Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral, Sessão Comemorativa «46 anos da Constituição da República Portuguesa

«O PCP assumirá, como sempre, o seu papel de defesa da Constituição e dos valores que dela emanam e opor-se-á a quaisquer tentativas para os subverter»

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Passaram já 46 anos sobre a aprovação e promulgação, em 2 de Abril de 1976, da Constituição da República Portuguesa, emanação do processo libertador da Revolução de Abril e da luta do nosso povo.

Esse acto fundador da institucionalização da democracia portuguesa merece ser assinalado por consagrar uma das mais avançadas e progressistas constituições que o século XX havia de conhecer e que tem provado ser, nestes anos da sua vigência, um suporte fundamental e indispensável na regulação da nossa vida democrática, mas igualmente um sustentáculo que reforça a legitimidade dos anseios e aspirações dos trabalhadores e do povo a uma vida melhor, num Portugal mais fraterno e solidário, mais livre e mais democrático e da luta para os conquistar.

Celebramos uma Constituição que sendo inseparável do processo revolucionário que se iniciou em 25 de Abril de 1974 e dos valores que projectou de liberdade, democracia, justiça social, paz e soberania foi, essencialmente, resultado da luta dos trabalhadores e do povo português que viram nela reflectida os seus direitos, as suas aspirações, as conquistas e as profundas transformações e mudanças que protagonizaram, num tempo de viragem e ruptura com a ditadura fascista, a opressão e colonialismo.

Luta dos trabalhadores e do povo português, onde a juventude assumiu um papel de relevo, nomeadamente os jovens trabalhadores pela conquista das liberdades contra repressão fascista, na contestação da guerra colonial, no movimento estudantil pelo direito à democracia no ensino, de que são exemplos maiores as crises académicas que este ano assinala o 60.º aniversário da crise de 1962, em que tiveram um papel destacado os estudantes comunistas. Foram os jovens militares de Abril a dar corpo ao movimento que virá a derrubar a ditadura e foram muitos milhares os jovens que com o seu entusiasmo e dinamismo contribuíram de forma determinante para o processo revolucionário que transformou decisivamente a face do nosso País.

Foi a ampla e prolongada luta da classe operária, dos trabalhadores, da juventude, do povo português que permitiu que a Revolução tomasse um vastíssimo conjunto de medidas a favor dos trabalhadores e do povo, e que deixou a sua marca indelével na Constituição da República Portuguesa.

Quando celebramos a Constituição, é justo prestar homenagem aos deputados constituintes que, com o seu honroso trabalho, lhe deram forma e selaram esse compromisso colectivo com o Portugal democrático, de progresso e independente que a Constituição de 1976 consagrou.

Trabalho para o qual o PCP se orgulha de ter dado uma generosa e qualificada contribuição e posteriormente nos árduos combates travados em sua defesa, mas também na exigência do respeito pelas suas normas, valores e projecto, e pela sua efectivação.

A Constituição teve desde o momento da sua construção inimigos declarados, mas também inimigos dissimulados como se tornou evidente ao longo da sua vigência.

As forças conservadoras e retrógradas, políticas e sociais, os grandes interesses económicos e financeiros, os grandes senhores da terra nunca se conformaram com o seu projecto libertador e emancipador, e viram a Constituição de Abril como um obstáculo à reposição e afirmação dos seus interesses e do seu poder perdido.

A Constituição enfrentou, por isso, cíclicas ofensivas que a mutilaram e empobreceram em várias áreas e relevantes aspectos, limitando o seu alcance e conteúdo progressista.

A direita portuguesa nunca se conformou com a Constituição. Tentou impedir a sua aprovação em 1976, submetendo-a a referendo, mas não o conseguiu. Tentou afastá-la por via de um golpe constitucional derrotado nas eleições presidenciais de 1980. Conseguiu, é certo, mutilar gravemente a Constituição económica, política e social, devido às cedências do PS em sucessivas revisões constitucionais. Mas não desiste de tentar liquidar a Constituição nas suas bases mais sólidas, nomeadamente: os direitos fundamentais e a separação de poderes, a Constituição laboral e a Constituição social. Na medida em que o regime democrático constitui um obstáculo ao seu domínio absoluto, o poder económico não esconde a sua natureza antidemocrática, e os políticos que o servem não hesitam em assumir e pôr em prática uma política de afronta aos valores democráticos que a Constituição consagra.

Na verdade, em sete processos de revisão constitucional entretanto ocorridos, sempre na base de acordos entre o PS e o PSD, alguns aspectos fundamentais da Constituição da República aprovada em 1976 foram sendo eliminados ou descaracterizados e foi aberto o caminho para o desastroso processo de privatizações, para a alienação da soberania nacional a favor das instituições supranacionais da União Europeia, para a inviabilização prática da regionalização, para a liquidação de transformações revolucionárias conquistadas pela revolução de Abril.

Em muitos momentos, as forças políticas que se opuseram à Constituição fizeram dela o bode expiatório dos males do País para iludir as graves responsabilidades da política de direita conduzida por Governos de PSD, CDS e PS que explicitamente a afrontava ou omitia para servir os seus interesses ilegítimos e que é a verdadeira causa das dificuldades do País e dos portugueses.

Não foi a Constituição da República que impôs o rumo governativo que conduziu o País à regressão económica e social, e que se revelou incapaz de dar solução aos problemas nacionais e de concretizar o projecto de desenvolvimento progressista consagrado na Constituição.

Os anos de governação PSD/CDS entre 2011 e 2015 foram de permanente confronto com a Constituição. Todos os Orçamentos do Estado contiveram normas declaradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional, e como se não bastasse uma política governativa de afronta permanente à Constituição, assistimos também a uma ofensiva visando neutralizar os mecanismos jurisdicionais de fiscalização da constitucionalidade. O ataque ao Tribunal Constitucional a partir do Governo e dos seus apoiantes pretendeu pôr em causa a vigência da própria Constituição e a legitimidade da fiscalização da constitucionalidade das leis.

Ciente de que as políticas que pretendeu levar por diante afrontavam directamente princípios fundamentais constitucionalmente consagrados, a direita lançou uma violenta campanha destinada a procurar impor a ideia de que em tempos de crise não se poderia invocar a Constituição. Como se não fosse precisamente em momentos de crise e de ameaça aos direitos fundamentais que se deve revelar o valor essencial da Constituição como garantia da inviolabilidade desses direitos.

A declaração de inconstitucionalidade de cortes permanentes nos salários, nas reformas e nas pensões, que permitiu travar algumas das medidas mais gravosas e injustas do Governo PSD/CDS veio demonstrar que a Constituição não foi suspensa como a direita pretendia e que se assumiu como um obstáculo maior aos desígnios de revanchismo social que sempre animaram a direita portuguesa.

Os propósitos do PSD e do CDS de rever profundamente a Constituição nunca foram segredo. A revisão dos direitos dos trabalhadores e de direitos sociais fundamentais estiveram sempre na mira. Foi esse um dos primeiros propósitos enunciados em 2011 quando o PSD apresentou um projecto de revisão constitucional em cujo preâmbulo se pode ler que “a Constituição, tal como se encontra redigida cria muitos obstáculos e entraves às reformas de que Portugal tanto carece” e em que propunha liquidar os aspectos fundamentais da Constituição, nomeadamente no plano social e laboral, com a eliminação da exigência constitucional de justa causa para despedimento e com a liquidação de direitos sociais fundamentais, na saúde, na educação e na protecção social.

A derrota do PSD e do CDS em 2015, e o seu afastamento do poder para a qual a posição do PCP foi determinante, foi também uma vitória da Constituição com a reposição de valores essenciais que a política de direita tão profundamente afrontou.

A Constituição da República, apesar da gravidade das mutilações e das perversões que sofreu com os sete processos de revisão que foram concluídos, contém um claro projecto de uma ampla democracia com uma solução de futuro para Portugal.

Uma democracia assumida em todas as suas dimensões, não em termos de declaração geral, mas concretas – política, económica, social e cultural e que consubstancia o projecto transformador e de modernidade da Revolução de Abril.

Nela se inscrevem os direitos dos trabalhadores como intrínsecos à democracia, desde os direitos sindicais aos direitos laborais e à justiça, à segurança no emprego, a uma redistribuição mais justa da riqueza com a efectivação do direito a salários mais justos, a horários de trabalho mais dignos.

Nela se expressa o direito ao trabalho para todos e a execução de políticas económicas de pleno emprego.

Nela permanecem como princípios constitucionais, a propriedade pública dos recursos naturais e de meios de produção, de acordo com o interesse colectivo; o planeamento democrático; a participação das organizações representativas dos trabalhadores na definição das medidas económicas e sociais.

Nela subsistem os princípios de uma organização económica baseados numa economia mista, em que coexistem os sectores público, privado, cooperativo e social dos meios de produção, não monopolista nem latifundista.

Nela se proclama a exigência de subordinação do poder económico ao poder político e a incumbência ao Estado de dar prioridade às políticas económicas e de desenvolvimento que assegurem o aumento do bem-estar social, a qualidade de vida das pessoas, a justiça social e a coesão económica e social de todo o território nacional.

Nela estão consignadas as obrigações do Estado em relação a domínios tão importantes como os da educação e do ensino, da saúde, da Segurança Social, da cultura, consagrando a gratuitidade da educação obrigatória e o direito a aceder aos mais elevados graus de ensino!

Nela se estipulam os justos princípios que devem nortear as relações internacionais e pelas quais Portugal se deve reger – os princípios da igualdade entre os Estados, da solução pacífica dos conflitos e da não ingerência nos assuntos internos de outros Estados, o desarmamento e a dissolução dos blocos militares.

Nela se consagra a protecção especial dos jovens na efectivação dos seus direitos económicos, sociais e culturais, nomeadamente no ensino, na formação profissional e na cultura; no acesso ao primeiro emprego, no trabalho e na Segurança Social; no acesso à habitação; na educação física e no desporto; no aproveitamento dos tempos livres.

Nela se determina que a política de juventude deve ter como objectivos prioritários o desenvolvimento da personalidade dos jovens, a criação de condições para a sua efectiva integração na vida activa, o gosto pela criação livre e o sentido de serviço à comunidade.

Nela está expresso o direito de associação e de participação na vida pública, que está na base do movimento juvenil e do movimento estudantil.

São estes princípios, opções e instrumentos de intervenção que deviam e podiam orientar e garantir uma política de desenvolvimento económico e social ao serviço do povo e do País, uma política inspirada nos valores de Abril como claramente o assume a política patriótica e de esquerda proposta pelo PCP aos portugueses.

Portugal precisa de concretizar com urgência uma política que retome na sua plenitude o projecto de sociedade e de organização da nossa vida colectiva que a Constituição consagra.

A importância da Constituição da República para a construção de um Portugal com futuro, livre, democrático e desenvolvido é para nós inquestionável. A sua actualidade e estreita identificação com as mais profundas aspirações dos trabalhadores e do povo português são a garantia que a sua defesa há-de ser sempre obra do povo que a inspirou e construiu com a sua luta, dos que não perdem a esperança nem a confiança de ver retomar o seu projecto de uma sociedade melhor, mais justa e mais fraterna que a Constituição da República projecta.

A Constituição tem uma força jurídica incontornável. Se a Constituição fosse inócua, a direita e o capital não estavam tão interessados, como sempre estiveram, na sua revisão. A Constituição contém um conjunto de direitos fundamentais com os quais nunca se conformaram e que têm força jurídica.

É a consagração constitucional destes direitos e o seu exercício pelo povo português, no plano político, social e cultural, que constituem o mais sério obstáculo ao domínio absoluto do poder económico e dos governantes que o servem.

Na legislatura que agora se iniciou, a Assembleia da República tem poderes de revisão constitucional e a direita já anunciou o seu propósito de abrir um novo processo de revisão, tal como tentou em 2011.

Se esse processo for aberto, o PCP assumirá, como sempre, o seu papel de defesa da Constituição e dos valores que dela emanam e opor-se-á a quaisquer tentativas para os subverter.

E em quaisquer circunstâncias, o PCP opor-se-á a políticas que neguem na prática a efectividade das disposições constitucionais e dos direitos constitucionalmente consagrados.

Para que os direitos fundamentais sejam respeitados e para que as tarefas fundamentais do Estado sejam efectivamente cumpridas é necessário lutar por um poder político determinado em cumprir e fazer cumprir a Constituição, em concretizar os direitos nela consignados e em levar por diante o projecto de democracia política, económica, social e cultural que a Constituição projecta para o presente e para o futuro de Portugal.

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