novas previsões para o crescimento económico que, além do mais, colocam em causa todo um Orçamento já debatido e aprovado na generalidade, veremos se em 2002 não teremos mais uns quantos rectificativos.

Mas a segunda explicação está no laxismo com que tem sido encarada pelo Estado a cobrança da receita fiscal e o combate à evasão e à fraude. Conhece-se o escândalo que representa a fraquíssima tributação efectiva do sistema financeiro - 12,9% em 2000 - e o facto de um terço da sua poupança fiscal ter origem nas operações realizadas através do off-shore da Madeira. O que fez o Governo, até ao presente, para atacar frontalmente este escândalo ? Nada. Os interesses e as pressões da Associação Portuguesa de Bancos têm-se sempre sobreposto aos interesses do País. Tal como os que se têm oposto a que termine o alto nível de benefícios fiscais não produtivos que só nos tempos dos dois Governos do PS cresceram 177% passando de 136,8 milhões de contos em 1995 para 370,2 milhões de contos em 2001 e 379,6 milhões de contos em 2002. Como, aliás, agora volta a acontecer, no OE para 2002, com a suspensão da tributação das mais valias e o alívio do controle dos movimentos de capitais em off-shore e ainda com as anunciadas benesses da autorização para a criação de uma nova provisão para os riscos anti-cíclicos não sujeita a tributação.

Mas também os Impostos Especiais de Consumo são fonte de uma gigantesca evasão fiscal. São dignos de um filme do tempo da lei seca os célebres carrosséis de entrepostos que continuam calmamente a existir e por onde se esvai grande parte do Imposto sobre o Tabaco e dos Impostos sobre as Bebidas Alcoólicas.

Como igualmente poderíamos falar nos sucessivos e escandalosos perdões fiscais que periodicamente se vão conhecendo. O último é o perdão de dois milhões de contos a empresas portuárias de Setúbal. Uma das empresas em causa, gestora de mão de obra portuária e cliente de um conhecido escritório de advogados de Lisboa conseguiu que a Direcção de Serviços da Justiça Tributária, tutelada pela Direcção Geral de Impostos, considerasse que a empresa em causa, sem património conhecido, fosse considerada uma associação sem fins lucrativos e, por isso, nem ela nem os seus administradores têm de responder pelas dívidas fiscais. A propósito, Sr. Ministro das Finanças, onde está o relatório da Inspecção-Geral de Finanças sobre mais este escândalo? E quantos mais haverá, Senhor Primeiro-ministro que nunca chegarão ao conhecimento público ?

Terceira razão, ligada à última, tem a ver com a gritante falta de meios que estão atribuídos à Administração-Geral Tributária e ao seu pessoal para o combate à evasão e à fraude fiscal. Como já denunciámos na Comissão de Economia - denúncia a que o Ministro das Finanças nos veio a dar razão - a informatização da DGITA está parada, os inspectores tributários não saem para a rua desde princípios de Outubro porque terminaram as dotações para as ajudas de custo, para os combustíveis e, se calhar, para os clipes. Isto é absurdo, mas é verdadeiro. O corte cego de despesas - para responder ao irracional e demagógico discurso da direita - leva a que serviços estratégicos do Estado paralisem a partir de determinado período do ano com todas as graves consequências para o Estado e para o País, como se está a verificar.

Portanto, Sr. Ministro das Finanças e Senhor Primeiro-ministro, não basta tocar a tecla da flexibilidade do défice para sensibilizar a esquerda parlamentar. Porque há défices e défices e, seguramente, as razões do défice que levam a este Orçamento rectificativo não são o resultado de uma opção por mais despesa de investimento (a execução de Outubro mostra-nos uma quebra do investimento do Estado em cerca de 100 milhões de contos, menos 12,7%, em relação ao Orçamentado) e mais despesa social que constituíssem alavancas para o fortalecimento e o desenvolvimento da economia, para mais coesão e justiça social, mas o resultado de um colapso do Estado na arrecadação de receita fiscal e, em particular, no combate à evasão e à fraude fiscal. E estas também não são seguramente boas razões para o PCP viabilizar este concreto Orçamento rectificativo.

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