Intervenção de Pedro Maia, Professor, Conferência do PCP «Engels e a luta na actualidade pelo socialismo»

A ciência: de instrumento de dominação a força de emancipação humana

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Camaradas,

Limitações de tempo obrigam a apresentar aqui apenas um resumo da intervenção que tinha preparado e que será publicada na íntegra.

Em 14 de Abril de 1856 Marx pronuncia, em Londres, um discurso no qual releva a existência de «um facto palpável» e «esmagador» — «um grande facto, característico deste nosso século XIX, um facto que nenhum partido ousa negar.» De que facto se trata, e qual é a sua importância?

Esse facto consiste no antagonismo que se verifica «entre a indústria e a ciência modernas, por um lado, e a miséria e a dissolução modernas, por outro; (...) entre os poderes produtivos e as relações sociais da nossa época». Portanto, se, «por um lado, despontam para a vida forças industriais e científicas, de que nenhuma época da história humana anterior alguma vez tinha suspeitado», a verdade é que também, «por outro lado, existem sintomas de decadência que ultrapassam de longe os horrores registados nos últimos tempos do Império Romano.»

Ora, a nossa época não está de todo menos marcada por esse antagonismo incontornável e uma prova disso é que o retrato do mundo feito por Marx no referido discurso podia, porventura, ser transposto para hoje. Se não, vejamos:

«Nos nossos dias, diz Marx, tudo parece prenhe do seu contrário. Observamos que maquinaria dotada do maravilhoso poder de encurtar e de fazer frutificar o trabalho humano o leva à fome e a um excesso de trabalho. As novas fontes de riqueza transformaram-se, por estranho e misterioso encantamento, em fontes de carência. (...) Ao mesmo ritmo que a humanidade domina a natureza, o homem parece tornar-se escravo de outros homens ou da sua própria infâmia.»

Como é sabido, a preocupação de Marx não é a de conceber discursos condizentes com o cânone retórico, e também não se fica pelo retrato interpretativo e pelo uso de palavras fortes, pungentes, verdadeiras, pois o retrato e as palavras têm itinerários práticos que as contextualizam e perspectivam, apontando para a necessidade da «revolução social» — uma revolução que não se decreta, mas que a cada dia se torna necessária como forma de encontrar saída para o antagonismo e as contradições referidas. E a esta luz, o «digno sapador», «a velha toupeira» da «Revolução» tem um significado universal que deve ser claramente enfrentado e assumido: trata-se de «uma revolução, diz Marx, que significa a emancipação da sua [do operariado] própria classe em todo o mundo, [uma revolução] que é tão universal como a dominação do capital e a escravidão assalariada.»

Por mais pós que se queiram acrescentar, estamos e continuamos a viver num sistema em que a «produção repousa sobre a dominação suprema do capital»; por mais fins que se decretem, estamos e continuamos a viver no «período burguês da história», que cria «a base material do mundo novo», um mundo caracterizado pelo «intercâmbio universal, fundado sobre a dependência mútua da humanidade e os meios para esse con2tacto», e também sobre «o desenvolvimento dos poderes produtivos do homem e a transformação da produção material num domínio científico dos agentes naturais.»

Já se percebeu, portanto, que, para estas andanças e considerandos, a ciência está muito longe de ser indiferente. E algo de semelhante se pode também dizer sobre o papel de Engels para a compreensão do lugar e da relevância da ciência.

A ciência, com os seus protocolos e especificidade exigente, inscreve-se sempre num horizonte ideológico. Esta observação não se traduz numa diminuição ou perda de rigor do saber científico. Dizer que o discurso científico também é ideologia significa antes um esforço para compreender o seu enquadramento contextualizador e para elucidar o seu assentamento ontológico.

É que a ciência pergunta pela realidade objectiva, e este seu propósito revela que ela própria é necessariamente mediada por esta mesma realidade objectiva e pelas suas contradições estruturantes.

A ciência, enquanto dispositivo complexo e instrumento importante no debate e confronto ideológicos, pode assim ser utilizada como meio de acentuação da exploração ou como arma revolucionária e de emancipação humana, como meio de regressão ou de progresso.

Penetrar cientificamente no curso do desenvolvimento económico e social é uma tarefa e uma conquista que nada tem de neutro ou de anódino na história da luta de classes. No passado e na actualidade. Há muito que se percebeu, e convém também hoje não perder de vista, o potencial emancipador de que a ciência se reveste, as energias que liberta, o abalo crítico que gera e faz repercutir.

Ora, de modo determinante, o legado de Engels ajuda-nos nessa tarefa e contribui para aquela conquista. Tomemos, como exemplo, a sua obra O revolucionamento da ciência do senhor Eugen Dühring, vulgarmente conhecida como Anti-Dühring. Logo na «Introdução», Engels faz notar que «Para fazer do socialismo uma ciência, ele tinha, primeiro, que ser colocado num solo real.»

Quer dizer: não só é necessário fazer do socialismo uma ciência, como tal é possível, desde que seja devidamente assente ou colocado num solo real. E como poderá isso ser realizado?

Tal é possível ser concretizado se pensarmos de modo dialéctico, e superarmos a maneira metafísica, apriorista e fixista dominante. Penetrar cientificamente na realidade objectiva significa pensar dialecticamente, ou seja, desenvolver uma visão do mundo em que «tudo se move, se modifica, devém, e perece», num «infinito entrelaçamento de conexões e de acções recíprocas». Portanto, «a dialéctica (…) apreende as coisas, e as imagens conceptuais delas, essencialmente na sua conexão, no seu encadeamento, no seu movimento, no seu surgir e perecer».

Ora, se «na Natureza, [tudo] se passa, em última instância, dialecticamente, e não: metafisicamente», então «uma exposição exacta do sistema do mundo, do desenvolvimento dele e do [desenvolvimento] da humanidade (…), apenas pode, portanto, ser posta de pé por um caminho dialéctico». E, segundo Engels, esta «reviravolta na visão da Natureza» só se dá com o materialismo moderno, que «é essencialmente dialéctico».

No campo da concepção da história, esta reviravolta do modo de pensar metafísico para o modo de pensar dialéctico também se verifica e explica, segundo Engels, com a emergência de «factos novos», com a entrada da «luta de classes entre proletariado e burguesia (…) para o primeiro plano da história dos países mais progressistas da Europa», com «a grande indústria» e a «dominação política da burguesia».

Para Engels, em todo este processo, Marx foi decisivo.

Modo de pensar dialéctico mas também materialista, na medida em que se descobre e elucida que as classes sociais «são produtos (…) das relações económicas», que «a base real» da sociedade é a sua «estrutura económica», «a partir da qual é, em última instância, de explicar a superstrutura conjunta das instituições jurídicas e políticas, assim como dos modos de representação (religiosos, filosóficos, e demais), de um qualquer período histórico.»

Cabe aqui acrescentar uma palavra sobre Economia política, entendida como «a ciência das leis que dominam a produção, e o intercâmbio, do sustento material da vida na sociedade humana.» — Uma ciência, acrescenta Engels mais adiante, que ainda está, em grande medida, «por criar.» Como «as condições nas quais os seres humanos produzem e intercambiam mudam de país para país, voltam [a mudar] de geração para geração», então Engels só pode afirmar que «a Economia política é, assim, essencialmente uma ciência histórica.» Mas isso não impede que, a partir da investigação das «leis particulares de cada estádio singular de desenvolvimento da produção e do intercâmbio», se retirem algumas «poucas leis totalmente universais».

À Economia cabe «demonstrar os males sociais que reaparecem como consequências necessárias do modo de produção subsistente — mas também, simultaneamente, como indícios da dissolução em desmoronamento, dele». Ou seja, cabe à Economia realizar o trabalho simultâneo de analisar o subsistente, mas também de perspectivar o futuro, ao procurar «descobrir, no interior da forma económica de movimento que se está a dissolver, os elementos da nova organização futura da produção e do intercâmbio, que hão-de eliminar esses males.»

Isto implica sustentar que a «crítica do modo capitalista de produção» tem que assentar em dados rigorosos e em análise científica, e que a defesa «de uma sociedade organizada para uma cooperação planificada, para assegurar a todos os membros da sociedade os meios de existência, e de livre desenvolvimento das capacidades deles», exige uma perspectiva e uma postura determinadas, a saber: essa defesa não se coaduna com a postura de um Dom Quixote a combater moinhos de vento, antes supõe a existência e a consciencialização de «uma situação de classes de insuportabilidade diariamente crescente», para a qual sobreleva a contradição entre «as maciças forças produtivas, engendradas no interior do modo capitalista de produção», e a forma como os meios são repartidos, a forma de organização social e política.

A partir desta perspectiva materialista e dialéctica, ao socialismo já não incumbia somente criticar e rejeitar como mau o modo capitalista de produção; a partir de agora, este podia ser exposto, explicado e derrotado. Para Engels, com as descobertas de Marx, «o socialismo tornou-se uma ciência», e, enquanto tal, uma tarefa sem fim, ou «que agora, antes do mais, se trata de elaborar mais além, em todas as suas singularidades e conexões.» Nessa medida, como refere Engels noutro texto, «o socialismo, desde que se tornou uma ciência, também quer ser exercido como uma ciência, isto é, estudado.»

Estamos pois perante uma tarefa para as gerações futuras, uma tarefa que nos deixaram como legado exigente, uma tarefa infinita e em aberto. O socialismo torna-se uma ciência não por decreto ou por sectarismo ideológico, não como garantia de solução definitiva dos problemas, não como forma de salvação milagrosa ou apologética compensatória para as angústias terrenas, mas sim na medida em que se conseguiu e consegue penetrar, com muito esforço e trabalho, nas conexões e contradições efectivamente reais, e, a partir daí, abrir caminho para intervir no seu curso e orientação visando a emancipação dos humanos, encurtando o tempo de trabalho, aumentando o tempo livre e disponível para o desenvolvimento integral do indivíduo, ou seja, permitindo, como refere Engels no Anti-Dühring, «a todos os membros da sociedade fazer desabrochar, manter, e exercitar, o mais possível omnilateralmente, as capacidades deles», pois «a colectividade não se pode libertar, sem que cada singular seja liberto.»

E esta será uma interpretação possível para a seguinte frase de Engels: «quanto mais a ciência procede sem contemplações e sem constrangimentos, tanto mais ela se encontra em consonância com os interesses e aspirações dos operários.»

Por isso, quando Engels pronuncia o discurso fúnebre de Marx, referindo-se ao seu amigo como «revolucionário» e «o homem de ciência», para o qual a ciência era «uma força historicamente motora, uma força revolucionária», defende que «a sua [de Marx] real vocação de vida» fora a de «cooperar (...) no derrubamento da sociedade capitalista e das instituições de Estado por ela criadas, cooperar na libertação do proletariado moderno, a quem ele, pela primeira vez, tinha dado a consciência da sua própria situação e das suas necessidades, a consciência das condições da sua emancipação».