Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral, Mesa Redonda «Energia e recursos na transição energética. Soberania, segurança, ambiente e desenvolvimento»

Energia e recursos na transição energética. Soberania, segurança, ambiente e desenvolvimento

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Uma primeira palavra para agradecer a vossa participação nesta iniciativa sobre “Energia e recursos na transição energética – Soberania, segurança, ambiente e desenvolvimento” e o conjunto de valiosas contribuições que aqui vieram ao longo deste dia. Contribuições que confirmam e colocam o PCP na vanguarda da discussão sobre questões que são estratégicas para o povo português e para o desenvolvimento do País. Uma iniciativa que, tendo em conta todo o enquadramento nacional e internacional, dificilmente poderia ser mais oportuna.

Esta Mesa Redonda teve como grande objectivo dar uma contribuição para afinar a estratégia e posições do PCP nas políticas da energia e dos recursos, com particular destaque para a água, no contexto da transição energética. Quando chegamos ao fim do debate, penso que podemos dizer que o cumprimos.

Pretendemos com esta nossa iniciativa ter uma visão global, para responder com opções alternativas e justificadas às principais orientações dominantes contidas na política de direita em matéria de energia (deste e anteriores governos e também da União Europeia). E fazê-lo sem polarizar de forma absoluta soluções e caminho. O futuro é já ali, mas temos pela frente um acelerado desenvolvimento tecnológico que precisamos de continuar a acompanhar, tal como, não podemos deixar de ter presente na nossa análise, quer os limites da finitude e exaustão a prazo dos recursos naturais do planeta.

Assim quisemos uma iniciativa para aprofundar as orientações de uma Política de Energia que tenha como suporte a acessibilidade da energia a preços compatíveis com o poder de compra dos portugueses e a competitividade da economia nacional, no contexto do caminho para a Soberania Energética do País, a concretizar num Plano Nacional para a Energia.

Uma iniciativa para avaliar a Política da Água visando assegurar uma componente significativa da energia de fontes renováveis. A concretizar no quadro da ampliação das reservas hídricas nacionais, da preservação dos seus principais aquíferos e do aumento da eficiência e reaproveitamento no seu uso, capaz do abastecimento suficiente à vida humana e actividades económicas, e a inscrever numa Estratégia Nacional de Garantia da Segurança Hídrica. 

Como ouvimos ao longo do dia, os preços e tarifas suportados pelos consumidores de electricidade, gás natural e combustíveis líquidos e gasosos derivados de petróleo, continuam no topo na comparação europeia, penalizando as famílias e a competitividade das empresas. Apesar de aspectos positivos – travagem e mesmo baixa de tarifas do Gás Natural e da electricidade entre 2015 e 2019 - as políticas de preços mantiveram características especulativas, oportunistas e rentistas, determinadas por um pequeno grupo de empresas que dominam o mercado. A chamada regulação «independente» tem falhado sistematicamente, como se evidenciou de forma exuberante na Comissão Parlamentar de Inquérito às Rendas da Energia.

Como marcas estruturantes da política energética, temos a ausência de um planeamento  e a não concretização de programas para a eficiência energética. Um desenvolvimento desadequado da energia renovável, porque conduzido segundo os interesses  do capital monopolista, a manutenção da produção de biocombustíveis a partir de produção agrícola dedicada, o muito insuficiente aproveitamento de resíduos domésticos e industriais, sobretudo na produção do biometano, os atrasos no uso racional da biomassa florestal. Um sector energético com uma elevada dependência financeira e tecnológica externa.

Sob a capa da sustentabilidade e da premência climática, a política da União Europeia, seguida no País com excesso de zelo – ver o encerramento precipitado das centrais a carvão e o encerramento criminoso da Refinaria de Matosinhos -  catapultou a energia renovável, em particular a eólica e a fotovoltaica, para níveis de grande intensidade de exploração subsidiada e/ou incentivada fiscalmente. 

Paradoxalmente, à medida que cresceu a componente renovável, os preços e as tarifas mantiveram-se elevados, sem promover  a indústria e despenalizar a balança de pagamentos e quase anulando as suas vantagens socioeconómicas e ambientais. Na verdade, pese este aproveitamento, o défice energético do País manteve-se praticamente inalterado. A política energética, não obstante as mudanças assumidas pelos governos como correlacionadas com a questão climática, prosseguiu de facto inteiramente subordinada aos poderosos grupos monopolistas dominados pelo capital estrangeiro.

É preciso não esquecer que o País paga uma pesada factura pela privatização (e segmentação) das empresas da produção, transporte, distribuição, armazenagem e comercialização de combustíveis, gás e electricidade (EDP, GALP e REN), pela liberalização dos mercados de energia, pelo reforço da financeirização e da presença do  capital estrangeiro e pela corrupta promiscuidade entre governos e capital privado.

No domínio dos recursos hídricos, as estruturas públicas foram afastadas da gestão de albufeiras e a construção de novos empreendimentos hidroeléctricos totalmente entregue ao arbítrio e critério único da rentabilidade dos grupos económicos, isto é, à EDP, IBERDROLA e ENDESA. A falta de investimento público, a má gestão e uma gestão focada na obtenção de lucro nas barragens hidroeléctricas agravaram problemas de seca, de poluição e de perda de qualidade da água. As estruturas públicas perderam capacidade de assegurar a gestão, a planificação e até a monitorização de protocolos internacionais. 

É evidente, que este percurso, tem causas e responsáveis. Quando olhamos para a fotografia da Revista da EDP publicada após a sua privatização a 100%, pelo Governo PSD/CDS de Passos Coelho e Paulo Portas, e encontramos entre os membros do conselho de administração dessa empresa 5 ex-Ministros, verificamos que a porta giratória entre os grupos económicos e os partidos da política de direita nunca deixou de funcionar. 

Quando verificamos que qualquer que seja a forma da energia – electricidade, gás de botija, GPL ou Gás Natural, ou gasolina ou gasóleo - ao longo de todos estes anos, as ditas entidades reguladoras, que nasceram ao que dizem para na regulação defenderem os interesses dos consumidores, do Estado, do direito se mostraram, em geral, atrasadas na intervenção, incapazes na detecção e  correcção dos atropelos legais e concorrenciais, impotentes no debelar das ilegalidades e especulações.

Quando assistimos ao escandaloso negócio de venda de barragens pela EDP a um grupo francês, perante a total passividade do Governo PS, para cúmulo, com uma não menos escandalosa isenção de impostos... Uma alienação inaceitável: as grandes barragens hidroeléctricas pelo seu peso na produção eléctrica, pela capacidade de armazenagem de água doce, pela sua durabilidade constituem a base mais segura da soberania energética e segurança de abastecimento hídrico.  

Mas camaradas é impossível não referir mais um «quando». O que dizer, quando sucessivos governos, andaram anos a vender ao povo português a tese fraudulenta, de que a privatização e a liberalização das empresas da energia, Petrogal, EDP, GDP, ia ter como resultado uma baixa de tarifas e preços da energia, quer seja da gasolina e gasóleo, do Gás Natural ou GPL/Gás de botija, ou da electricidade?!

As malfeitorias enunciadas são uma pequena amostra mas a conclusão é inevitável: o PCP teve e tinha razão para se opor ao longo destes anos às políticas para a energia de sucessivos Governos de PS, PSD e CDS.   

É fácil verificar as razões do PCP na matéria. Elas estão traduzidas em textos como «Energia – Panorama da energia em Portugal» (1977), «Política Energética para Portugal» (1984) ou presentes em páginas do seu Programa, dos seus Congressos e Conferências.

Elas estão presentes no Diário da Assembleia da República em múltiplas intervenções, iniciativas legislativas, nas declarações de voto, nos questionamentos dos governos. 

Foi do PCP a iniciativa para a aprovação por unanimidade na Assembleia da República da Resolução 109/2011 que recomenda ao governo que o Estado português subscreva e promova nos planos nacional e internacional o designado Protocolo de Esgotamento, assim respondendo à exigência de uma gestão adequada das reservas petrolíferas.

Razões que estão presentes também nos inúmeros projectos para o tabelamento/fixação de preços máximos nos combustíveis, Gás Natural e GPL, electricidade. Na insistência para que, apesar de tudo, se mantivessem no Sistema Eléctrico Nacional  e no Sistema do Gás Natural, tarifas reguladas e livre acesso. 

Razões nas muitas e muitas iniciativas para que os reguladores funcionassem e interviessem na contenção dos preços da energia, visando nomeadamente no plano da União Europeia o  total escrutínio das operações e mecanismos de fixação da cotação internacional dos combustíveis  pelo cartel das petrolíferas, no sentido do estabelecimento de um preço real desses combustíveis à porta das refinarias na base do preço do crude e custos operacionais da refinação! Esforços que até hoje esbarraram nos interesses do poder económico e do poder político que a ele se submete!

As principais ideias e linhas de orientação que resultam desta nossa iniciativa comprovam no fundamental a justeza das propostas programáticas do PCP inscritas nos seus programas eleitorais e na Política Patriótica e de Esquerda que propõe, bem como a oportunidade, razoabilidade e viabilidade das propostas de medidas imediatas que o PCP vem apresentando para responder à alta especulativa dos preços da energia – electricidade, gás natural, GPL e gasolina e gasóleo.

Proposta que coloca como exigência primeira a propriedade pública e o comando estratégico do Estado sobre as principais empresas do sector energético português que foram privatizadas. E como segundo imperativo a planificação democrática do desenvolvimento do sistema energético português: um Plano Energético Nacional. 

E não temos dúvidas da necessidade de uma transição energética. Fomos dos primeiros a enunciá-la. As polémicas da Transição Energética não vão obrigar o PCP a imiscuir-se em querelas científico-técnicas de opções definitivas por umas opções tecnológicas com a diabolização de outras. O conceito tem para o PCP de significar uma gestão de bom senso económico e político no uso das fontes e tecnologias energéticas disponíveis e adequadas ao País que somos, ao País que queremos desenvolver. 

De gradualismo nas mudanças e rupturas a fazer. Nomeadamente na gestão daquelas que, por razões ambientais, por escassez ou risco de esgotamento, tenham que ser abandonadas e substituídas por outras. Com uma perspectiva dinâmica de permanente abertura aos avanços da ciência e tecnologia, e potencialidades do território. Sem atrasar mudanças e rupturas mas também sem as transformar, pelos seus custos económicos e sociais, em inviabilização económica do País ou desastre social.     

O capitalismo, ainda que tingido de verde, não realizará uma transição energética justa. Toda a gente diz que quanto menos dependentes dos combustíveis fósseis melhor. O problema é quão isso vai ser custoso, como o vão reconhecendo, inclusive, ilustres representantes dos grandes interesses instalados. De facto, as agendas neoliberais da Transição Energética, também dita «descarbonização» da União Europeia, do Governo PS, através dos mecanismos do «capitalismo verde» não são só custosos, são uma impossibilidade! 

Na verdade estamos apenas e tão só perante uma estratégia de defesa do sistema capitalista que conduzirá a mais desigualdades sociais e regionais, e no mundo, a par da continuidade na exploração e predação da natureza. Que se limita a deslocar o busílis do problema, por exemplo, da extracção do petróleo para a mineração do lítio e terras raras e a multiplicar contradições e impasses de que é exemplo a cambalhota da União Europeia com a classificação do Gás Natural e da Energia Nuclear, como energias «verdes». Estratégia que não põe em causa a lógica e os fins do capitalismo: a maximização do lucro. Não, não haverá Transição Energética com a mercantilização da natureza, que continua a todo o vapor, ou com «salvadores» mecanismos de mercado – fiscalidade verde, princípio do utilizador/pagador, comércio de licenças de poluição, de emissão de dióxido de carbono, entre outros.

A necessidade de revolucionar, de mudar de paradigma energético – ou, como dizemos nesta nossa iniciativa, de promover a Transição Energética -, com a redução drástica da dependência das energias fósseis e a travagem das correspondentes emissões de CO2 e o aumento significativo da eficiência energética do consumo, está há muito colocada. Está colocada muito da agenda das Alterações Climáticas. 

Em Portugal o novo paradigma passará obrigatoriamente por um combinado  energético de diversas formas e origens. Uma combinação onde as energias fósseis têm de perder peso significativamente, a par da crescente presença das renováveis e aproveitamento de outros recursos endógenos, e onde a eficiência energética é uma exigência transversal a toda e qualquer política.

Uma questão chave é defender uma transição de modelos  adequada às necessidades do tecido económico e qualidade de vida dos portugueses, assegurando um desenvolvimento sustentado.

A definição de objectivos localizados no espaço do novo modelo exige que se seja capaz de estabelecer a progressividade e metas intermédias susceptíveis de serem suportáveis sem rupturas no  tecido económico e social. 

O que significa ajustar os ritmos e processos que garantam que a redução do uso dos combustíveis fósseis e outros meios de produção energéticos tenham custos e impactos compatíveis com o equilíbrio ecológico e a sustentabilidade e desenvolvimento económico e social. Com prioridades que precisam de ser fixadas num contexto de transição energética na qual há que considerar as diversas contingências e limites planetários quanto aos recursos disponíveis a médio e longo prazo (limites muito agravados pelo modo de produção e exploração dominante – o capitalismo), bem como aos impactos ambientais e climáticos e, neste caso, por princípio de precaução, a necessidade de um controlo regulado e proporcional das emissões, por via da actividade humana, de dióxido de carbono.

Nomeadamente, esta transição não deve nem pode contribuir para uma maior fragilização dos sectores produtivos, pôr em causa a mobilidade das populações já hoje mais distantes e isoladas, ou o agravamento das desigualdades sociais. A urgência da mudança exige o bom senso de considerar um processo que deve ter a obrigatória participação dos cidadãos e atenção às suas condições de vida, emprego e direitos. Exige a planificação, a gestão criteriosa dos recursos naturais, a convergência no plano internacional para uma evolução comum, solidária e cooperativa. Ou seja, uma Transição no respeito pela Constituição da República Portuguesa que estabelece, no seu Artigo 81.º, como incumbência prioritária do Estado no âmbito económico e social, «Adoptar uma política nacional de energia, com preservação dos recursos naturais e do equilíbrio ecológico, promovendo, neste domínio, a cooperação internacional».

A transformação do modelo energético em Portugal integra-se no Plano Energético Nacional, programa mínimo para a política energética que reclamamos para o País e está inscrito na Política Patriótica e de Esquerda.

Um Plano que avance na eficiência e soberania energética, pela redução dos consumos e o défice energéticos, com programas que tenham em conta os impactos e limitações das políticas ambientais, de transporte e de produção.

Enunciamos aqui 6 eixos fundamentais, numa resposta a estrangulamentos estruturais sem deixar de responder com medidas de curto e médio prazo:

  • O reassumir pelo Estado do seu papel de autoridade e de controlo público das principais empresas, no aprovisionamento, produção, transporte e comercialização das diferentes formas de energia, e a reorganização das fileiras energéticas, recompondo a cadeia de valor das suas empresas;
  • A utilização racional da energia e acréscimos de eficiência energética nos transportes, nos edifícios (com prioridade para os públicos) e na indústria (redução da intensidade energética) e a diversificação das fontes de energia;
  • A prospecção e cartografia dos recursos, em energias renováveis (hidroeléctrica, eólica, solar térmica, fotovoltaica, biomassa, incluindo efluentes e resíduos orgânicos, geotérmica e as ligadas ao mar) e não renováveis, bem como recursos minerais escassos, crescentemente incorporados em novas tecnologias energéticas;
  • O reforço da base científica e técnica, considerando sobretudo as novas aquisições no domínio da armazenagem de excedentes conjunturais de electricidade, associados à produção renovável e a valorização e utilização integrada das potencialidades nacionais;
  • A revisão completa dos incentivos, subsídios e outros apoios às empresas produtoras de electricidade, seja no domínio da produção convencional, seja das energias renováveis, para pôr fim a qualquer tipo de «rendas excessivas» e/ou receitas indevidas; estancar o défice tarifário, cujo actual saldo deve ser, de acordo com adequada programação, absorvido pelas empresas que o geraram;
  • Um regime de preços máximos nos combustíveis líquidos e gasosos e electricidade, e o reforço dos regimes de energia bonificada para algumas actividades (agricultura, pescas e subsectores dos transportes). A reposição da taxa do IVA nos 6% na electricidade, no gás natural e no GPL.

Quanto às medidas de curto prazo que precisam de ser adoptadas, essas estão expressas no vasto conjunto de iniciativas que apresentámos na discussão sobre o OE para 2022 que está em curso e que apontam, para lá da redução da taxação dos combustíveis e da electricidade, a indispensável regulação dos preços que o Governo continua a recusar. É para nós claro e evidente que, sem essa regulação, continuaremos a assistir à subsidiação dos lucros das grandes empresas petrolíferas e de energia eléctrica, por via da perda de receitas fiscais, com os insuportáveis custos quer para a economia, quer para o povo português. 

Nos próximos tempos, as questões da energia continuarão inevitavelmente no centro da discussão política. A especulação a que temos assistido nos preços dos combustíveis e da energia eléctrica, inseparável não apenas da guerra e das sanções, mas também do aproveitamento que o grande capital está a fazer desta situação, estão a exigir medidas que, quer o Governo, quer a União Europeia, se recusam a dar.

Medidas que impõem o confronto com os grandes interesses e a ruptura com um percurso em que a energia e os recursos, em vez de serem um factor de acumulação de lucros sejam, de facto, instrumentos para o desenvolvimento do País. 

Medidas que não podem deixar de ter presente o caminho para a soberania energética, para a segurança no abastecimento do País, para a defesa do meio ambiente e dos valores ambientais, para assegurar o desenvolvimento nacional. Esta nossa iniciativa não foi, por isso, um ponto de chegada. Mas antes um momento mais, para aprofundar o nosso conhecimento, a nossa discussão, prosseguir a luta e construir um Portugal com futuro.

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