"O socialismo é um projecto mais credível do que a adesão à UE"

Entrevista a Kemal Okuyan, Secretário Geral do PC da Turquia
Avante Edição N.º 1624, 13-01-2005

A entrada da Turquia na União Europeia (UE) não será um processo pacífico, considera Kemal Okuyan, secretário-geral do Partido Comunista da Turquia (TKP). Em entrevista ao Avante!, Okuyan manifesta-se convicto de que o país passará por uma grande crise política em consequência da adesão, mas sublinha que isso não será o fim da história na Turquia.
A Turquia aderiu à Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) no princípio dos anos 50 do século passado, e logo depois ao Conselho da Europa. As suas relações privilegiadas com a Comunidade Europeia, primeiro, e depois com a União Europeia, com vista a uma eventual adesão, foram reforçadas em 1995, data da assinatura de um tratado de união aduaneira. O princípio de que a Turquia podia ser candidata à adesão foi consagrado no Conselho Europeu de Helsínquia, em 1999, e reafirmado no de Copenhague, em 2002. Apesar dos sucessivos adiamentos, a adesão parece cada vez mais inevitável. Como encara o TKP esta perspectiva?

O TKP opõe-se à entrada da Turquia na UE, que de resto não se vai verificar tão cedo. Acreditamos que o processo de adesão se vai arrastar, pelo menos, durante mais quinze anos. A questão que se nos coloca é a de saber como a soberania, a cultura, a economia turcas vão conviver com a União Europeia, onde o nosso país será necessariamente um membro de segunda, terceira ou mesmo de quarta categoria. Mas não é por isso que nos opomos à adesão, seríamos contra mesmo que houvesse possibilidades de ingressarmos no grupo da «primeira classe», já que a unidade por que lutamos não é a do capital, mas a dos povos.
O processo de adesão está de resto longe de ser pacífico, pois dentro da própria burguesia turca há muitas contradições, e alguns não estão dispostos a abrir mão dos seus privilégios.
Estamos convencidos de que o país vai enfrentar uma grande crise política, e estamos a preparar-nos para isso.

A nível internacional, fala-se das «mudanças democráticas» que se estarão a registar na Turquia para criar condições para a entrada na UE, designadamente a abolição da pena de morte, o levantamento do estado de emergência no Curdistão, a permissão do ensino da língua curda, a libertação de alguns presos políticos...

A chamadas mudanças democráticas, apesar de positivas, têm pouco a ver com as aspirações populares, com os direitos dos curdos, com as condições de vida dos trabalhadores, com a justiça social. Na verdade, trata-se de uma operação de cosmética do poder político, a nível interno, e da parte da UE de uma nova forma de intervir nas questões nacionais da Turquia. A própria questão da pena de morte não passa de um fogo de vista, pois na prática já não era usada há muitos anos... No caso concreto do dirigente do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), Abdullah Ochalan, que tanto deu que falar mas de que agora nada se diz, neste caso, repito, é claro que as autoridades nunca o matariam, pois isso abriria caminho a uma guerra civil. Preferem mantê-lo como refém... e esquecer neste caso os direitos humanos.

E por falar em guerra, como se explica que a Turquia não tenha cedido às pressões dos Estados Unidos no que respeita à guerra contra o Iraque?

No caso do Iraque, conjugaram-se dois factores importantes: uma forte oposição popular contra a guerra e profundas divisões internas sobre o papel da Turquia neste conflito. Isso permitiu que, antes do ataque dos EUA ao Iraque, o parlamento turco rejeitasse integrar a «coligação» internacional que a administração Bush se propunha formar.
Criou-se no país uma atmosfera muito boa, pois percebeu-se que a Turquia, apesar de ter estado com os EUA na guerra fria, não tinha que ser uma marionete dos norte-americanos, podia ter uma política independente.
A situação evoluiu, e o país presta hoje «apoio logístico» no Iraque, o que está longe de ser bem aceite, pois as pessoas não compreendem o que se passa nem como se justifica que o número de mortos nacionais seja superior, por exemplo, ao dos britânicos, que participam activamente na guerra. A verdade é que muitas empresas turcas trabalham para o exército norte-americano, o que faz dos seus trabalhadores alvos preferenciais.
O TKP exige a retirada do Iraque, mas tememos que antes de isso se verificar se registem mais perdas de vidas humanas. No próximo mês de Fevereiro, por exemplo, será reforçado o contingente no Afeganistão, para compensar a retirada de forças norte-americanas que vão reforçar as tropas no Iraque, e isso nada auspicia de bom.

A resistência contra a guerra no Iraque tem vindo a cimentar os sentimentos anti-imperialistas na região?

Sem dúvida, sentimos isso claramente, mas ainda não chega. É preciso dar mais passos para a consolidação da luta anti-imperialista e para desfazer as ilusões que ainda existem em relação à União Europeia.
Ao contrário do que nos querem fazer crer, o período que vivemos não é o fim da história, nem o capitalismo a única opção possível. A sociedade socialista por que lutamos é um projecto muito mais credível do que a entrada na União Europeia.

De ilusões tem também vivido a questão curda. Como vê o TKP a situação dos curdos e que soluções apresenta para este problema?

O respeito pelo princípio do direito à autodeterminação coloca-nos numa situação complexa. Não renegamos esse princípio, mas sabemos que ele pode ser um instrumento nas mãos do imperialismo, como de resto já pudemos ver em relação à destruída Jugoslávia. Actualmente já não existe a URSS para contrabalançar o poder do imperialismo, o que significa que já não há possibilidade de criação de um novo Estado realmente independente.
Os trabalhadores e as forças de esquerda turcas e curdas devem pois organizar-se e lutar por uma nova Turquia unida. Não é possível dividir estas duas nações: a maioria dos curdos vive em grandes cidades turcas; a maior parte da classe operária turca é de origem curda; não é possível tomar uma iniciativa revolucionária excluindo os curdos. Estamos todos juntos.
Os curdos não são uma minoria, mas sim uma das duas principais nações que coexistem dentro da Turquia. Por isso o TKP defende que os curdos devem ser parceiros com iguais direitos na nova Turquia que queremos construir.
Há alguns anos, dizíamos que os curdos tinham os seus próprios representantes. Hoje, dizemos que o TKP é composto pelos comunistas turcos, curdos e de outras etnias do país, que pode representá-los a todos e que estamos a trabalhar para que todos se sintam representados no partido.
Quanto à situação fora da Turquia, e designadamente no Iraque, importa reconhecer que as bases curdas são muito mais fracas. Não queremos falar por eles, mas tememos que estejam a seguir uma perigosa linha de actuação, colaborando com os EUA. Por isso também dizemos que estamos contra a formação de um Estado curdo, que não seria de facto independente.
O grande problema dos curdos é o de serem uma nação que nunca teve o seu próprio Estado. Percebemos isso, mas também sabemos que uma nação não é livre com o imperialismo.

Ancara acolhe última sessão
do Tribunal Mundial sobre o Iraque

O Tribunal Mundial sobre o Iraque, TMI (The World Tribunal on Iraq, WTI ), foi constituído em 2003, na tradição do Tribunal Russell sobre a guerra do Vietname, com o propósito de investigar os crimes perpetrados contra o povo iraquiano.
O trabalho do TMI, que tem vindo a processar-se em várias sessões realizadas em diversas capitais em todo o mundo, culmina numa Sessão Final em Istambul, Turquia, em 20 de Março de 2005, segundo aniversário da invasão do Iraque.
Segundo os promotores da iniciativa, a legitimidade do TMI decorre nomeadamente:
- da incapacidade das instituições internacionais em responsabilizar os que cometeram crimes internacionais graves e constituem uma ameaça contínua à paz mundial;
- da resistência do povo iraquiano e do dever de dar voz às vítimas da agressão;
- da oposição internacional à invasão do Iraque;
- do dever de combater as guerras de agressão, os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade.
Com a sua acção, o TMI propõe-se:
- informar o público sobre os crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes durante a ocupação;
- informar o público das motivações da agressão e da teia de mentiras divulgadas pelos agressores;
- acusar os autores e os cúmplices dos crimes cometidos contra o Iraque;
- fortalecer o movimento mundial pela paz e contra a guerra

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